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Proc.nº 297/89 Rel. Cons. Alves Correia
(Mário de Brito)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório.
1. A. requereu, no 11º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, execução com processo sumário para pagamento de quantia certa contra B., com base numa letra de câmbio por este aceite, no valor de 11.483$20, e não paga na data do seu vencimento.
Em 6 de Junho de 1988, a exequente nomeou à penhora um sexto da pensão de reforma que o executado auferia do Centro Nacional de Pensões, no montante de 38.500$00, tendo o Mmº Juiz ordenado a penhora por despacho de 9 do mesmo mês.
Tendo sido notificado para proceder ao depósito na Caixa Geral de Depósitos, à ordem daquele Tribunal, dos descontos na pensão do executado, veio o Centro Nacional de Pensões esclarecer, através de ofício recebido no 11º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, em 15 de Novembro de 1988, que, salvo para efeitos de alimentos, as pensões pagas por aquela Instituição são absolutamente impenhoráveis, nos termos do artigo 45º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto.
2. Todavia , o Mmº Juiz, por despacho de 21 de Dezembro de 1988, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, condensado no artigo 13º da Constituição, da norma constante do nº1 do artigo 45º da Lei nº
28/84, de 14 de Agosto (Lei da Segurança Social).
Nesse despacho, o Mmº Juiz escreveu o seguinte:
'Já se discutiu se as normas invocadas no ofício do Centro Nacional de Pensões
(fls. 34) são ou não inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição. A Comissão Constitucional, seguindo a sentença nº 214, de 30-12-72, do Tribunal Constitucional Italiano (in Giurisprudenza Costituzionale, ano 17, II, pág. 2302), entendeu que tais normas não são inconstitucionais, não constituindo um puro capricho ou arbítrio do legislador, 'reflectindo antes a preocupação de conferir uma garantia absoluta à percepção de um rendimento mínimo de subsistência'(cfr. Ac. nº 479, in BMJ,
327-415). Entendemos, salvo o devido respeito, que este argumento claudica se as pensões pagas pelo Centro Nacional de Pensões forem superiores ao salário mínimo nacional (27.200$00 - cfr. Decreto-Lei nº 411/87,de 31/12) ou a uma vez e meia o salário mínimo nacional (se se seguir o critério da presunção legal de insuficiência económica da alínea c) do nº 1 do art .20º do Decreto-Lei nº
387-B/87). O princípio da igualdade está bem patente na alínea f) do nº 1 do artigo 823 do Código de Processo Civil, que não exclui qualquer reforma ou auxílio, sendo
óbvio que, não obstante não haver, pelo exposto, uniformidade de critérios legais sobre o que se poderá entender por 'mínimo de subsistência', o artigo
45º, nº 1 da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, contém uma excepção que, em nosso entender e salvo o devido respeito, viola o artigo 13º da Constituição (pelo menos se a pensão paga pelo Centro Nacional de Pensões for superior ao salário mínimo nacional)'.
Obtida por ofício, com entrada em 1 de Fevereiro de 1989, a informação de que a pensão mensal que o executado passou a perceber atingia o quantitativo de 46.150$00, o Mmº Juiz, por despacho de 6 de Fevereiro de 1989, manteve a penhora anteriormente ordenada, observando que, apesar dela, ao executado ainda restava mais do que o salário mínimo nacional.
3. Do despacho de 21 de Dezembro de l988, interpôs obrigatoriamente o Ministério Público o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos das pertinentes disposições constitucionais e legais, e cujo objecto consiste na questão da constitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 45º da Lei nº 28/84, de
14 de Agosto.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal remata as suas alegações do modo como segue:
1º - Não é inconstitucional, por pretensa violação do princípio da igualdade, dado que apresenta fundamento material bastante, a norma constante do nº1 do artigo 45º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, que estabelece a impenhorabilidade das prestações devidas pelas instituições de segurança social.
2º- Deve ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada, de acordo com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Por sua vez, o recorrido não alegou.
4. Corridos os vistos legais e operada a mudança de relator, cumpre, então, apreciar e decidir a questão de saber se a norma do nº 1 do artigo 45º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, é (ou não) inconstitucional.
II Fundamentos.
