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Procurador-Geral Adjunto concluiu as
suas alegações como segue:
1º - A possibilidade, conferida ao secretário judicial pelo artigo 7º do
Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, de recusar o pedido de injunção quando
este se não adeque às finalidades tipificadas no artigo 1º constitui simples
decorrência de existir um evidente e ostensivo erro na forma de processo
escolhida pelo requerente, e não prolacção de qualquer decisão de mérito, ainda
que liminar, sobre a pretensão formulada.
2º - A aposição da fórmula executória, nos casos em que se consumou a
notificação por via postal do requerido e em que este não deduziu oposição, nos
termos do artigo 5º, em conjugação com os artigos 4º e 6º, nº 2, do mesmo
diploma legal, não representa a prolacção de qualquer decisão de natureza
jurisdicional que traduza composição do eventual litígio que oponha o credor ao
devedor, mas tão‑somente a certificação por aquele funcionário judicial de que,
tendo-se consumado a notificação do pedido de injunção ao requerido e não tendo
sido deduzida por este oposição, se mostra constituído, nos termos da lei,
título executivo extrajudicial.
3º - Não traduzindo a referida aposição da fórmula executória a prática de
qualquer acto jurisdicional de composição do litígio, não envolve qualquer
preclusão relativamente aos meios de defesa que, em processo executivo, ao
executado é lícito opor ao exequente o qual seguirá necessariamente a forma
sumária (artigo 465º, nº 2, do Código de Processo Civil), iniciando-se com a
citação do executado e comportando a eventual dedução de embargos nos amplos
termos consentidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil.
4º - O regime constante do Decreto-Lei nº 404/93 não implica, deste modo,
violação do preceituado nos artigos 205º e 206º da Constituição da República
Portuguesa, já que não resulta conferida ao secretário judicial qualquer
competência para proceder, à revelia do juiz, a uma composição do conflito de
interesses privados entre o requerente e requerido no procedimento de injunção,
esgotando-se a actividade que lhe é consentida na mera certificação de que se
mostra criado, nos termos de lei, título executivo extrajudicial.
5º - O mesmo regime em nada ofende o princípio do contraditório, ínsito nos
artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, já que não preclude ao requerido qualquer
direito de defesa: na verdade, se este não foi notificado, ou deduziu oposição,
seguem-se os termos do processo declarativo sumaríssimo, que naturalmente são
idóneos para assegurar tal direito; no caso contrário, a aposição da fórmula
executória em nada preclude a dedução de embargos de executado, nos amplos
termos permitidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil, já que
obviamente a execução a instaurar se não baseia em sentença.
Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso, determinando-se
a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de
constitucionalidade das normas desaplicadas.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se as normas que
se contêm nos artigos 4º e 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro
(no último, na parte em que prevê a apresentação dos autos à distribuição, no
caso de se ter frustrado a notificação por via postal), são ou não
inconstitucionais.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
Conquanto o juiz a quo tenha recusado aplicação, com
fundamento na sua inconstitucionalidade, a todo o Decreto-Lei nº 404/93, de 10
de Dezembro, só constituem objecto do recurso as normas que se deixam indicadas,
pois que, sendo elas as únicas que foram aplicadas no caso pelo secretário
judicial, só a elas pôde o juiz recusar aplicação, ao declarar 'nulo todo o
processado' anterior.
Para que se abra a via do recurso de constitucionalidade
previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
não basta, com efeito, que, numa decisão judicial, se julgue inconstitucional
determinada norma legal. Necessário é também que a decisão do caso convoque tal
norma. Se tal não suceder, se a norma julgada inconstitucional não for aplicável
na decisão do caso, então, esse julgamento de inconstitucionalidade mais não é
do que um obiter dictum ou um argumento ad ostentationem, não assumindo, pois, a
natureza de ratio decidendi, essencial para que se possa falar em desaplicação.
A este propósito, escreveu-se no acórdão nº 169/92
(Diário da República, II série, de 18 de Setembro de 1992) o seguinte:
Entre nós, os tribunais comuns (expressão que se usa, aqui, para designar todos
os outros tribunais, com excepção do Tribunal Constitucional) têm acesso directo
à Constituição. Dispõem, por isso, de competência para, eles próprios,
apreciarem e decidirem as questões de constitucionalidade que se suscitem nas
causas que têm de julgar.
Tal competência, própria de um sistema de judicial review, é no entanto, uma
competência 'vinculada', no sentido de que os tribunais comuns só podem decidir
as questões de constitucionalidade, que tenham por objecto as normas jurídicas
que forem aplicáveis ao caso concreto submetido a julgamento, recusando
aplicação às que tiverem por inconstitucionais.
Por isso, se determinada norma jurídica não for aplicável ao caso submetido a
julgamento (isto é, se a decisão do caso sub iudice não convocar a sua
aplicação), o tribunal da causa não deve pronunciar-se sobre a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessa norma. Se o fizer, profere
ele uma decisão sem interesse para o julgamento da causa. E mais: nessa
hipótese, se o julgamento proferido for no sentido da inconstitucionalidade, não
há desaplicação dessa norma, justamente porque ela não era aplicável ao caso, e,
por este motivo, se julgar tal norma não inconstitucional, também não existe
aplicação dela.
Vale isto por dizer que, em tal hipótese, não se abre a via do recurso de
constitucionalidade - recurso que se interpõe das decisões dos outros tribunais
para o Tribunal Constitucional, que é a quem cabe a última e definitiva palavra
na matéria.
Só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou
aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela foi
lançada) for relevante para a decisão da causa (isto é, só quando tal norma for
aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido), é que se
justifica a intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso. Só nesse
caso, com efeito, a decisão que o Tribunal Constitucional vier a proferir sobre
a questão de constitucionalidade, que foi apreciada pelo tribunal recorrido, é
susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo (ou
seja, sobre a decisão da causa julgada por este último tribunal). Ora, o
Tribunal Constitucional tem dito repetidamente que o recurso de
constitucionalidade desempenha uma função instrumental, só devendo, por isso,
conhecer-se das questões de constitucionalidade, se a sua decisão puder influir
utilmente na decisão da questão de fundo. (cf., no mesmo sentido, entre
outros, o acórdão nº 182/92, por publicar).
Disse-se que apenas foram aplicadas pelo secretário
judicial as normas dos artigos 4º e 6º, nº 2 (este, na parte que prevê que,
frustrada a notificação por via postal, o secretário judicial apresente os autos
à distribuição). E assim é, na verdade, pois que, apresentado que foi o
requerimento contendo o pedido de injunção, o secretário judicial proferiu, nos
termos do artigo 4º, o seguinte despacho: 'Registe e notifique'. E, como não foi
possível a notificação do requerido, por carta registada com aviso de recepção,
o mesmo secretário judicial, ao abrigo do que preceitua o artigo 6º, nº 2,
proferiu o despacho que segue: 'À distribuição. Notifique'. Distribuídos, foram
os autos conclusos ao juiz, que proferiu o despacho aqui sob recurso.
Não há, pois, que apreciar aqui se é ou não
inconstitucional a norma que se contém no artigo 7º (conjugado com o artigo 1º)
do citado Decreto-Lei nº 404/93 - que prevê que o secretário judicial recuse a
aposição da fórmula executória ('execute-se') se o pedido de injunção se não
destinar a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de
contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1ª
instância - que o juiz a quo disse relevar da função jurisdicional, por
constituir 'acto de administração da justiça'.
Tal norma não foi, de facto, aplicada no caso. Aplicado
foi - repete-se - o artigo 4º: o secretário judicial ordenou a notificação, por
constatar não ser caso de aplicar o artigo 7º.
Também não foi aplicado o artigo 5º do mesmo diploma
legal - que prescreve que 'na falta de oposição [do requerido], ou em caso de
desistência da mesma, o secretário judicial do tribunal apõe a seguinte fórmula
executória no requerimento de injunção: 'Execute-se'' - que o juiz entende ser
inconstitucional, em virtude de a aposição da fórmula executória constituir 'um
acto de carácter jurisdicional, na medida em que se está a assegurar a defesa de
interesses legalmente protegidos'. Aplicado foi - repete-se - a segunda parte do
nº 2 do artigo 6º.
Na verdade, foi justamente porque o requerido não chegou
a ser notificado, que o secretário judicial levou os autos à distribuição.
