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Processo: n.º 245/95.
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — Em processo comum, o Ministério Público deduziu acusação contra A., SA, B.,
C., Lda., e D.. O Ministério Público imputou a cada um dos arguidos pessoas
singulares a prática de um crime previsto e punível nos termos do artigo 24.º,
n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 82.º, n.º 2, alínea a), I, ambos do
Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e da Portaria n.º 833/89, de 22 de
Setembro, e a cada uma das sociedades arguidas a prática da mesma infracção,
punível ainda, quanto a elas, nos termos dos artigos 3.º e 7.º do citado
decreto-lei.
2 — Após a notificação da acusação, apresentaram as arguidas C., Lda., e D.
requerimento para a abertura de instrução, no qual alegaram a
inconstitucionalidade do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de
Junho, e, consequencialmente, da Portaria n.º 833/89, de 22 de Setembro, por
violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição. Alegaram também a
inconstitucionalidade (orgânica) desta portaria por si mesma, por violação do
artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
3 — Após o debate instrutório, o juiz de instrução proferiu, em 9 de Março de
1993, despacho de não pronúncia e ordenou o arquivamento dos autos, por ter
julgado inconstitucional o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 e a
Portaria n.º 833/89.
Quanto a esta matéria, o juiz de instrução fundamentou a decisão do seguinte
modo:
O Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, vem regular a «utilização de aditivos
nos géneros alimentícios», referindo no seu artigo 4.º, n.º 1, que «os aditivos
alimentares admissíveis nos géneros alimentícios, os respectivos critérios de
pureza e as condições da sua utilização constarão de portaria conjunta…».
Tal Portaria consiste precisamente na n.º 833/89, de 22 de Setembro,
invocando-se no seu preâmbulo que se utilizou tal forma «porque a constante
evolução dos conhecimentos técnico-científicos neste domínio, o eventual
aparecimento de novos aditivos e a necessidade de harmonização com a legislação
comunitária impõem uma disciplina legal que permita uma maior flexibilidade…».
Sem embargo de se considerar que as razões invocadas se mostram plausíveis e
perseguidoras do objectivo celeridade e desburocratização na procura de
soluções, crê-se que o modo usado viola, tal como defendem os arguidos,
preceitos constitucionais.
Com efeito o artigo 115.º, n.º 1, da Constituição, menciona várias categorias de
actos legislativos, não logrando referir entre elas a figura da Portaria.
Por outro lado, no mesmo dispositivo legal e no seu n.º 5, claramente se plasmou
que não é permitido, por lei, criar outras categorias de actos legislativos —
que não os referidos no artigo 115.º, n.º 1, da Constituição — ou conferir a
actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, mormente, integrar
qualquer dos preceitos componentes da mesma lei.
Ora, assim sendo, crê-se que o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89, de
8 de Junho, enferma de inconstitucionalidade.
Com efeito, ao estabelecer, clara e inequivocamente, que um acto não legislativo
— pois não consta do elenco mencionado no artigo 115.º, n.º 1, da Constituição —
como uma Portaria vem integrar uma norma ínsita numa modalidade de acto
legislativo, vem de modo directo e frontal violar uma norma constitucionalmente
consagrada.
4 — Desta decisão foi interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso
(obrigatório) para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1,
alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, em virtude de o
tribunal a quo ter recusado a aplicação da norma constante do n.º 1 do artigo
4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, por violação do artigo 115.º, n.º
5, da Constituição, e, consequentemente, da Portaria n.º 833/89, de 22 de
Setembro.
5 — Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, o Magistrado do Ministério
Público apresentou alegações, em que começou por delimitar o objecto do recurso,
considerando que este consiste na «questão da inconstitucionalidade da norma do
n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, enquanto
estabelece que aditivos alimentares admissíveis nos géneros alimentícios
constarão de portaria e, consequentemente, das normas dos artigos 1.º e 2.º da
Portaria n.º 833/89, de 22 de Setembro».
Pronunciou-se então pela não inconstitucionalidade da norma em apreço, partindo
da ideia — apoiada na doutrina e na jurisprudência constitucionais — de que o
artigo 115.º, n.º 5, da Constituição não proíbe os reenvios normativos, em que a
lei remete para a administração a edição de normas regulamentares executivas ou
complementares da disciplina por ela estabelecida, excluindo apenas os
regulamentos integrativos, que regem praeter legem. Defendeu, em seguida, que
no caso das normas questionadas neste processo não se verifica integração, tendo
a Portaria n.º 833/89 mera natureza de regulamento de execução ou complementar
do Decreto-Lei n.º 192/89.
Sustentou ainda que a questão da invocada inconstitucionalidade da Portaria n.º
833/89, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, se
encontrava ultrapassada, uma vez que a decisão recorrida não mencionou tal
questão e considerou a inconstitucionalidade das normas da Portaria n.º 833/89
como meramente consequencial.
E concluiu nestes termos:
1.º A norma do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho,
enquanto estabelece que os aditivos alimentares admissíveis nos géneros
alimentícios constarão de portaria, não é inconstitucional, pois não viola
qualquer princípio ou preceito constitucional, designadamente o artigo 115.º,
n.º 5, da Constituição.
2.º Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se
a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
6 — Por sua vez, as recorridas C., Lda., e D. apresentaram alegações no sentido
da inconstitucionalidade originária do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
192/89 e da inconstitucionalidade consequencial da Portaria n.º 833/89, ante o
disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, por considerarem a portaria
regulamento integrativo.
Também os recorridos A., SA, e B. apresentaram alegações, em que concluíram
deste modo que o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 é
inconstitucional:
— O artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 28/84 prevê um abundante número de práticas
proibidas que têm por objecto aditivos alimentares anormais não considerados
susceptíveis de criar perigo para a vida, saúde e integridade física alheia.
— O mesmo artigo 24.º não define quais os aditivos nessas circunstâncias.
— O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89 dispõe que, por portaria, serão
estabelecidos quais os produtos cuja utilização faz actuar a norma incriminadora
do Decreto-Lei n.º 28/84.
— Há, assim, uma punição que assenta na utilização de um produto que vem
previsto numa portaria.
— A portaria não é um acto legislativo — artigo 115.º, n.º 1, da CRP.
— Não é, portanto, uma fonte apta a preencher a exigência do artigo 29.º, n.º 1,
da CRP.
— Mesmo que se entenda que é um regulamento de execução, nem assim se consegue
superar o espírito do artigo 29.º, que exige a presença em lei formal — artigo
115.º, n.º 1, da CRP — de todos os elementos que possam contribuir para a
punição.
— O artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, é inconstitucional por
violação do artigo 29.º, n.º 1, da CRP.
7 — Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II — Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso
8 — Objecto do presente recurso, interposto pelo Ministério Público, é a norma
do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, segundo a qual
«os aditivos alimentares admissíveis nos géneros alimentícios, os respectivos
critérios de pureza e as condições da sua utilização constarão de portaria
conjunta».
A Portaria n.º 833/89 não é, enquanto acto normativo autónomo, apreciável pelo
Tribunal Constitucional, na medida em que a decisão recorrida não fundamentou o
juízo de inconstitucionalidade formulado na violação da Constituição pelas
normas daquela portaria. Tendo-se recusado a aplicar, com fundamento em
inconstitucionalidade (material) a norma do decreto-lei, o tribunal a quo não se
confrontou sequer com a aplicação ou «desaplicação» da portaria: tal questão
ficou prejudicada. Objecto do recurso é assim, simplesmente, o artigo 4.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 192/89, embora um eventual julgamento de
inconstitucionalidade implique, consequencialmente, a inconstitucionalidade dos
preceitos da portaria, por eles desempenharem uma função regulamentar da norma
em crise.
9 — A norma do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 suscita duas
questões de constitucionalidade: a da violação do artigo 115.º, n.º 5, da
Constituição e a da violação do princípio da legalidade penal [na dimensão de
reserva de lei quanto às normas incriminadoras, consagrada, articuladamente, nos
artigos 29.º, n.º 1, e 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição].
Rigorosamente, a segunda questão situa-se nos planos da inconstitucionalidade
material e orgânica, por violação do princípio da legalidade. As normas da
portaria estarão feridas, porventura, de inconstitucionalidade orgânica, por
violarem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República. A norma do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89
contrariará, nessa perspectiva, o princípio da legalidade, na medida em que for
qualificada como uma norma em branco, que delega em fontes de direito não
admitidas constitucionalmente a definição dos pressupostos de uma pena pública.
O problema da eventual inconstitucionalidade orgânica pode colocar-se,
directamente, em relação ao Decreto-Lei n.º 192/89, uma vez que este diploma foi
aprovado ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição (isto
é, no exercício da competência legislativa própria do Governo) e não mediante
autorização legislativa. Assim, se se entender que o artigo 4.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 192/89 define um crime ou os seus pressupostos, deverá
concluir-se pela sua inconstitucionalidade orgânica, por violar a reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º,
n.º 1, alínea c), da Constituição].
