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Proc. nº 448/91
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal do trabalho de Almada, em acção emergente de contrato individual de trabalho na qual figura como autora A. e como ré B., realizou-se em 9 de Abril de 1991, audiência de julgamento a que compareceram a autora, acompanhada do Delegado do Procurador da República, junto daquele tribunal, seu patrono oficioso, bem como as duas testemunhas por ela arroladas, não se encontrando presentes a ré, nem nenhum dos mandatários por esta constituídos, assim como nenhuma das testemunhas pela mesma arroladas.
Consta da acta da audiência haver sido recebida, no decurso desta, uma chamada telefónica de um dos mandatários da ré, C., solicitando o seu adiamento por não poder estar presente, referindo que, entretanto iria remeter telex. Todavia, como da mesma acta se extrai, o Delegado do Procurador da República opôs-se a tal adiamento, sob a invocação de não ser o C. o único advogado constituído pela ré no processo, como se verifica da procuração junta com a respectiva contestação. E, na sua qualidade de patrono oficioso da autora, aquele magistrado requereu que se desse cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 3 do artigo 89º do Código de Processo do trabalho, condenando-se a ré no pedido.
Efectivamente, foi logo proferida sentença na qual, dando-se por verificados os pressupostos de que depende a aplicação daquele preceito, se condenou a ré no pedido.
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2 - Não conformada com o assim decidido, veio a ré interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando para tanto o disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), 72º, nº 1, alínea b) e 75º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Simplesmente, por despacho de 9 de Maio de 1991, o Senhor Juiz daquele tribunal rejeitou a sua admissão, suportando-se para tanto, nas considerações seguintes:
'Invoca a recorrente que o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do artigo
70º desta lei [Lei nº 28/82].
Resulta, com efeito, desta norma que caberá recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Ora, no caso presente, não refere a recorrente qual a norma aplicada de que se suscitou a questão da inconstitucionalidade.. E não nos parece que tal fundamento exista sequer.
Com efeito, o Tribunal aplicou a norma do artigo 89º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho, por via da qual a falta injustificada da Ré e do seu mandatário, implica a condenação da Ré no pedido.
Se notificada desta decisão a recorrente tivesse eventualmente vindo aos autos levantar a questão da nulidade da sentença por aquela norma do Código de Processo Laboral estar ferida de inconstitucionalidade, da decisão que recaísse sobre o incidente ainda se poderia colocar o problema do tribunal ter aplicado norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
No entanto, assim não se fez, nunca se tendo suscitado qualquer problema de inconstitucionalidade.
Logo, não estão reunidos os requisitos da alínea b) do artigo 70º da Lei nº
28/82, pelo que é inadmissível o presente recurso'.
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3 - Contra este despacho reagiu a ré, trazendo reclamação ao Tribunal Constitucional, sustentando em síntese que 'a questão da inconstitucionalidade não foi levantada nos autos pois nunca o poderia ter sido; de facto a norma cuja inconstitucionalidade se põe em causa consta da sentença final irrecorrível'. Por outro lado, não vale dizer que poderia ter sido arguida a nulidade da sentença com 'fundamento em inconstitucionalidade, para depois se recorrer do despacho que decidisse essa questão'; e não vale porque 'a inconstitucionalidade não pode ser arguida pela via de nulidade de sentença - cfr. art. 668º do C.P.C.'.
Acaba, impetrando se determine a admissão do recurso.
O Senhor Juiz do tribunal a quo manteve integralmente o despacho reclamado.
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4 - Neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do deferimento da reclamação.
Ponderou, para tanto, que na situação em presença se depara uma situação excepcional ou anómala em que, por motivos óbvios (não comparência à audiência de julgamento da ré e dos seus mandatários), a questão da inconstitucionalidade não pode ser suscitada antes de proferida a sentença final.
Nem pode dizer-se que havia ainda oportunidade processual de suscitar a questão de inconstitucionalidade, em arguição de nulidade de sentença. É que, a aplicação numa decisão judicial, de uma norma inconstitucional implicará erro de julgamento, mas não acarreta nulidade dessa decisão, pois não integra nenhum dos vícios elencados no artigo 668º do Código de Processo Civil.
Corridos os vistos de lei, cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Muito embora o requerimento de interposição do recurso não haja dado cabal cumprimento ao disposto no artigo 75-A, nº 1, da Lei nº 28/82, aditado pela Lei nº 85/89, indicando a norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse, o certo é que o despacho reclamado acabou por identificar tal norma como sendo a do artigo 89º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho.
Inserido no Livro I (Do processo cível), Título IV (Processo de declaração), Capítulo II (Processo sumário), daquele compêndio normativo, e subordinado à epígrafe (Consequência da não comparência das partes em julgamento), o artigo 89º, nº 3, contém a seguinte formulação:
'Se o réu faltar, não justificar a falta e não se fizer representar por mandatário judicial, é condenado no pedido, excepto se tiver provado por documento suficiente que a obrigação não existe; se apenas se fizer representar por mandatário judicial, consideram-se provados os factos alegados pelo autor que forem pessoais do réu'.
A sentença ali em causa era insusceptível de impugnação por via de recurso ordinário, dado que o valor da acção se contém dentro da alçada do tribunal de 1ª instância.
Assim, apenas se questiona agora a exacta dimensão do pressuposto de admissibilidade do recurso relativo à suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, bem como, da sua verificação ou inverificação no caso em apreço.
Vejamos então.
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2 - Em conformidade com o disposto nos artigos
280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Vem este Tribunal entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o pressuposto de admissibilidade daquele tipo de recurso - do qual a reclamante se serviu - no atinente ao exacto significado da locução 'durante o processo' utilizado em ambos os normativos, deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão (de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr. sobre este tema, por todos, os Acórdãos nºs 62/85 e 94/88, Diário da República, II série, respectivamente, de 31 de Maio de 1985 e de 22 de Agosto de 1988).
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3 - Todavia, a orientação geral assim definida, não será de aplicar em determinadas situações de todo excepcionais, em que os interessados não disponham de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes do proferimento da decisão, caso em que lhes deverá ser salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade.
Na verdade, este Tribunal tem vindo a entender, num plano conformador da sua jurisprudência genérica sobre este tema, que naqueles casos anómalos em que o recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá o direito ao recurso de constitucionalidade (cfr. os Acórdãos nºs 136/85 e 479/89, o primeiro, no Diário da República; II série, de 28 de Janeiro de 1986, e o segundo, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 389, pp. 222 e ss.).
Mas, em verdade, a situação posta no presente processo poderá reconduzir-se à condição de 'caso excepcional' para os efeitos da dispensa daquele pressuposto de admissibilidade, na linha de orientação da jurisprudência deste Tribunal?
Seguramente que a resposta há-de ser afirmativa.
Como bem se assinala no parecer do Senhor Procurador-Geral Adjunto '(...) no presente caso, estamos perante uma dessas situações excepcionais ou anómalas, pois, por motivos óbvios (não comparência à audiência de julgamento da ré e dos seus mandatários), a questão da inconstitucionalidade não pode ser suscitada antes de proferida a sentença final. Nem se diga, como se faz no despacho ora reclamado, que havia ainda oportunidade processual de suscitar a questão em arguição de nulidade de sentença. É que - como este Tribunal Constitucional também tem repetidamente afirmado - a aplicação, numa decisão judicial, de uma norma inconstitucional implicará erro de julgamento, mas não acarreta nulidade dessa decisão, pois não integra nenhum dos vícios elencados no artigo 668º do Código de Processo civil'.
Assim é, efectivamente.
A reclamante apenas foi confrontada com a estatuição da norma do artigo 89º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho, quando lhe foi notificada a sentença que, ao abrigo deste preceito, a condenou no pedido.
Não podia, em consequência, haver suscitado a sua inconstitucionalidade durante o processo nem, tão pouco, lhe era exigido, no caso concreto, um qualquer juízo prévio de prognose relativo à sua aplicação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando logo a questão da inconstitucionalidade (cfr. sobre esta específica matéria o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/91, de 19 de Novembro de 1991, ainda inédito). Com efeito, quando o mandatário da reclamante comunicou ao tribunal a impossibilidade de comparecer à audiência de julgamento por força de 'doença súbita e imprevista', não lhe era então adequadamente exigido que houvesse logo de representar que a sua ausência não viesse a ser considerada justificada pelo tribunal.
E, por outro lado, considerando que, como é também jurisprudência pacífica deste Tribunal, a aplicação de uma norma inconstitucional não constitui causa de nulidade da respectiva decisão, há-de entender-se não ser adequado exigir-se à ré a suscitação da prévia nulidade da sentença para, a partir daí, conseguir materializar o pressuposto processual necessário à interposição do recurso de constitucionalidade.
De tudo o exposto, há-de concluir-se que a falta de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma aplicada na decisão recorrida antes de esta haver sido proferida, bem como a inexistência de um ónus de avaliação antecipado aqui seguramente não exigível, conduzem à dispensa do assinalado pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, que assim deve ser recebido, independentemente da verificação daquele requisito processual.
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III - A decisão
Neste termos, tendo em atenção o exposto, decide-se deferir a presente reclamação e determinar a admissão do respectivo recurso.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 1992
Antero Monteiro Diniz Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa António Vitorino Maria da Assunção Esteves Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920061.html ]