As normas constantes do artigo 6º, nº 1, e nº 2,
primeira parte (oposição do requerido e termos subsquentes), também não foram
aplicadas.
De resto, o juiz a quo também não explicitou em que se
traduziria a inconstitucionalidade de tais normas, do mesmo modo que o não fez
quanto às normas que se contêm nos restantes artigos do diploma legal
mencionado.
5 A questão de constitucionalidade:
O artigo 4º dispõe como segue:
Artigo 4º (Notificação da injunção)
Recebido o pedido, o secretário judicial do tribunal notifica o requerido, por
carta registada com aviso de recepção, remetendo cópia da pretensão e dos
documentos juntos, devendo indicar, de forma inteligível, o objecto do pedido e
demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo, ainda, expressamente,
o último dia do prazo para a oposição.
O artigo 6º, nº 2, na parte aqui sub iudicio, reza
assim:
Artigo 6º
1. [...]
2. [...] ou frustrando-se a notificação por via postal, o secretário judicial do
tribunal apresentará os autos à distribuição, sendo conclusos ao juiz, [...].
O juiz recorrido entende que o Decreto-Lei nº 404/93, de
10 de Dezembro, todo ele - e, portanto, também as normas acabadas de transcrever
-, 'na parte em que confere poderes ao secretário judicial para dirigir o
processo de injunção', é inconstitucional, 'por violação do disposto no artigo
205º da Constituição', ou seja, porque tal diploma legal comete ao secretário
judicial a prática de actos materialmente jurisdicionais.
Este Tribunal já, em diversas ocasiões, se pronunciou
sobre o que deve entender-se por função jurisdicional [cf., entre outros, os
acórdãos nºs 71/84, 104/85, 98/88, 182/90 e 443/91 (Diário da República, II
série, de 2 de Janeiro de 1985, de 2 de Agosto de 1985, de 22 de Agosto de 1988,
de 11 de Setembro de 1990, e de 2 de Abril de 1992, respectivamente)].
Escreveu-se no acórdão nº 98/88, acabado de citar -
seguindo, de resto, na esteira de AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ (cf. 'A função
administrativa', in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, 1977, página
31) - que o quid specificum distintivo de um acto de índole jurisdicional
'estará na circunstância de que ele 'não apenas pressupõe, mas é necessariamente
praticado para resolver uma questão de direito', de que nele não se tem em vista
'conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica
decorrente da resolução dessa questão de direito''.
É, portanto, na resolução de conflitos relativos a casos
concretos - resolução que se faz lançando mão de normas jurídicas ou de
critérios legais pré-existentes - que reside o punctum saliens caracterizador da
função jurisdicional, a qual, assim, outro interesse público não prossegue, nem
realiza, que o da composição desses conflitos. O seu fim específico é, pois, a
realização do direito e da justiça.
Escreveu-se lapidarmente no acórdão nº 182/90 que a
função jurisdicional se consubstancia 'numa composição de conflitos de
interesses, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com
a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização
do Direito ou da Justiça'.
Sendo estas as notas caracterizadoras da função
jurisdicional, é óbvio que - contrariamente ao que sustenta o juiz a quo - os
poderes conferidos ao secretário judicial pelos artigos 4º e 6º, nº 2 (na parte
aqui sub iudicio) para 'dirigir o processo de injunção' não são poderes próprios
da função jurisdicional, pois que nenhum conflito aí se resolve.
De resto, para se ver que assim é, basta pensar nas
muitas notificações feitas pela secretaria sem necessidade de prévio despacho
judicial (cf. artigos 229º, nº 3, 236º, nº 2, 245º, nº 1, 526º, 539º, entre
muitos outros, do Código de Processo Civil) e no facto de a apresentação de
papéis à distribuição ser acto da competência do secretário judicial, a quem
cumpre não os admitir, se eles não contiverem todos os requisitos externos
exigidos por lei (cf. artigo 213º do Código de Processo Civil, conjugado com as
alíneas b) e c) do mapa I anexo ao Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, na
redacção do Decreto-Lei nº 364/93, de 22 de Outubro).
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência,
revoga-se a decisão recorrida, a fim de ser reformada em conformidade com o aqui
decidido sobre a questão de constitucionalidade,
Lisboa, 27 de Junho de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luis Nunes de Almeida