O facto de a decisão recorrida não ter referido a violação do princípio da
legalidade penal como fundamento do juízo de inconstitucionalidade não retira,
porém, interesse e utilidade a tal questão. Na verdade, se o Tribunal vier a
entender que não há inconstitucionalidade por violação do artigo 115.º, n.º 5,
ainda assim poderá concluir que a norma «desaplicada» pelo tribunal recorrido é
inconstitucional com este outro fundamento (artigo 79.º-C da Lei do Tribunal
Constitucional, aditado pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro).
B) A alegada violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição pelo artigo 4.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89
10 — A violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição resultaria de o artigo
4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 conferir a uma portaria o poder de
integrar uma norma ínsita num acto legislativo, não sendo tal portaria, por sua
vez, um acto legislativo previsto pelo artigo 115.º, n.º 1. Pressuposto deste
juízo de inconstitucionalidade é a qualificação da portaria em causa como
regulamento integrativo, contendo disciplina praeter legem, em contraposição a
uma sua qualificação como mero regulamento de execução complementar do referido
decreto-lei.
A caracterização da Portaria n.º 833/89 como regulamento integrativo não é,
todavia, correcta. Na realidade, o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
192/89, apenas remete para um regulamento que descreve os aditivos alimentares
admissíveis nos géneros alimentícios, os respectivos critérios de pureza e
condições de utilização. No próprio artigo 4.º, n.º 1, está contida uma
permissão excepcional de utilização de aditivos, surgindo este preceito como
delimitação negativa (ou contra-tipo) dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a), e
82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84, que proíbem a utilização de
aditivos alimentares anormais não susceptíveis de criar perigo para a vida,
saúde e integridade física.
11 — A norma do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 remete, por razões
técnicas compreensíveis, para uma portaria a concretização dos critérios de
admissibilidade de aditivos alimentares. Mas não é na portaria que está
previsto o conteúdo da permissão e muito menos o da proibição que aquela
delimita. A norma remissiva admite a delimitação negativa da proibição de
aditivos, manifestando abertura e flexibilidade a novas técnicas alimentares
introduzidas no mercado, que não alteram a normalidade e pureza dos produtos nem
violam a confiança dos consumidores.
Deste modo, à portaria apenas cabe executar tal conteúdo normativo, não sendo,
por isso, susceptível de integrar praeter legem ou de formular, ela mesma, um
critério autónomo. A portaria contém normas técnicas mutáveis, enunciados de um
saber em que o direito se apoia, que não são objecto de decisão ou de qualquer
preferência valorativa. A proibição de aditivos que alteram a pureza dos
produtos resulta das disposições conjugadas dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a),
e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84. Quais sejam esses
aditivos é um dado meramente informativo, tal como a composição química de uma
substância que permita classificá-la como veneno. Assim, a previsão, em
portaria, desse dado executa meramente a norma legal.
C) A eventual violação do princípio da legalidade penal
12 — Mas, apesar da natureza meramente executiva da portaria, haverá, ainda
assim, violação do princípio da legalidade pela norma remissiva do artigo 4.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89, ante o disposto nos artigos 29.º, n.º 1, e
168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição?
Também se prefigura, quanto a esta questão, uma resposta negativa, pelas
seguintes razões:
a) O conteúdo da proibição legal de «aditivos falsificados» não resulta
da portaria, nem sequer do referido artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, mas
das normas legais que fixam o conteúdo da proibição — no caso, os artigos 24.º,
n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84. O
princípio da legalidade atinge nuclearmente a norma incriminadora, no sentido
dos artigos 29.º da Constituição e 1.º do Código Penal e não contempla com o
mesmo rigor as delimitações negativas ou excepções à incriminação.
b) A norma remissiva não é uma norma em branco que delegue na portaria
o poder de definir o conteúdo da incriminação. Os critérios do ilícito penal —
desvalor da acção proibida, desvalor do resultado lesivo e identificação do bem
jurídico tutelado — encontram-se nas normas dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a),
e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84 (aprovado mediante
autorização legislativa da Assembleia da República). Tais critérios hão-de ser
compreendidos a partir da ideia de utilização de aditivos que afectem a pureza
dos produtos alimentares. A descrição, feita pela portaria, dos aditivos
admissíveis é apenas uma concretização do critério legal, através da enumeração
de substâncias que são insusceptíveis de afectar a pureza dos produtos, apesar
de constituírem aditivos alimentares. Mas tal enumeração de substâncias não
documenta nenhum critério autónomo de ilicitude — consiste apenas numa aplicação
de conhecimentos técnicos.
13 — A estas razões não é oponível a jurisprudência anterior do Tribunal
Constitucional, nomeadamente a que subjaz ao Acórdão n.º 299/92, da 1.ª Secção
(Diário da República, II Série, de 14 de Dezembro de 1992). Nesse aresto, o
Tribunal julgou inconstitucional (com votos de vencido), por violação da reserva
de lei, uma portaria pela qual se sujeitavam, inovatoriamente, certos bens ou
serviços ao regime de preços declarados, resultando da infracção desse regime um
ilícito criminal de especulação (artigo 10.º, n.º 1, da Portaria n.º 416/82, de
26 de Abril, julgado inconstitucional nesse acórdão). O critério de decisão
adoptado pelo Tribunal foi, aí, o carácter inovatório «da definição de elementos
relevantes do próprio tipo de crime» pela portaria. No caso sub judicio, de
modo algum se configura tal carácter inovatório.
Na verdade, os artigos 24.º, n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do
Decreto-Lei n.º 28/84 contêm, como se disse, um critério determinado de
ilicitude e orientam suficientemente os destinatários das normas quanto às
condutas que são efectivamente proibidas.
Na portaria, a enumeração de substâncias cuja utilização é permitida é uma
concretização técnica da delimitação negativa da regra geral de proibição de
aditivos alimentares. Nesse sentido, não há que apelar ao controlo democrático
(reserva de garantia, na expressão de Marco Siniscalco, «Ratio di ‘certeza’ e
ratio di ‘garanzia’ nella riserva di legge dell‘art. 25, comme della
Costituzione», Giurisprudenza Costituzionale, ano 14, 1969, tomo i, pp. 993 a
999) das condutas proibidas como a que subjaz às normas inovatoriamente
proibitivas em que seja reconhecível uma delimitação substancial do espaço do
permitido.
Por outro lado, foi assegurada a chamada reserva de certeza (na expressão de
Marco Siniscalco, text. cit., loc. cit.), isto é, a suficiente indicação pela
norma remissiva dos limites e critérios da especificação regulamentar, através
da definição de aditivo alimentar [artigos 1.º e 2.º, alínea b)] e dos critérios
da sua utilização lícita (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 192/89).
Finalmente, a segurança dos destinatários não é afectada pela indeterminação da
norma legal remissiva, pois existe uma imediata possibilidade de orientar a
consciência ética para o desvalor do direito quando se realiza a conduta
prevista na norma legal incriminadora (a utilização de aditivos anormais).
Mesmo que se entendesse que a possibilidade de agir com plena consciência da
ilicitude dependeria do conhecimento do conteúdo da portaria, não se poderia
confundir o problema que é suscitado pelo erro (artigo 16.º, n.º 1, parte final,
do Código Penal) com a violação do princípio da legalidade.
14 — Consequentemente, a subtracção à reserva de lei da enumeração das
substâncias permitidas não deixa a descoberto qualquer elemento essencial para a
compreensão da conduta proibida ou para o controlo democrático da incriminação.
A norma incriminadora é suficientemente indicativa da orientação que os
destinatários da norma deverão seguir para agirem segundo o Direito. O cerne do
proibido, o ilícito típico (ou o «núcleo essencial da conduta punível, o seu
conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens
jurídicos», segundo o Tribunal Constitucional espanhol, cfr. STC 3/1988, de 21
de Janeiro), é revelado na lei penal, fundamentando-se na sua violação a culpa
do agente.
Não é, consequentemente, violada a reserva de lei, consagrada nos artigos 29.º,
n.º 1, e 168.º, alínea a), da Constituição. A circunstância de a própria norma
remissiva (artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89) não ter sido editada
pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa da Assembleia da República não
afecta esta conclusão. A observância da reserva de lei é aqui assegurada pela
norma incriminadora constante do Decreto-Lei n.º 28/84 [artigos 24.º, n.º 1,
alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I] — esse sim, aprovado mediante
autorização parlamentar.
III — Decisão
15 — Pelo exposto, decide-se julgar não inconstitucional a norma constante do
artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89 e, por conseguinte, concede-se
provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte
respeitante à questão de constitucionalidade suscitada.
Lisboa, 6 de Julho de 1995. — Maria Fernanda Palma — Alberto Tavares da Costa —
Vítor Nunes de Almeida — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz —
José Manuel Cardoso da Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Novembro de
1995.