5. A norma cuja aplicação foi recusada pelo Mmº Juiz a quo, com fundamento em inconstitucionalidade, está integrada na Lei nº 28/84, a qual define as bases em que assentam o sistema de segurança social previsto na Constituição e a acção social prosseguida pelas instituições de segurança social, bem como as iniciativas particulares não lucrativas de fins análogos aos daquelas instituições. Constitui o nº 1 de uma disposição - o artigo 45º - , cujo conteúdo é o seguinte:
1. As prestações devidas pelas instituições de segurança social são impenhoráveis e intransmissíveis.
2. A impenhorabilidade das prestações não se aplica em processo de execução especial por alimentos, relativamente a prestações substitutivas de rendimento e até um terço do seu montante.
O princípio da impenhorabilidade total das pensões pagas pelas instituições de segurança social
- princípio este que sofre uma excepção, nas hipóteses de dívidas por alimentos, nos termos do nº2 do preceito transcrito da Lei nº 28/84 - não constitui uma originalidade da actual Lei da Segurança Social. O aludido princípio constava já da Base XXVI da Lei nº 2115, de 18 de Junho de 1962 - diploma este revogado pelo nº 1 do artigo 83º da Lei nº 28/84 -, a qual preceituava o seguinte:
'As prestações devidas aos beneficiários ou sócios das instituições de previdência social e seus familiares não podem ser cedidas a terceiros, nem penhoradas, mas prescrevem a favor das respectivas instituições pelo lapso de 1 ano, a contar do vencimento ou do último dia do prazo de pagamento, se o houver'.
Ele encontrava-se igualmente no artigo 30º do Decreto nº 45266, de 23 de Setembro de 1963, nos seguintes termos:
'As prestações devidas aos beneficiários e seus familiares não podem ser cedidas, nem penhoradas e são isentas de quaisquer taxas, contribuições e impostos'.
A norma do nº1 do artigo
45º da Lei nº 28/84, ao submeter as pensões devidas pelas instituições de segurança social a um regime de impenhorabilidade total - apenas com o temperamento constante do nº 2 daquele preceito -, estabelece para elas um tratamento diferente e mais favorável do que aquele que vigora para as restantes prestações de aposentação, reforma, invalidez ou outras de natureza semelhante - designadamente as pagas aos trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas pela Caixa Geral de Aposentações
-, as quais gozam apenas de um regime de impenhorabilidade parcial, nos termos da alínea f) do nº 1 e do nº 4 do artigo 823º do Código de Processo Civil (cfr. o artigo 70º do Estatuto da Aposentação dos funcionários e agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de
9 de Dezembro).
Este Código estatui, com efeito, o seguinte:
Artigo 823º
(Bens relativa ou parcialmente impenhoráveis)
1. Estão também isentos de penhora: f) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação, reforma, auxílio, doença, invalidez, montepio, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, e de outras pensões de natureza semelhante.
..........................................
4. As quantias e pensões a que se referem as alíneas e) e f) do nº 1 podem ser apreendidas até metade, quando a execução provenha de comedorias ou géneros fornecidos para alimentação do executado, do seu cônjuge ou de seus ascendentes e descendentes. Nos casos restantes, a parte penhorável das quantias e pensões é fixada pelo juiz, segundo o seu prudente arbítrio e tendo em atenção as condições económicas do executado, entre um terço e um sexto'.
Da comparação entre o artigo 45º da Lei nº 28/84 e os preceitos acabados de transcrever do Código de Processo Civil, extrai-se uma diferença fundamental de regime entre dois tipos de pensões - e, consequentemente, entre dois grupos de pensionistas: de um lado, as pensões da segurança social, que são, em regra, impenhoráveis, salvo em processo de execução especial por alimentos, relativamente a prestações substitutivas de rendimento e até um terço do seu montante; e, do outro lado, as pensões pagas por outras instituições, as quais gozam apenas de um benefício de impenhorabilidade parcial: podem, de facto, ser penhoradas até metade, quando a execução provenha de comedorias ou géneros fornecidos para alimentação do executado, do seu cônjuge ou de seus ascendentes ou descendentes; e, nos restantes casos, a parte penhorável é fixada pelo juiz, segundo o seu prudente arbítrio e tendo em atenção as condições económicas do executado, entre um terço e um sexto.
