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Processo n.º 27/2012
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão, da decisão sumária proferida pelo relator que decidiu não conhecer das questões de constitucionalidade apontadas no seu requerimento de interposição de recurso.
2. Refutando essa decisão de não conhecimento do objeto do recurso, assim argumentou o reclamante:
“(...)
O arguido recorrente crê, apesar de tudo e do maior respeito que lhe merece a douta decisão sumária ora proferida, que os fundamentos por si invocados na interposição deste recurso têm sentido e devem merecer a apreciação deste Tribunal Constitucional.
Mau grado todo o respeito e vénia que lhe inspira e reconhece nos argumentos que conduziram à vossa decisão de “não tomar conhecimento do objeto do recurso” considera que o procedimento do Tribunal recorrido incorreu na alegada violação das regras constitucionais que se invoca nas considerações preliminares que se fazem na fundamentação das razões presidem à interposição do presente recurso para este Tribunal Superior.
O aprofundamento da Tese de Inconstitucionalidade que se defende só será possível no melhor desenvolvimento dos seus fundamentos em alegações perante o Tribunal de Recurso.
Termos em que:
Solicita a V. Exa que sujeite a decisão de “conhecer ou não do objeto deste recurso” à Conferência de Juízes desta Secção (Artº 78-A, nº 3 e 4 do R.T.C.) “.
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado do teor da reclamação, pugnou pelo seu indeferimento, o mesmo tendo feito a reclamada B., acrescentando que o comportamento processual do reclamante deve ser sancionado por consubstanciar um uso anormal do processo.
II. Fundamentação
4. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 15 de novembro de 2011, fazendo constar do requerimento de interposição de recurso, entre o mais, as seguintes indicações:
“(...)
a) - O douto Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Évora não admite recurso ordinário (Artº 400 Nº 1 alínea e) do C. Proc. Penal) pelo que, nos termos do Artº 70 Nº 2 do Regulamento do Tribunal Constitucional (Lei 28/82 de 15.11), caberá do mesmo recurso apenas para o Tribunal Constitucional;
b) - O arguido pretende interpor o presente recurso apenas quanto à questão da invocada inconstitucionalidade da decisão proferida em 1ª instância no que se refere à denegação ao arguido do depoimento das aludidas cinco novas testemunhas.
c) - O arguido tem legitimidade para a interposição do presente recurso para o Tribunal Constitucional (Artº 72 Nº 1 alínea b) e Nº 2 do Reg. Tribunal Constitucional e Artº 401 Nº 1 alínea b) do C. Proc. Penal).
d) - O arguido está em prazo para interpor o presente recurso para o tribunal Constitucional (Artº 75 Nº 1 do Reg. Tribunal Constitucional).
e) - O arguido interpõe o presente recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do Artº 70 Nº 1 alínea b) do Reg. Tribunal Constitucional pretendendo que a decisão recorrida – 1ª instância – e sua confirmação – 2ª instância – proferida ao abrigo do Artº 340 Nº 1 do C. Proc. Penal seja declarada inconstitucional por errada e inconstitucional interpretação daquele preceito à luz do Artº 32 da Constituição da República Portuguesa (Artº 75-A Nº 1 e 2 da Reg. T. C.);
f) - O arguido não só invocou aquele preceito Constitucional (Artº 32 do C.R.P.) no requerimento de prova denegado/indeferido pelo Tribunal de 1ª instância, como, por outro lado, no recurso interposto daquela decisão para este Tribunal da Relação de Évora suscitou nas suas Motivações, de forma explicada e fundamentada, a ilegalidade/inconstitucionalidade cometida pelo Tribunal recorrido na decisão proferida à luz do Artº 340 Nº 1 do C. Proc. Penal com violação do Artº 32 da C.R. (Artº 75-A Nº 2 do Reg. Trib. Constitucional)”.
2. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. Contudo, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
3. Estabelecem os artigos 280.º, n.º 1, al. b), da CRP, e 70.º, n.º1, al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal, só podem constituir objeto desse recurso constitucional normas jurídicas que tenham constituído ratio decidendi da decisão (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no DR II Série, de 15 de maio de 1996; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 821, e José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e atualizada, 2007, págs. 40 e segs).
O recurso de constitucionalidade, tal como foi gizado pelo legislador constitucional – com natureza instrumental e relativamente a normas jurídicas –, tem em vista o controlo da conformidade com a Constituição (as normas e princípios constitucionais) das normas jurídicas que tenham sido convocadas como suporte normativo da concreta decisão proferida.
Por isso mesmo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais.
Assim sendo, estão arredados do objeto do recurso os outros atos admitidos na ordem jurídica, embora estes façam, porventura, aplicação direta de normas e princípios constitucionais, como acontece com as decisões judiciais (sentenças e despachos), os atos administrativos e os atos políticos.
Deste modo, não pode, no recurso de constitucionalidade, sindicar-se a correção jurídica da sentença, seja no que se refere à determinação, no plano do direito infraconstitucional, da norma aplicada ao caso, seja no que importa à operação de subsunção das circunstâncias do caso ao quadro normativo elegido e ao resultado de uma tal atividade cognitivo-decisória, seja mesmo no que concerne à aplicação que a mesma faça diretamente das normas de direito infraconstitucional e das normas e princípios constitucionais.
A violação direta das normas e princípios constitucionais pela decisão judicial, atenta a circunstância de não vigorar entre nós o meio constitucional do recurso de amparo, apenas pode ser conhecida no plano dos recursos de instância previstos na respetiva ordem de tribunais.
Não obstante o recurso de constitucionalidade respeitar a uma decisão judicial e a decisão naquele proferida no sentido da inconstitucionalidade ou da constitucionalidade da(s) norma(s) jurídica(s), nele sindicadas, poder afetar a manutenção da decisão, porquanto um juízo, nele tirado, sobre a questão de constitucionalidade em sentido desconforme com o efetuado na decisão proferida pelo tribunal recorrido obrigará à reforma desta, o certo é que o objeto do recurso é tão só a norma jurídica que constitua a ratio decidendi da decisão. Nesse recurso, apenas cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre se a norma jurídica concretamente aplicada é ou não constitucionalmente válida.
Por outro lado, deve também referir-se que decorre dos referidos preceitos que a questão de inconstitucionalidade tenha de ser suscitada em termos adequados, claros e percetíveis, durante o processo, de modo que o tribunal a quo ainda possa conhecer dela antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal matéria e que desse ónus de suscitar adequadamente a questão de inconstitucionalidade em termos do tribunal a quo ficar obrigado ao seu conhecimento decorre a exigência de se dever confrontar a norma sindicanda com os parâmetros constitucionais que se têm por violados, só assim se possibilitando uma razoável intervenção dos tribunais no domínio da fiscalização da constitucionalidade dos atos normativos.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da via de recurso (cf., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 352/94, 560/94 e 155/95, in Diário da República II Série, respetivamente, de 6 de setembro de 1994, de 10 de janeiro de 1995 e de 20 de junho de 1995).
Ora, no caso dos autos, nenhum dos assinalados requisitos pode considerar-se satisfeito.
Vejamos.
Em primeiro lugar, cumpre anotar que o Recorrente não contesta a bondade constitucional de qualquer critério normativo, pretendendo antes que o Tribunal Constitucional sindique a inconstitucionalidade da decisão recorrida por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Tal questão, no entanto, não corporiza um objeto suscetível de integrar a esfera de competência cognitiva deste Tribunal, por não lhe caber apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. Nessa ótica, há que distinguir, para efeitos de definição do objeto do recurso de constitucionalidade, as situações em que se controverte a concreta decisão, considerada como resultado de um momento de aplicação dos preceitos legais – a isso se reconduzindo as situações em que “embora sob a capa formal da invocação da inconstitucionalidade de certo preceito legal tal como foi aplicado pela decisão recorrida - o que realmente se pretende controverter é a concreta e casuística valoração pelo julgador das múltiplas e específicas circunstâncias do caso sub judicio (…); [designadamente] a adequação e correção do juízo de valoração das provas e fixação da matéria de facto provada na sentença (...) ou a estrita qualificação jurídica dos factos relevantes para a aplicação do direito […];” (cf. CARLOS LOPES DO REGO, «O objeto idóneo dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional», in Jurisprudência Constitucional, n.º 3, p. 8) –, daquelas em que está essencialmente em causa o momento normativo da concreta realização do direito, traçado pela determinação do critério jurídico à luz do qual deve ser valorado o problema, escapando, como se disse, ao controlo do Tribunal a qualificação e a valoração da matéria de facto que com aquele momento converge no juízo decisório.
Por outro lado, mas concomitantemente, existe ainda um outro obstáculo ao conhecimento do objeto do presente recurso e que resulta do facto do Recorrente não ter suscitado, de forma processualmente adequada, qualquer questão de constitucionalidade – por antonomásia, normativa.
De facto, perante o Tribunal recorrido, o recorrente apenas controverte a decisão, à qual assaca a violação do disposto no artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e do artigo 32.º da Constituição, sem que tivesse formulado qualquer juízo de inconstitucionalidade em torno do disposto naquela norma adjetiva.
Por isso, dessas referências, exclusivamente reportadas a uma situação de facto e sem que as mesmas se encontrem referidas a uma norma ou a um critério normativo individualizado, não se extrai a suscitação de qualquer questão de inconstitucionalidade.
Como este Tribunal tem acentuado: “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido. Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao ato de aplicação do direito – concretizado num ato de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal ato ou decisão (cf. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996)”– cf. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais aí se remete.
Não podem, pois, considerar-se preenchidos os requisitos determinantes da admissibilidade do recurso.
4. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
(...)”.
5. Como resulta do relatado, o reclamante não aduz qualquer argumento suscetível de infirmar o sentido da decisão sumária reclamada, referindo, no entanto, que “o aprofundamento da Tese de Inconstitucionalidade que se defende só será possível no melhor desenvolvimento dos seus fundamentos em alegações perante o Tribunal de Recurso”.
Ora, como é consabido, a produção de alegações nos recursos de constitucionalidade apenas se justifica nos casos em que não exista obstáculo processual ao conhecimento do objeto do recurso, o que, como se decidiu, não é o que sucede nos presentes autos.
Assim sendo e reiterando os fundamentos explicitados na decisão sumária, a presente reclamação não merece acolhimento.
Refira-se, ainda, perante o teor da resposta da recorrida e aqui reclamada B., que a reclamação para a conferência de despacho do relator que decida não tomar conhecimento do objeto do recurso não configura um comportamento processual abusivo e sancionável na medida em que o reclamante tem efetivamente direito a que a sua pretensão seja apreciada por um coletivo de juízes, como, de resto sucederia caso o recurso não tivesse sido admitido pelo tribunal a quo.
III. Decisão
6. Termos em que, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 9 de Março de 2012. – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.