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Processo n.º 16/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. O Ministério Público requereu, em representação de A., sinistrada em acidente de trabalho ocorrido em 1988, com fundamento em agravamento da incapacidade, a revisão da pensão que lhe havia sido fixada. A seguradora responsável pelo pagamento da pensão, B., SPA, opôs-se com fundamento na caducidade do direito de revisão, uma vez que já haviam decorrido mais de 10 anos desde a data da última fixação da pensão.
Por despacho de 20 de setembro de 2011, o Tribunal do Trabalho de Santo Tirso julgou improcedente a exceção de caducidade invocada pela seguradora, com a fundamentação seguinte:
“Certo é que este último pedido de revisão foi formulado para além do limite temporal de 10 anos assinalado na norma do n.º 2 da Base XXII da lei 2127, de 03-08-1965, porém, o circunstancialismo supra referido, como bem saliente o MP, faz subsumir a situação em apreço ao objecto de incidência do juízo de inconstitucionalidade de tal norma, exarado, entre outros, nos Ac. do Tribunal Constitucional n.ºs 147/2006, de 22-02, 159/2007, de 30-01 e 280/2011, de 07-06.
(…)
Impõe-se, assim, a conclusão de que nos casos em que entre a fixação inicial da pensão e o termo do aludido prazo de 10 anos ocorreram, como nos autos, diversas actualizações da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pela sinistrada, nada impede que a mesma possa agora requerer nova avaliação da sua situação, sendo manifestamente inconstitucional outra leitura da situação, como largamente defende a jurisprudência.
Claro que, aquele prazo de 10 anos reporta-se sempre ao período decorrido entre a fixação (inicial) da pensão e a apresentação do requerimento de revisão, e não, como faz a ré seguradora, entre duas revisões.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
Prosseguindo o recurso, apenas o Ministério Público alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
“1. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, só permite a revisão da pensão devida a sinistrado de acidente de trabalho, nos dez anos posteriores à data da fixação da pensão, nos casos em que nesse período não tenha ocorrido qualquer actualização da pensão, por não se ter dado como provado o agravamento das lesões.
2. Efectivamente, o Tribunal tem entendido que, gozando o legislador ordinário de liberdade de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho, não lhe está vedado considerar estabilizada a situação do sinistrado ao fim de um prazo razoável, como é o de dez anos contados da fixação inicial da pensão (v.g. Acórdão n.º 271/2010).
3. Tendo ocorrido várias actualizações, considerar que a situação se estabilizou no período de dez anos contados da data da última revisão, não é violador do direito à justa reparação consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
4. Assim, a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, na interpretação segundo a qual, tendo ocorrido diversas revisões da pensão inicialmente fixada, em consequência do agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado, novo pedido de alteração com o mesmo fundamento, só pode ser requerido no prazo de dez anos contados da data da última revisão, não é inconstitucional.
5. Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso”.
II – Fundamentos
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3. Importa começar por delimitar o objeto do recurso.
A decisão recorrida retira da jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de revisão de pensões por acidentes de trabalho o entendimento de que, tendo ocorrido, como efetivamente ocorreram, alterações da pensão dentro do prazo (inicial) de dez anos a contar da sua fixação, com fundamento no agravamento das lesões, é inconstitucional impedir nova revisão, sendo irrelevante o prazo que medeia entre alterações. Assim, apesar de a revisão ter sido pedida mais de dez anos passados sobre a data da última alteração fixada, não se verificaria a caducidade do direito de revisão.
Temos, pois, que constitui objeto do presente recurso a apreciação da inconstitucionalidade da norma do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2.127, de 3 de agosto de 1965, na interpretação segundo a qual, tendo ocorrido diversas revisões da pensão inicialmente fixada, em consequência do agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado, novo pedido de alteração com o mesmo fundamento, só pode ser requerido no prazo de dez anos contados da data da última revisão.
4. A questão da constitucionalidade da fixação de limites temporais para o exercício do direito à revisão da incapacidade, com a consequente revisão da pensão por acidentes de trabalho (ou doenças profissionais), não é nova na jurisprudência constitucional. Aliás, disso dá notícia o acórdão recorrido que refere alguns acórdãos do Tribunal na matéria, cuja doutrina julgou poder suportar o juízo de inconstitucionalidade da dimensão aplicativa agora em causa.
Efetivamente, a Base XXII da Lei nº 2127 – entretanto revogada, mas praticamente reproduzida no artigo 25.º da Lei nº 100/97, de 13 de setembro, que estabelece o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho – dispunha como segue:
“Revisão de pensões
1 - Quando se verifique modificação da capacidade de ganho da vítima, proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou quando se verifique aplicação de prótese ou ortopedia, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada.
2 - A revisão só poderá ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão e poderá ser requerida uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
3 - Nos casos de doenças profissionais de carácter evolutivo, designadamente pneumoconioses, não é aplicável o disposto no número anterior, podendo requerer-se a revisão em qualquer tempo; mas, nos dois primeiros anos, só poderá ser requerida uma vez no fim de cada ano.”
Nos Acórdãos n.ºs 147/06, 59/07 e 161/09, bem como nas Decisões Sumárias n.ºs 390/08, 470/08 e 36/09 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do direito do trabalhador à justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, a citada norma do nº 2 da Base XXII da Lei nº 2127, de 3 de agosto de 1965, interpretada no sentido de consagrar um prazo absolutamente preclusivo de 10 anos, contados a partir da fixação inicial da pensão, para a revisão da pensão devida ao sinistrado com fundamento em agravamento superveniente das lesões sofridas. No mesmo sentido e pelas mesmas razões, o Acórdão nº 548/09, julgou inconstitucional, a norma do nº 2 do artigo 25.º da Lei nº 100/97, de 13 de setembro.
Diverso foi o sentido da decisão proferida nos Acórdãos n.ºs 155/03 e 612/08, bem como no Acórdão n.º 271/2010, (este incidindo sobre norma extraída de preceito legal similar no domínio das relações jurídicas de emprego público, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, relativa aos chamados “acidentes em serviço”). Mas sem contradição, porque a dimensão aplicativa concreta apreciada em cada um dos referidos conjuntos de acórdãos divergia quanto a um elemento essencial: terem ou não ocorrido 10 anos entre a anterior fixação da pensão e o pedido de revisão considerado.
Na verdade, os Acórdãos nºs 155/03 e 612/08, dizem respeito a casos em que não tinham sido formulados quaisquer pedidos de revisão de pensão dentro do prazo de 10 anos desde a fixação da pensão inicial. Já as demais decisões – com exceção do acórdão n.º 161/09, cuja ratio decidendi se explicará de seguida – respeitavam a situações que tinham em comum o facto de, desde a fixação inicial da pensão e o termo do prazo de 10 anos, ter ocorrido alguma atualização da pensão, por se ter dado como provado o agravamento das lesões sofridas pelo sinistrado. Em todos estes casos foi, pois, determinante a não estabilização, no período de tempo de 10 anos, da situação de incapacidade resultante do acidente de trabalho.
Por sua vez, no Acórdão nº 161/09 também não houvera revisão da pensão no período de 10 anos. Mas foi aí determinante o aparecimento na situação clínica do sinistrado de um elemento singular que o Tribunal considerou que afastava, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação de incapacidade resultante do acidente. Como se pode ler nesse Acórdão, « (…) o tribunal, com a concordância dos intervenientes processuais, reconheceu que, apesar de já ter decorrido mais de um decénio sobre a data da fixação da pensão, era judicialmente exigível, ao abrigo da Base IX da Lei nº 2127, como meio de reparação dos danos sofridos pelo sinistrado, uma prestação de natureza cirúrgica, a cargo da seguradora, cuja possibilidade de execução derivou da evolução das técnicas médicas, inexistentes à data do acidente.O surgimento da possibilidade dessa intervenção cirúrgica e a decisão judicial que determinou a sua prestação tornaram, naturalmente, insubsistente a “presunção” de estabilização da situação clínica (…)». A seguradora disponibilizara-se a custear a intervenção cirúrgica reservando-se o direito de, em função dos resultados, requerer a revisão da pensão (o que poderia levar à redução ou extinção do direito à pensão, caso o sinistrado recuperasse a visão). Pelo que, o Acórdão considerou «(…) igualmente atendível a pretensão de, com base em alegado agravamento da situação determinado pelas complicações derivadas do insucesso de uma segunda intervenção, se proceder è revisão da incapacidade, apesar de há muito decorrido o prazo inicial de dez anos».
5. Importa sublinhar que de nenhuma destas decisões do Tribunal pode retirar-se a ideia da imposição constitucional de uma ilimitada possibilidade de revisão das pensões por acidente de trabalho.
Pelo contrário, o entendimento do Tribunal Constitucional é o de que o legislador dispõe de alguma margem de conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental e de que não se reveste de flagrante desrazoabilidade o aludido prazo de 10 anos, decorridos sobre a data da fixação da pensão, quando não se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão nesse período. Isto porque, de acordo com a experiência médica, a ocorrência de agravamentos (ou de melhorias) tem maior incidência no período inicial, tendendo a situação a estabilizar com o decurso do tempo. Assim, o prazo legal de 10 anos, revela-se, na generalidade e segundo a normalidade das coisas, um prazo suficientemente dilatado para permitir considerar como consolidada a situação clínica do sinistrado. Num regime que globalmente é mais favorável ao sinistrado do que o regime geral de responsabilidade civil (v.gr., promoção oficiosa do procedimento, caracter objetivo da responsabilidade, irrelevância da contribuição do lesado para o acidente que não se traduza em culpa grosseira) não é incompatível com o direito à “justa reparação” a ponderação de razões de segurança jurídica e a limitação da revisibilidade pelo decurso de um período de tempo inferior ao prazo geral de prescrição.
6. Vejamos agora, à luz destas coordenadas jurisprudenciais, sem perder de vista a incidência normativa da fiscalização concreta de constitucionalidade, a situação factual que dá corpo à concreta dimensão normativa que constitui objeto de recurso. Pode resumir-se como segue:
- Com base numa incapacidade parcial permanente (IPP) de 22,5% emergente de acidente de trabalho, foi inicialmente fixada a pensão reportada a 15 de junho de 1989.
- Em 11 de dezembro de 1996 foi apresentado pelo Ministério Público, em representação da sinistrada, pedido de revisão da incapacidade que culminou com a decisão de reconhecimento do agravamento para uma IPP de 32,50%.
- Em 26 de março de 1999 foi apresentado pelo Ministério Público, em representação da sinistrada, novo pedido de revisão que culminou com a decisão, proferida em 25 de janeiro de 2000, de reconhecimento de que esse IPP de 32,50% passaria a ser concomitante com a situação de incapacidade parcial permanente absoluta para o exercício da sua profissão habitual (IPATH), aumentando a pensão atribuída.
- Em 20 de dezembro de 2010 pelo Ministério Público, em representação da sinistrada e invocando agravamento das lesões, é feito novo pedido de revisão.
Como se vê, este último pedido de revisão foi formulado para além do limite temporal de 10 anos, a contar da data da última revisão, em que o pedido datava de 26 de março de 1999 e a decisão de 25 de janeiro de 2000. Por outro lado, não consta que entre a última revisão e o atual pedido, tivesse ocorrido qualquer facto relacionado, ainda que remotamente, com o eventual agravamento das lesões. Será constitucionalmente censurável que o sinistrado não possa pedir nova revisão se, desde a última, decorreram mais de dez anos?
Da jurisprudência do Tribunal Constitucional retira-se que é constitucionalmente aceitável que o legislador possa, se não houver alterações, considerar estabilizada a situação do sinistrado ao fim de um prazo razoável, sendo dez anos um prazo razoável.
Contrariamente ao que se pressupôs na decisão recorrida, este entendimento vale não só quando se considera a data da fixação inicial da pensão, como o intervalo entre as posteriores revisões. Ou seja, não tendo havido qualquer alteração nos 10 anos seguintes à última decisão, é compatível com o direito à justa reparação por acidentes de trabalho pressupor que as lesões constatadas no último exame estão estabilizadas. De outro modo, uma vez obtida uma primeira revisão da pensão inicial, o posterior ou posteriores pedidos podiam ser feitos sem qualquer limite temporal o que seria contraditório com a razão que leva a considerar caber na discricionariedade legislativa o referido prazo de 10 anos.
Como se disse no Acórdão n.º 612/2008:
“O ponto é que o legislador dispõe de alguma margem de livre conformação na concretização do direito à justa reparação por acidentes de trabalho e doenças profissionais constitucionalmente consagrado. Pelo que a questão que poderá colocar-se, para além das já analisadas, é a de saber se a fixação de um prazo de dez anos para a admissibilidade da revisão – que, como se viu, tanto é aplicável aos pensões por acidente de trabalho como às pensões por doença profissional não evolutiva –, é susceptível de violar o próprio direito constitucional previsto no artigo 59º, n.º 1, alínea f), da Lei Fundamental.
Assentando na ideia, que já antes se aflorou, de que o direito à justa reparação por acidentes de trabalho apresenta natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a fixação de um prazo para a revisão da pensão, nos termos previstos na n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2127, configura um mero requisito relativo ao modo de exercício do direito.
E como tem sido sublinhado pelo Tribunal Constitucional, «[s]ó as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao conjunto de exigências e cautelas consignado no artigo 18º, nºs 2 e 3, da Lei Fundamental». Para que um condicionamento ao exercício de um direito possa redundar efectivamente numa restrição torna-se necessário que ele possa dificultar gravemente o exercício concreto do direito em causa (acórdão n.ºs 413/89, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi reafirmada, designadamente, no acórdão n.º 247/02).
Ora, no caso concreto, a lei fixa um prazo suficientemente dilatado, que, segundo a normalidade das coisas, permitirá considerar como consolidado o juízo sobre o grau de desvalorização funcional do sinistrado, e que, além do mais, se mostra justificado por razões de segurança jurídica, tendo em conta que estamos na presença de um processo especial de efectivação de responsabilidade civil dotado de especiais exigências na protecção dos trabalhadores sinistrados.
E, nesse condicionalismo, é de entender que essa exigência se não mostra excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade.”
Não há, pois, motivo para manter o julgado de inconstitucionalidade formulado pelo acórdão recorrido, que assenta em jurisprudência do Tribunal Constitucional que não é inteiramente transponível para o caso dos autos. Efectivamente, não ocorreu, neste caso, qualquer actualização intercalar do grau de incapacidade no período de dez anos que antecedem o novo requerimento de actualização, nem se verifica qualquer circunstância que afaste, de modo irrecusável, a presunção de estabilização da situação clínica. Pelo que não viola a alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição a norma do n.º 2 da Base XXII da Lei n.º 2.127, de 3 de Agosto de 1965, na interpretação de que o direito à revisão da pensão com fundamento em agravamento das lesões caduca se tiveram passado dez anos, contados da data da última revisão, mesmo que tenha havido alterações da pensão inicial com idêntico fundamento.
III. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se ordenar a reforma da decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita, de acordo com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de abril de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.