Representará, então, este tratamento diferenciado dos beneficiários do sistema de segurança social um tratamento de' favor' ou de 'privilégio' em relação aos demais, em termos de se poder sustentar que se está perante uma 'diferenciação arbitrária' ou uma
'discriminação' daquele grupo de pensionistas, insusceptível de manter-se à luz do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição?
6. Como se referiu no despacho sub judicio, a Comissão Constitucional teve oportunidade de apreciar e decidir a questão da constitucionalidade do princípio da impenhorabilidade total das pensões de reforma, invalidez ou outras prestações previdenciais, constante da Base XXVI da Lei nº 2115, de 18 de Junho de 1962, e do artigo 30º do Decreto nº 45.266, de 23 de Setembro de 1963.
Foi no Acórdão nº 479, de
25 de Março de 1983 (in Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de
1983), tendo aquele órgão concluído que as normas que consagravam aquele princípio não ofendiam o princípio constitucional da igualdade.
'É que - escreveu-se naquele aresto - a exclusão da penhorabilidade das pensões pagas aos beneficiários do regime geral de previdência (regime que abrange, de um ponto de vista numérico, a maior parte dos Portugueses) não decorre de um puro capricho ou do arbítrio do legislador, reflectindo antes a preocupação de conferir uma garantia absoluta à percepção de um rendimento mínimo de subsistência. Tal solução é perfeitamente compatível - como mostra o estudo do nosso direito e a experiência legislativa de outros ordenamentos próximos do nosso, em especial o brasileiro e o italiano - com a nossa Constituição e o quadro de valores nela acolhidos, nomeadamente a defesa do bem-estar e qualidade de vida das classes sociais mais desfavorecidas, a protecção decorrente do estabelecimento de um mínimo de subsistência (salário mínimo ou pensão previdencial sucedânea), a protecção nas situações de infortúnio ou de menor aptidão para conseguir os meios de subsistência a que todos têm direito.
O facto de tal norma não ter sido ainda consagrada no regime previdencial de outros cidadãos não a torna obviamente arbitrária ou irrazoável. Como se disse no citado Acórdão nº 458, «a esta Comissão não cabe propriamente formular um juízo 'positivo' a respeito da questão: cabe-lhe apenas uma verificação 'negativa' , que consiste em saber se o juízo do legislador é em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspectiva jurídico-constitucional, por não se encontrar para ele qualquer fundamento material».
Ora, já vimos, não é o caso dos presentes autos. Não ocorre, assim, relativamente às normas desaplicadas, qualquer violação ao princípio constitucional da igualdade, já que não se verifica aí um caso de preceitos desprovidos de justificação racional, relativamente aos quais se pudesse encontrar uma desproporção ou inadequação no tratamento da situação fáctica a que vão aplicar-se, isto para utilizar fórmulas aplicadas em outras ocasiões por esta Comissão'.
7. Entende o Tribunal que a conclusão de não inconstitucionalidade a que chegou a Comissão Constitucional quanto às normas constantes da Base XXVI da Lei nº 2115 e do artigo 30º do Decreto nº 45 266 é válida na sua ideia essencial para a norma do nº1 do artigo
45º da Lei nº 28/84, desde que a pensão auferida pelo beneficiário da segurança social, tendo em conta o seu montante, reportado a um determinado momento histórico, cumpra efectivamente a função inilidível de garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista. Ora, é esse insofismavelmente o caso dos autos, já que o quantitativo da pensão social percebida pelo executado não era susceptível de ser comprimido, por efeito da sua penhora parcial, sob pena de ser posta em causa a subsistência do executado.
O credor goza de um direito
à satisfação do seu crédito, podendo, no caso de recusa de cumprimento do devedor, exigir a realização executiva do seu crédito, à custa do património do devedor. Aquele direito do credor, enquanto direito de conteúdo patrimonial, é tutelado pelo artigo 62º, nº 1,da Constituição, que encerra a garantia
(institucional e individual) da propriedade privada (sobre o sentido da garantia do artigo 62º, nº 1, da Constituição, cfr. F. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra 1982, p. 43-45, e O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, p. 301-307).
O artigo 601º do Código Civil, ao estabelecer que 'pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especiais estabelecidos em consequência da separação de patrimónios', constitui uma expressão, a nível da legislação ordinária, da tutela constitucional do direito do credor.
Mas, por outro lado, o artigo 63º, nº1, da Constituição reconhece a todos os cidadãos um direito à segurança social, determinando o nº 4 do mesmo preceito que 'o sistema de segurança social protegerá os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho'.
Este preceito constitucional poderá, desde logo, ser interpretado como garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma subsistência condigna em todas as situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas, ainda que não possa ver-se garantido no artigo 63º da Lei Fundamental um direito a um mínimo de sobrevivência, é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignididade da pessoa humana, condensado no artigo lº da Constituição [cfr. o Acórdão nº 232/91 (ainda inédito)].
Ora, entre os dois direitos fundamentais de que são titulares o credor e o pensionista pode existir uma colisão ou um conflito (sobre a problemática da colisão de direitos fundamentais, cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª ed., Coimbra, Almedina, 1986, p. 495-498, e J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina,1987, p.220-224).
O exercício do direito do credor em ver realizado o seu direito - o qual, como se viu, encontra guarida no nº1 do artigo 62º da Lei Fundamental - pode colidir com o direito fundamental do pensionista em perceber uma pensão que lhe garanta uma sobrevivência condigna, condensado,como já se referiu, ou no artigo 63º ou no artigo 1º da Constituição. Em casos de colisão ou conflito entre aqueles dois direitos, deve o legislador, para tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana, sacrificar o direito do credor,na medida do necessário e, se tanto for preciso, mesmo totalmente, não permitindo que a realização deste direito ponha em causa a sobrevivência ou subsistência do devedor.
Toda a questão está, pois, em que o legislador adopte 'um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito' (cfr. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 233).
Insistindo: o sacrifício do direito do credor só será, assim, constitucionalmente legítimo se for necessário e adequado à salvaguarda do direito fundamental do devedor a uma sobrevivência com um mínimo de qualidade. Donde o ter de concluir-se que, para além desse patamar necessário para garantir aquele mínimo de sobrevivência - o qual não pode ser definido em termos válidos para todos os tempos, uma vez que é algo historicamente situado -, já será constitucionalmente ilegítimo o sacrifício total do direito do credor.
8. Poderá, no entanto, argumentar-se, ex adverso, que o que vem de escrever-se não é suficiente para subtrair ao cutelo da inconstitucionalidade a norma do nº 1 do artigo 45º da Lei nº 28/84, mesmo na dimensão ideal de que se vem falando: a da consagração do princípio da impenhorabilidade total daquelas pensões provenientes das instituições de segurança social que, pelo seu montante, devam ser objectivamente consideradas como necessárias à garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do beneficiário. É que, não vigorando para as demais pensões - inclusive para aquelas que não ultrapassam o mínimo de sobrevivência
-, nomeadamente para as devidas pela Caixa Geral de Aposentações, idêntico princípio, nos termos do nº 1, alínea f), e nº 4 do artigo 823º do Código Civil, sempre poderia entender-se que o tratamento mais favorável dos pensionistas da segurança social violaria o princípio constitucional da igualdade.
Não é, porém, assim. Com efeito, por um lado, o Tribunal Constitucional ao aferir a compatibilidade de uma norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve pôr em causa 'a liberdade de conformação do legislador ou a discricionaridade legislativa' .Deve abster-se de substituir-se ao legislador, ponderando a situação como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução 'razoável', 'justa' e 'oportuna' (cfr. o Acórdão da Comissão Constitucional nº 458, de 25 de Novembro de 1982, in Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983). O seu controlo deve ser tão-só de carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do legislador se apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento material.
Como foi salientado nos Acórdãos nºs. 186/90, 187/90 e 188/90 (in Diário da República, nº 211, de 12 de Setembro de 1990), 'o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)'. Ora, como foi apontado anteriormente, a consagração pelo legislador de um regime de impenhorabilidade total, salvo em processos de execução especial por alimentos, das prestações devidas pelas instituições de segurança social que, pelo seu montante, devam ser objectivamente consideradas como instrumento de garantia de uma sobrevivência minimamente digna do pensionista, não é materialmente infundada, irrazoável ou arbitrária.
Por outro lado, a circunstância de o legislador não ter consagrado um regime de impenhorabilidade total para as remunerações não superiores ao salário mínimo nacional, bem como para as pensões referidas na alínea f) do nº1 e no nº 4 do artigo 823º do Código de Processo Civil que não ultrapassem aquele mínimo considerado necessário para uma sobrevivência humanamente digna do respectivo beneficiário não constitui argumento suficiente para tonar aquela norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Na verdade, como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, sempre poderia questionar-se se a inconstitucionalidade não estaria, antes, nas normas que não consagram o princípio da impenhorabilidade total para as remunerações não superiores ao salário mínimo nacional, bem como - acrescenta-se agora - para as pensões devidas por instituições não enquadradas pela Lei 28/84 no sistema de segurança social, cujo montante se considere indispensável para a sobrevivência do pensionista, nos termos já expostos.
9. O que vem de expor-se deixa já antever que este Tribunal não considera,necessariamente, conforme à Constituição a norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84 em toda a sua extensão ou em todo o seu âmbito de regulamentação.
Existe um segmento ou dimensão daquela norma que é claramente inconstitucional,por violação do princípio da igualdade do artigo 13º da Constituição: a norma será certamente inconstitucional naquela parte em que estende a aplicação do princípio da impenhorabilidade total às prestações devidas pelas instituições de segurança social, cujo montante ultrapasse manifestamente aquele mínimo entendido como necessário para garantia de uma sobrevivência digna do pensionista.
O juízo de inconstitucionalidade da mencionada norma, no segmento acabado de referir, alicerçar-se-á essencialmente em duas razões. De um lado, a norma do artigo 45º, nº 1, da Lei nº 28/84, ao considerar abrangidas pelo princípio da impenhorabilidade total - apenas com a excepção constante do nº 2 daquele preceito - as prestações devidas por instituições de segurança social de montante superior ao mínimo de sobrevivência condigna, encerra um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do credor, apresentando-se, assim, como arbitrária e materialmente infundada. Verifica-se, naquele segmento da norma, uma desproporção ou inadequação da regulamentação legal à situação fáctica a que quer aplicar-se, a qual, como refere o já citado Acórdão da Comissão Constitucional nº 458, constitui 'o índice ou sinal mais claro e decisivo do arbítrio '.
A norma, no segmento que vem sendo considerado, briga, por isso, com a ideia de justiça, a qual, nas palavras de Manuel de Andrade, se reconduz 'a um princípio de igualdade no sentido de proporcionalidade' [cfr. Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra
(Separata do Vol. XLVIII- l972 - do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), 1973, p. 14].
Do outro lado, a norma do nº 1 do artigo 45º da Lei nº 28/84, enquanto considera totalmente impenhoráveis as prestações pagas por instituições de segurança social cujo quantitativo ultrapasse claramente o indispensável para garantir uma sobrevivência minimamente digna do pensionista, atribui aos pensionistas da Segurança Social um privilégio ou um benefício, materialmente injustificado, em comparação com os pensionistas de outras instituições - designadamente da Caixa Geral de Aposentações -, as quais não gozam de idêntica regalia, nos termos dos nºs 1, alínea f), e 4 do artigo 823º do Código de Processo Civil, em conjugação com o artigo 70º do Estatuto das Aposentações dos funcionários e agentes da Administração central, regional e local. Também por esta razão, ela violará, naquele sentido, o princípio constitucional da igualdade.
11. Expostas estas considerações, importa retornar ao caso dos autos, para recordar algo que já foi salientado anteriormente: a norma do nº 4 do artigo 45º da Lei nº 28/84, enquanto aplicável ao caso sub judicio, não é inconstitucional. A pensão que o executado percebia, tendo em conta o seu montante e o período histórico em que ela estava a ser paga, deve ser entendida como cumprindo efectivamente a função inilidível de garantia de uma sobrevivência minimamente digna do beneficiário, pelo que a sua impenhorabilidade total, nos termos daquela norma, não surge como algo materialmente infundado, irrazoável ou arbitrário, nem desproporcionado. Ela não viola, nesse aspecto, o princípio constitucional da igualdade, nem a garantia constitucional do credor a ver satisfeito o seu crédito, que, como se disse, há-de extrair-se do artigo 62º, nº1, da Constituição..
III Decisão.
12. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser reformada em consequência do aqui decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Julho de 1991
Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito (com declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa