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Proc. n.º 512/97
1ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. D...,Ldª, com sede na Rua Tierno Galvan,..., em Lisboa, veio 'nos termos do nº 2 do artigo 111º do Código do IRC e do nº 2 do artigo 151º do Código de Processo Tributário, impugnar a autoliquidação do IRC do exercício de 1993, com fundamento em erro resultante de erróneo apuramento da matéria colectável, após se ter verificado no dia 10 de Agosto de 1995 o indeferimento tácito da reclamação graciosa (...)apresentada na Repartição de Finanças do 2º Bairro Fiscal de Lisboa'. Nessa impugnação alegou que:
'a importância respeitante à derrama foi acrescida unicamente por obediência ao Despacho de 13.02.90, Proc. 85/90, no qual se diz que a derrama liquidada com o IRC, ao contrário do que sucedia com a derrama liquidada com a contribuição industrial, não deve ser aceite como custo, para efeitos fiscais, dado que, com a alteração introduzida pelo Decreto--Lei nº 470-B/88, de 10 de Dezembro, ao artigo 5º da Lei nº 1/87, de 1 de Junho (Lei das Finanças Locais) deixou de ser um imposto dependente para passar a ser configurada como um imposto acessório relativamente ao IRC'. A impugnação, que deu entrada no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa em 20 de Novembro de 1995, veio a ser julgada improcedente por sentença de 4 de Julho de 1996. Para tanto, foi aplicado o artigo 41º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (abreviadamente, Código do IRC), com a redacção dada pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, a qual se considerou ter natureza interpretativa e 'efeitos retroactivos'.
2. Inconformada, a impugnante interpôs recurso desta sentença para a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Nas alegações apresentadas, a recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 41º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, na redacção dada pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, com o sentido de norma interpretativa, explicitado no n.º 7 do artigo 28º da referida Lei, por violação dos artigos 106º, n.º 2, 2º, 3º, 60º e 18º da Lei Fundamental. Isto, porque
'A declaração contida no n.º 7 do Art. 28º da Lei n.º 10/96, de 23 de Março quanto à natureza interpretativa dessa norma corresponde a uma cláusula de retroactividade.' No seu parecer, o Ministério Público entendeu não merecer o recurso provimento, em face na natureza interpretativa da nova redacção do artigo 41º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC. O Supremo Tribunal Administrativo, através de Acórdão proferido em 25 de Junho de 1997, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
3. A recorrente, inconformada com este Acórdão, interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, indicando como fundamentos do mesmo:
- 'a inconstitucionalidade da interpretação dada à alínea a), do nº 1, do art.
41º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, por violação do princípio da legalidade consignado no art. 106º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa';
- 'a inconstitucionalidade do nº 7, do art. 28º, da Lei nº 10/96, de 23 de Março, norma esta que ao qualificar de interpretativa a nova redacção dada à mencionada alínea a), do nº 1, do Art. 41º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, através do nº 1, do Art. 28º da mesma Lei, consubstancia uma cláusula de retroactividade violadora do Art. 106º, nº 2, arts. 2º e 3º, art. 60º e arts. 17º e 18º, todos da Constituição da República Portuguesa.'
4. Apresentaram alegações junto do Tribunal Constitucional recorrente e representante da Fazenda Pública. A recorrente concluiu as suas alegações dos seguintes termos:
'1) Na redacção inicial da alínea a), do n.º 1, do art, 41º do C.I.R.C., em vigor durante todo o ano de 1993, a que se refere a auto-liquidação de IRC objecto da sentença confirmada pelo Acórdão do STA, a Derrama era, nos termos do Art. 23º do mesmo Código, um custo dedutível.
2) O imposto municipal de derrama, não se podia considerar previsto naquela disposição do Art. 41º do C.I.R.C., por não ter tal interpretação um mínimo de correspondência na letra do preceito, encontrando-se, pois, fora do respectivo campo semântico.
3) A derrama é um imposto autónomo do IRC, relativamente ao qual não colhe o argumento, aceitável para o caso deste último, de que um imposto não pode, pela própria natureza das coisas, ser dedutível a si mesmo.
4) A referida interpretação que considera o Imposto municipal de Derrama como custo não dedutível para efeitos fiscais, faz uma aplicação analógica da norma contida naquela alínea do art. 41º do C.I.R.C..
5) A aplicação analógica desse preceito viola o princípio da legalidade, consagrado no Art. 106º, nº 2 da Constituição da república Portuguesa.
6) A nova redacção dada à alínea a), do nº 1, do Art. 41º, do C.I.R.C., pelo Art. 28º, nº 1, da Lei nº 10/96, de 23 de Março, tem carácter inovatório.
7) A declaração contida no nº 7, do Art. 28º, da Lei nº 10/96, de 23 de Março quanto à natureza interpretativa dessa norma corresponde a uma cláusula de retroactividade.
8) Tal conteúdo retroactivo pretendido atribuir à nova redacção da Alínea a), do nº 1, do Art. 41º, do C.I.R.C. é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade em matéria fiscal consagrado no Art. 106º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa (anterior versão)
9) Esse conteúdo retroactivo viola ainda os princípios do Estado de Direito Democrático, consagrado no Art. 2º, do direito de propriedade privada consagrado no Art. 60º, o qual goza, por força do Art. 17º, do regime dos Direitos, Liberdades e Garantias consignado no Art. 18, todos da Constituição.
10) Em virtude da nova redacção do nº 3 do Artigo 103º da Constituição da República Portuguesa, essa norma retroactiva encontra-se agora, inquestionavelmente, ferida de inconstitucionalidade superveniente.
11) Nos termos do Art. 207º da Constituição, os Tribunais não podem aplicar normas que infrinjam os princípios e normas dela constantes.' Por sua vez, o representante da Fazenda Pública concluiu as suas alegações do seguinte modo:
'- Como a própria recorrente afirma na sua douta alegação, a questão da dedutibilidade da derrama, relativa ao ano em causa, foi objecto de entendimento quer no sentido de dever quer no sentido de não dever ser considerada como custo para efeitos de IRC.
- Tal divergência de entendimento, expressa na inexistência de uma corrente jurisprudencial dominante, evidencia a razão de ser da norma do nº 7 do artigo
28º da lei nº 10/96 - interpretar a vontade do legislador, resolvendo a questão pelo clarificação no sentido de a derrama não ser dedutível em IRC.
- Deste modo, com o aditamento à referência do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas da expressão ‘e quaisquer outros impostos que directamente incidam sobre os lucros’, o próprio legislador expressamente refere no nº 7 do artigo 28º da Lei nº 10-B/96 que faz uma interpretação autêntica da alínea a) do nº 1 do artigo 41º do CIRC.
- Nos termos do artigo 13º do Código Civil a lei interpretativa integra-se na lei interpretada cujo sentido vem definir.
- Pelo que não assiste razão à recorrente quando alega que a declaração contida no nº 7 do artigo 28º da Lei nº 10/96, de 23.03, corresponde a uma cláusula de retroactividade.'
5. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos:
6. O presente recurso tem como objecto a norma do artigo 41º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, na redacção introduzida pelo artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º
10-B/96, de 23 de Março, enquanto qualificada como norma interpretativa pelo n.º
7 deste artigo 28º e aplicada como integrando a lei interpretada, retroagindo os seus efeitos à data da entrada em vigor do Código do IRC. Segundo a primitiva redacção do artigo 41º, n.º 1, alínea a) deste diploma:
'Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas de exercício: a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), incluindo as importâncias pagas por retenção na fonte ou por conta;
(...)' Tendo, com o Decreto-Lei n.º 470-B/88, de 19 de Dezembro (que deu nova redacção ao artigo 5º da Lei das Finanças Locais – Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro), a derrama passado a ser um imposto acessório do IRC, a Administração Fiscal entendeu que o seu montante não podia ser considerado como custo dedutível, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 23º do Código do IRC ('encargos fiscais e parafiscais'). Esta solução – que se louvava na regra acessorium principale sequitur – foi adoptada pela jurisprudência da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, mas um acórdão de 1 de Fevereiro de 1995 deste Alto Tribunal veio a afastar-se deste entendimento, decidindo que a derrama devia ser considerada como custo fiscal, para efeitos do artigo 23º, n.º 1, alínea f) do Código do IRC, visto que a regra geral é a dedutibilidade de todos os encargos fiscais como custos e que a norma do artigo 41º, n.º 1, alínea a) seria excepcional, e, portanto, insusceptível de aplicação analógica. Face a esta controvérsia jurisprudencial, o legislador fiscal interveio, tendo o artigo 28º, n.º 1, da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, introduzido uma nova redacção para a referida alínea a) do n.º 1 do artigo 41º do Código do IRC, a qual passou a referir:
'a) O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os lucros;
(...)' E, no n.º 7 desse artigo 28º, estatuiu-se que esta redacção tem natureza interpretativa. Ora, será que a nova redacção da norma do artigo 41º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, enquanto qualificada como meramente interpretativa do direito anterior pelo n.º 7 deste artigo 28º (e, portanto, integrando-se na anterior redacção da lei e aplicando-se retroactivamente), é incompatível com a Constituição?
7. O Tribunal Constitucional teve ocasião de se pronunciar recentemente sobre esta questão, no Acórdão n.º 275/98 (inédito). Nesta decisão, o Tribunal entendeu que o parâmetro constitucional para idêntico caso de retroactividade fiscal era o texto da Constituição anterior à quarta revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 25 de Setembro, uma vez que quer a decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância, quer o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo haviam sido prolatados em data anterior à da entrada em vigor dessa Lei Constitucional. E o mesmo é de entender no caso em apreço. Na verdade, como se salienta no citado Acórdão n.º 275/98, o parâmetro constitucional que deve ser tido em conta na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada é o vigente à data da aplicação da norma, não invalidando a inconstitucionalidade superveniente por força de uma revisão constitucional a norma que foi aplicada em momento passado. No presente caso, a consagração expressa, em termos inovatórios, pela revisão constitucional de 1997, da proibição de retroactividade em matéria de impostos
(a Lei Constitucional n.º 1/97, de 25 de Setembro, entrou em vigor em 5 de Outubro de 1997) foi superveniente em relação ao acórdão recorrido nos presentes autos, que foi proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 25 de Junho de
1997. A norma interpretativa foi, por sua vez, aplicada pela primeira vez na sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, proferida em 4 de Julho de 1996. Ou seja, quer a decisão de 1ª Instância, quer o Acórdão do Supremo Tribunal Admnistrativo que a confirmou são anteriores à entrada em vigor da Lei Constitucional n.º 1/97, de 25 de Setembro. Deve, pois, concluir-se que não pode utilizar-se como parâmetro de aferição da constitucionalidade o texto introduzido por esta Lei Constitucional n.º 1/97, não sendo, portanto, decisivo apurar se a retroactividade da lei interpretativa fiscal está proibida pelo novo texto constitucional. Antes, o texto da Constituição relevante para a presente questão é o anterior à quarta revisão constitucional, no âmbito do qual o Tribunal Constitucional entendia que não estava proibida a existência de leis fiscais retroactivas (e, portanto, de leis fiscais interpretativas, com aplicação para o passado), embora pudesse haver casos em que a retroactividade gera inconstitucionalidade – designadamente, a retroactividade resultante da lei fiscal não poderá ser qualificável como arbitrária, intolerável, opressiva, ou causadora de uma
'violação demasiado acentuada' do princípio da confiança do contribuinte (neste sentido, o citado Acórdão n.º 275/98, com mais indicações).
8. Ora, no que respeita à apreciação da constitucionalidade das normas impugnadas, em face do texto anterior à revisão constitucional de 1997, deve concluir-se que não se verifica a alegada inconstitucionalidade. Note-se, antes de mais, que a recorrente começou por auto-
-liquidar o imposto sem considerar a derrama como custo fiscal, seguindo a orientação da Administração Fiscal, embora dela discordasse. E que, além disso, a autoliquidação do IRC para o exercício de 1993 foi efectuada em momento anterior ao do referido aresto do Supremo Tribunal Administrativo (de 1995) que se afastou do entendimento dominante, segundo o qual a derrama não seria dedutível como encargo fiscal. A orientação que a recorrente começou por acatar, perfilhada pela Administração Fiscal (e consagrada posteriormente pelo legislador), não podia, assim, ser considerada inverosímil ou imprevisível. Nem se pode dizer que a
'retroactividade' resultante da adopção dessa orientação, como norma interpretativa, nos n.ºs 1 e 7 do artigo 28º da Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, viole de forma chocante ou intolerável as expectativas dos contribuintes que, apesar de defenderem outro entendimento, não ignoravam a posição contrária da Administração Fiscal e da jurisprudência da 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Conhecida esta posição, não existiam elementos que permitissem aos contribuintes que pugnavam por uma decisão diversa formar uma situação de confiança legítima, susceptível de ser frustrada de forma arbitrária e intolerável pela consagração legal, em termos interpretativos, da doutrina correspondente a essa conhecida posição administrativa e jurisprudencial. Não pode, pois, censurar-se, por inconstitucionalidade, o disposto no artigo
28º, n.º 7, da Lei n.º 10-B/96, enquanto considera interpretativa a nova redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 41º do Código do IRC (introduzido pelo n.º 1 do mesmo artigo 28º). E ficam, deste modo, prejudicadas as questões suscitadas pelo recorrente relativas à inconstitucionalidade da aplicação analógica de normas fiscais excepcionais, por violação do princípio da legalidade tributária. III. Decisão:
9. Nestes termos, e com os fundamentos do Acórdão n.º 275/98, de que se junta cópia, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma impugnada e negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, o acórdão recorrido no que toca ao julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida