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Procº nº 92/98 ACÓRDÃO N.º 613/98
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACÓRDÃO NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I - RELATÓRIO:
1. - V. F. interpôs recurso de anulação do despacho de 9 de Janeiro de 1994, da CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, pelo qual foi indeferido o pedido de rectificação da sua pensão de jubilado, pelo qual pretendia que a pensão por incapacidade calculada com base em 24 anos de serviço fosse objecto de novo cálculo com referência a 36 anos de serviço, de acordo com o disposto no artigo 66º da Lei nº 28/85, de 30 de Julho e 3º da Lei nº 2/90, de 30 de Janeiro.
O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL), por decisão de 11 de Julho de 1994, rejeitou o recurso com fundamento em ilegalidade na sua interposição.
Não se conformando com o assim decidido, V. F. recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) que, por acórdão de 12 de Fevereiro de 1996, decidiu revogar a decisão recorrida, determinando que os autos prosseguissem os seus termos.
Em nova pronúncia, o TACL veio a proferir uma decisão pela qual se julgou o recurso procedente e se anulou o acto recorrido.
Inconformada com esta decisão, a CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES interpôs recurso para o STA que, por acórdão de 20 de Novembro de
1997, decidiu negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a decisão recorrida.
A Caixa recorrente suscitou nas suas alegações para o STA a questão da constitucionalidade da norma do artigo 66º da Lei nº 21/85, de
30 de Julho. No acórdão do STA que decidiu a causa, escreveu-se:
'Com efeito, com a sentença sob recurso e como vem decidindo a jurisprudência deste STA em casos similares e se deixou expresso no acórdão de 8/6/95, com fotocópia a fls. 121 e segs., em que foi relator o relator destes autos, e por isso se seguirá de muito perto, é de considerar que, nos termos do disposto no artº 66º da Lei nº21/85, a aposentação por incapacidade não implica redução da pensão, e bem assim que por via daquele preceito especial, que prevalece sobre o disposto no artº 53º do E.A., a pensão de aposentação do recorrido na situação de jubilado não tem que ser reduzida em atenção ao tempo de serviço efectivamente prestado. Também pelos fundamentos da decisão recorrida os referidos artºs 66º da Lei nº
21/85 e 3º da Lei nº2/90 não enfermam das invocadas inconstitucionalidades materiais, por violação do princípio da igualdade e ofensa do artº 63º da Constituição da República Portuguesa.'
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 66º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na interpretação feita no acórdão, de que a pensão de aposentação do ora recorrido, na situação de jubilado não tem que ser reduzida em atenção ao tempo de serviço efectivamente prestado.
2. - Neste Tribunal, a Caixa recorrente apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1ª Decorre do princípio consagrado no nº 5 do artigo 63º da Constituição que o tempo de serviço é o factor preponderante na fixação do montante das pensões de aposentação, pelo que a fixação de regras de cálculo que prescindissem do factor tempo de serviço só poderia legitimar-se constitucionalmente em função da prevalência dada a outros princípios com idêntico relevo constitucional;
2ª No caso das pensões dos magistrados jubilados, inexiste qualquer princípio constitucional que pudesse justificar a irrelevância do tempo de serviço;
3ª De facto, e ao contrário do exigido por tal princípio, não se verifica uma relação de necessidade, adequação e proporcionalidade entre as exigências próprias do estatuto dos magistrados judiciais e a consagração de um pretenso direito a pensões de aposentação por inteiro, qualquer que seja o tempo de serviço prestado;
4ª A consagração de um tal regime não só corresponde a uma diferenciação materialmente injustificada dos restantes titulares de cargos públicos face aos magistrados judiciais e dos magistrados mais antigos face aos magistrados com menor tempo de serviço, como afrontaria inclusivamente o valor constitucional subjacente ao nº 5 do artigo 63º da Constituição;
5ª Na interpretação do douto acórdão recorrido, o artº 66º da citada Lei nº
21/85 viola os artºs 13º e 63º, nº 5 da Constituição da República;'
Também o recorrido alegou e concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
'a) O artº 66º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, não colide com o preceituado nos artºs 13º e 63º, nº4, da Constituição; b) Não há inconstitucionalidade a declarar, como é de JUSTIÇA'.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - A questão que vem colocada nos presentes autos já foi objecto de apreciação deste Tribunal, pelo Acórdão nº 369/97, de 14 de Maio de 1997 (publicado in 'Diário da República, II série, de 10 de Julho de 1997), votado pelo relator dos presentes autos e que concluiu no sentido da não inconstitucionalidade da norma questionada.
A fundamentação constante do referido acórdão vai aqui seguir-se de perto, por se entender que a mesma mantém a sua eficácia e utilidade.
A norma em causa é a do artigo 66º da Lei nº 21/85, de
30 de Julho, que aprovou o Estatuto dos Magistrados Judiciais (adiante, EMJ). Esta norma estabelece que 'A aposentação por incapacidade não implica redução da pensão'.
Esta norma, insere-se no Capítulo V da Lei, sob a epígrafe ' Aposentação, cessação e Suspensão de Funções', de cuja Secção I consta também o artigo 65º, relativo à aposentação por incapacidade, com o seguinte teor:
'1. São aposentados por incapacidade os magistrados judiciais que, por debilidade ou entorpecimento das faculdades físicas ou intelectuais, manifestados no exercício da função, não possam continuar nesta sem grave transtorno da justiça ou dos respectivos serviços.
2.Os magistrados que se encontrem na situação referida no número anterior são notificados para, no prazo de trinta dias, requererem a aposentação ou produzirem por escrito, as observações que tiverem por convenientes.
3.No caso previsto no número 1, o Conselho Superior da Magistratura pode determinar a imediata suspensão do exercício de funções do magistrado cuja incapacidade especialmente a justifique.
4.A suspensão prevista no presente artigo é executada por forma a serem resguardados o prestígio da função e a dignidade do magistrado e não tem efeito sobre as remunerações auferidas.'
O instituto da jubilação consta dos artigos 67º e 68º, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, e a ele se refere também o artigo 3º da Lei nº 2/90, de 30 de Janeiro, mandando aplicar a lei aos magistrados judiciais jubilados, quer o tenham sido antes ou depois de 1 de Janeiro de 1989, bem como o artigo 123º da Lei nº47/86, de 15 de Outubro e determinando a actualização automática das pensões de aposentação dos magistrados jubilados, em função dos aumentos de remunerações dos magistrados de categoria e escalão correspondentes àqueles em que se verifica a jubilação.
A pensão de aposentação de um magistrado que foi aposentado por incapacidade absoluta, tendo apenas 24 anos de serviço e a quem veio a ser outorgado o estatuto de jubilado deve ser calculada com base em 36 anos de serviço ou apenas em 24 - esta a questão resolvida nos autos pela interpretação do artigo 66º da Lei 21/85 que optou pelo cálculo sem qualquer redução.
Esta solução ofende o princípio da igualdade e/ou o princípio da relevância do tempo de serviço no cálculo da pensão de aposentação consagrado no nº 5 do artigo 63º da Constituição?
Vejamos.
4. - De acordo com o Estatuto da Aposentação
(Decreto-Lei nº 478/72, de 9 de Dezembro), aplicável subsidiariamente à aposentação dos magistrados judiciais em tudo quanto não estiver regulado no EMJ, a aposentação ordinária pode ocorrer, independentemente de qualquer outro requisito, quando o subscritor contar, pelo menos, 60 anos de idade e 36 anos de serviço, podendo também verificar-se se o subscritor tiver, pelo menos, 5 anos de serviço e seja declarado absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções, atinja o limite de idade ou seja punido com pena expulsiva de natureza disciplinar ou por condenação penal definitiva, demitido ou colocado em situação equivalente.
A aposentação extraordinária verifica-se independentemente do decurso de um certo tempo de serviço num dos seguintes casos: (1)incapacidade permanente e absoluta do subscritor para o exercício das suas funções, em virtude de acidente de serviço ou de doença contraída neste e por motivo do seu desempenho; (2) igual incapacidade por virtude de acidente ou doença resultante da prática de acto humanitário ou dedicação à causa pública;
(3) desvalorização permanente e parcial na capacidade geral de ganho devida a acidentes e doenças referidas nos números anteriores.
Pela passagem à situação de aposentado o interessado adquire o direito à pensão de aposentação; no caso de aposentação ordinária a pensão é igual à trigésima sexta parte da remuneração que lhe serve de base multiplicada pela expressão em anos do número de meses de serviço contados para a aposentação até ao limite máximo de 36 (artigo 53º, nº1); no caso de pensão extraordinária o tempo de serviço para a fixação da pensão considera-se equivalente a 36 anos (artigo 54º).
5. - A norma questionada tem como origem a norma do artigo 64º da versão originária do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovada pela Lei nº 85/77, de 13 de Dezembro. Com efeito, nesta norma não só se prevê a faculdade de o Conselho Superior da Magistratura poder aposentar os magistrados judiciais quando, pela debilidade ou entorpecimento das suas faculdades fisicas ou mentais manifestadas no exercício da função, não pudessem continuar no exercício do cargo, sem grave transtorno da justiça ou dos respectivos serviços como se estabelece que a aposentação referida não implica a redução da pensão
(nºs 1 e 2 do artigo 64, do EMJ).
Na lei de 1985, o nº1 originou o artigo 64º do EMJ e o nº2 originou o artigo 66º da Lei nº 21/85.
No que respeita ao cálculo do montante da pensão, em caso de aposentação compulsiva, o Estatuto da Aposentação estabelecia a sua redução a 75% do montante norma (artigo 56º EA), mas o Decreto-Lei nº 191-A/79, de 25 de Julho alterou este preceito determinando que na aposentação compulsiva a pensão normalmente fixada não terá qualquer redução.
A recorrente entende que o artigo 66º da Lei nº 21/85 nada tem a ver com o regime da irrelevância do factor tempo de serviço no cálculo do montante das pensões de aposentação dos magistrados judiciais, pois se for outro o entendimento do preceito, como no caso da decisão recorrida, então, será afrontado não só o princípio da igualdade como o do artigo 63º, nº5, da Constituição.
Vejamos.
6. - De acordo com o preceituado no artigo 13º da Constituição, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (nº1) não podendo ninguém ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social (nº2).
Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional, o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º Ed. Coimbra, 1993,pág.125 e ss).
Essencialmente e para o que ao caso interessa, o princípio da igualdade, enquanto princípio de conteúdo pluridimensional, postula várias exigências, entre as quais a de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, por forma a que «aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade», vinculando em primeira linha o legislador ordinário, na sua dimensão material.
Assim, dentro da liberdade de conformação legislativa, a igualdade não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores que tem como relevantes e que podem, na sua óptica, justificar uma desigualdade concreta de um dado regime jurídico, mas veda-lhe o arbítrio e a discricionaridade legislativa, proibindo tratamentos desiguais em igualdade de circunstâncias objectivas e subjectivas e impõe o tratamento desigual em situações desiguais, salvo se ocorrerem motivos razoáveis que justifiquem diferente actuação.
Mas porque as situações da vida se não reproduzem nunca de forma total, importa encontrar o critério que, previamente definido, permita o estabelecimento da igualdade, isto é, permita reconhecer os elementos de semelhança por forma a poder afirmar-se a igualdade de duas situações susceptíveis de merecerem o mesmo tratamento jurídico. Com efeito, sendo a igualdade em sentido material um conceito relativo entre duas situações, é indispensável que o elemento relacionador esteja presente para permitir que se afirmem como iguais - e assim tratadas juridicamente de forma similar - duas situações em que esse elemento se verifique e desiguais aquelas em que ele falte
- e, por isso, tratadas de forma juridicamente diferente.
O princípio da igualdade pode assim reconduzir-se à proibição do arbítrio, tornando inadmissível a diferenciação de tratamento de situações iguais, sem qualquer justificação razoável bem como a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais, sendo um limite externo à liberdade de conformação ou de decisão do legislador, servindo como princípio negativo de controlo, continuando a caber-lhe a qualificação das situações de facto que podem funcionar como elementos de referência ou de comparação.
Existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio sempre que os limites externos de discricionaridade legislativa são afrontados pela falta de adequado suporte material para a medida legislativa tomada.
7. - Voltando ao caso em apreço, o princípio da igualdade tal como atrás fica exposto (e em que se seguiu de perto o Acórdão nº
369/97) é afectado pela interpretação que a decisão recorrida deu à norma do artigo 66º do EMJ?
Escreveu-se nesse acórdão:
'Ora nesta perspectiva das coisas há-de dizer-se que a norma do artigo 66º do estatuto dos Magistrados Judiciais, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, não se apresenta como desrazoável ou inaceitável no contexto do ordenamento, tendo em conta os específicos valores que estão em causa e os fins visados com a aposentação e jubilação dos magistrados judiciais. Com efeito, a situação económica e social dos titulares dos órgãos de soberania mereceu, desde logo, por parte do legislador constitucional uma tratamento que visa salvaguardar o prestígio das instituições do Estado e daqueles que em cada momento as representam. E tal preocupação tem sido reiterada pelo legislador ordinário, designadamente pela Assembleia da República, nos diversos diplomas respeitantes ao estatuto dos titulares dos órgãos de soberania.'
Assim, se é particularmente importante a situação dos titulares dos órgãos de soberania enquanto no exercício de funções, não pode deixar de ser relevante para o prestígio desses órgão e do Estado as condições económicas e sociais em que passam a viver, quando deixaram de o ser, os titulares que exerceram essas funções.
A aposentação dos magistrados judiciais por incapacidade assemelha-se à aposentação extraordinária ainda que sem a verificação dos respectivos pressupostos sendo uma medida legislativa entendida como dando causa ao cálculo de pensão por inteiro sem atender ao tempo de serviço efectivamente prestado não deixa de ter um mínimo de suporte material justificador da sua legitimidade constitucional.
Escreve-se no Acórdão 369/97:
'Com efeito, compreende-se o sentido e alcance da solução encontrada quando se tem em consideração que os magistrados judiciais aposentados por incapacidade, hão-de ser portadores de 'debilidade ou entorpecimento das faculdades físicas ou intelectuais, manifestadas no exercício da sua função' em termos tais que os impossibilitam de continuar nesta sem grave transtorno da justiça ou dos respectivos serviços. Em tal contexto, face a um grau tão elevado de incapacidade e procurando assegurar ao incapacitado - titular de um órgão de soberania - condições de sobrevivência dignas e consentâneas com o seu estatuto profissional, pode afirmar-se existir ali a suficiente fundamentação material. Assim sendo, não se tem a norma do artigo 66º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, quando interpretada no sentido de que os magistrados judiciais aposentados ou jubilados por incapacidade têm direito à pensão de aposentação por inteiro, independentemente do tempo de serviço, como violadora do artigo 13º da Constituição. Como, do mesmo modo, e ao contrário do alegado pelo recorrente, tal norma, assim interpretada, não viola o artigo 63º, nº5, da Constituição que rege sobre o cálculo das pensões de velhice e invalidez no sistema se segurança social.'
É esta jurisprudência que aqui se reitera.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte respeitante à questão de constitucionalidade.
Lisboa,21 de Outubro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa