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Proc. nº 33/91 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., B. e C. propuseram no Tribunal do Trabalho do Barreiro uma acção declarativa, seguindo a forma de processo ordinário, contra (instituição bancária) D., pedindo que fossem declarados nulos os despedimentos de que foram alvo e, em consequência, fosse a ré condenada a reintegrá-los nas respectivas categorias profissionais e postos de trabalho, sem perda de quaisquer direitos ou regalias e a pagar-lhes todas as prestações remuneratórias vencidas e vincendas.
Invocaram para tanto, inter alia, a inconstitucionalidade da Portaria do Ministro das Finanças, de 19 de Novembro de
1986, bem como do Decreto-Lei nº 30.689, de 27 de Agosto de 1940, por preverem um regime falimentar específico para as instituições bancárias.
A acção veio, no entanto, a ser julgada improcedente, por sentença do Mmº. Juiz do Tribunal do Trabalho do Barreiro, de
14 de Abril de 1988.
2. Apelaram, então, os autores para o Tribunal da Relação de Lisboa, considerando, entre o mais, que os dois mencionados diplomas retiram à jurisdição dos tribunais o processo falimentar da recorrida, confiando-o a uma Comissão Liquidatária, e violam o princípio constitucional da igualdade, ao impedirem o acesso dos autores aos tribunais.
Mas o tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 5 de Julho de 1989, confirmou a sentença recorrida.
3. Deste aresto interpuseram os autores recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por Acórdão de 5 de Dezembro de 1990, negou a revista e confirmou o Acórdão da Relação.
4. Deste último aresto interpuseram os autores novo recurso, desta vez para o Tribunal Constitucional.
No requerimento do recurso, limitaram-se os recorrentes a dizer que interpunham recurso do douto Acórdão que negou a revista 'ao abrigo das disposições conjugadas da respectiva Lei Orgânica que se contêm na alínea b) do nº1 do artigo 70º, alínea b) do nº1 e nº 2 do artigo 72º'.
Mas, não obstante isto, o recurso foi admitido, por despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de
13 de Janeiro de 1991.
5. Dado que o requerimento não continha os elementos exigidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82 - concretamente, não indicava a norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse, não individualizava a norma ou princípio constitucional que se considerava violado, nem fazia menção da peça processual em que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade - , o relator neste Tribunal convidou os recorrentes a suprir as deficiências detectadas.
6. Em cumprimento do despacho do relator, vieram os recorrentes apresentar novo requerimento, no qual dizem, inter alia, o seguinte:
a) Que o recurso vem interposto 'do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou a Revista e confirmou o Acórdão da Relação de Lisboa de fls... o qual, por sua vez, confirmou a sentença da primeira instância que julgou improcedente a acção, por via da tese da total conformidade do D.L. 30689 de 27-8-1940 com a Constituição da República Portuguesa';
b) 'Decidindo, como decidiu, o douto Acórdão em apreço violou a Constituição da República Portuguesa, designadamente quanto ao disposto nos artigos 205º,206º (função jurisdicional), artigo 13º
(princípio da igualdade),artigo 20º- (acesso aos Tribunais) e ainda os seus artigos 17º e 18º';
c) 'Os ora recorrentes suscitaram esta questão da inconstitucionalidade quer do diploma em apreço (D.L. nº 30.689 de
27/8/1940), quer da Portaria do Ministério das Finanças, de 19 de Novembro de
1986, por via da qual foi ordenada a liquidação da recorrida e foram os recorrentes impedidos de trabalhar, desde logo na petição inicial da acção (cfr. artigos 5º e seguintes dessa peça processual) tendo aliás sustentado tal tese ao longo dos seus recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. ponto 6º e conclusões 4ª e 5ª das respectivas alegações) e Supremo Tribunal de Justiça (cfr. conclusões 1ª a 9ª e 16ª)'.
7. Em face do novo requerimento apresentado pelos recorrentes, o relator lavrou uma exposição prévia no sentido de que não se devia conhecer do recurso. Nela se escreveu:
'Como se alcança do anteriormente referido, sob o nº4, al. b) [agora, é o nº6, al.b)], os recorrentes reputam de inconstitucional o aresto recorrido - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Dezembro de 1990. Ora, como é sabido, e tem sido afirmado por este Tribunal, em jurisprudência uniforme e constante, objecto do controlo da constitucionalidade são apenas normas jurídicas e não quaisquer outros actos do poder público, designadamente as decisões judiciais elas mesmas [cfr., inter alia, os Acórdãos nºs 123/89 (publicado no Diário da República, II Série, de
29/4/89), 391/89 (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Setembro de 1989) e 60/90 (ainda inédito)].
Seria este um fundamento suficiente para indeferir o requerimento de interposição do recurso, por falta de um dos pressupostos da sua admissibilidade. Como, porém, o recurso foi admitido, estar-se-ia, agora, perante uma razão para dele não conhecer.
Todavia, ainda se poderia entender que os recorrentes não imputaram a inconstitucionalidade ao Acórdão recorrido em si mesmo considerado, mas apenas enquanto nele foram aplicadas normas jurídicas arguidas de inconstitucionalidade. E vistas as coisas por este ângulo, ter-se-ia de considerar preenchido o aludido pressuposto recurso de constitucionalidade.
Seja como for, os recorrentes, como decorre do que se escreveu no ponto 4, al. c) [agora, é o ponto 6, al. c)], limitaram-se a dizer que suscitaram a questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 30689, de 27/8/1940.
Não indicaram eles, contrariamente ao que preceitua o nº1 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, a norma (ou normas) de direito ordinário que entendiam ser violadoras da Constituição ou dos princípios nela consignados. Acresce que, também em contravenção do disposto no nº 2 daquele preceito, os recorrentes omitiram a indicação da norma ou princípio constitucional que consideravam violado.
Estas razões justificariam também que se tivesse indeferido o requerimento de interposição do presente recurso. Com efeito, deve entender-se que não preenche, pelo menos nas hipóteses de inconstitucionalidade material, o requisito de indicação da norma (ou normas), cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie, a mera referência de que um diploma legal - in casu, o Decreto-Lei nº 30.689, de
27/8/1940 - é inconstitucional, sobretudo quando ele é constituído por um número tão elevado de disposições - no caso concreto, 67 artigos - que é logicamente impossível que todas elas tenham sido aplicadas na decisão recorrida.
Não tendo o recurso sido rejeitado, haverá que dele agora não conhecer.
Referem ainda os recorrentes que suscitaram durante o processo a questão de inconstitucionalidade da Portaria do Ministro das Finanças, de 19 de Novembro de 1986 (in DR, II Série, nº 267, de 19 de Novembro de 1986).
Acontece, porém, que esta Portaria não
é uma norma jurídica, mas sim um acto administrativo, que revestiu aquela forma, ex vi do artigo 11º do Decreto-Lei nº 30.689, de 27/8/1940.
A mencionada Portaria é um acto jurídico praticado pelo Ministro das Finanças, de natureza individual e concreta, que retirou à D. a autorização de exercício do comércio bancário e ordenou a sua imediata liquidação. Ora, não sendo uma norma jurídica, não pode a mencionada Portaria ser objecto de controlo de constitucionalidade.
Do que vem de expor-se, os requerimentos de interposição do presente recurso não preenchem os requisitos exigidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82. Ora, dispondo o nº 2 do artigo 76º desta Lei que 'o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido quando não satisfaça os requisitos do artigo 75º-A, mesmo após o suprimento previsto no seu nº 5', forçoso é concluir que deve indeferir-se o requerimento de interposição do recurso de fls.
155. Não tendo isso acontecido, não pode agora conhecer-se do recurso'.
8. Sobre esta exposição prévia foram ouvidos os recorrentes e a recorrida.
Os primeiros sustentaram, na sua resposta, que o requerimento de interposição do recurso se encontra em conformidade com os requisitos ínsitos no artigo 75º-A da Lei nº 28/82, uma vez que, durante o processo e desde a petição inicial, defenderam a inconstitucionalidade de todas as normas do Decreto-Lei nº 30.689, de 27 de Agosto de 1940, e, bem assim, porque emitida sob a respectiva égide (ao abrigo do artigo 11º do mesmo), da Portaria do Ministro das Finanças, de 19 de Novembro de 1986, por violarem preceitos da Constituição da República Portuguesa de aplicação directa.
Por sua vez, a recorrida, depois de manisfestar a concordância com a exposição prévia e de referir que os poderes de cognição do Tribunal Constitucional na fiscalização concreta dos juízos de constitucionalidade material incidem apenas sobre a 'norma jurídica', defende que a persistência dos recorrentes em não indicarem a norma ou normas legais levará a que, para além de não se conhecer do objecto do recurso, eles sejam condenados como litigantes de má fé, por insistirem em pretensão cuja falta de fundamento já não podiam desconhecer.
9. Tendo sido notificados os recorrentes para se pronunciarem sobre o pedido de condenação como litigantes de má fé, propugnam eles pelo seu desatendimento, dado que a discordância por si expressa perante a exposição prévia do relator deve ser entendida como a emissão de uma opinião que, segundo pensam, se apoia na lei e se firma em fundamentos lógicos, coerentes e totalmente sólidos, quer do ponto de vista fáctico, quer do seu enquadramento jurídico - atitude essa que não configura uma lide dolosa, a
única justificadora da condenação por litigância de má fé.
II
10. Concordando o Tribunal com a exposição prévia do relator no sentido de que não deve tomar-se conhecimento do recurso, resta averiguar e decidir se, in casu, estão reunidos os pressupostos justificativos da condenação dos recorrentes como litigantes de má fé.
Adiantar-se-á, desde já, que a decisão
é negativa.
11. Nos termos do nº 5 do artigo 84º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'o Tribunal Constitucional pode, sendo caso disso, condenar qualquer das partes em multa e indemnização como litigante de má fé, nos termos da lei de processo'.
Por seu lado, o nº 2 do artigo 456º do Código Processo Civil define como litigante de má fé 'não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade'.
12. A doutrina a jurisprudência convergem no sentido de que só a lide essencialmente dolosa justifica a condenação como litigância de má fé e não já a lide meramente temerária ou ousada, nem muito menos a sustentação de teses controvertidas na doutrina ou a defesa de interpretações, sem grande solidez ou consistência, das normas jurídicas.
Neste sentido, salienta Alberto Reis que 'a simples proposição de acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito, e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir '
(cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1949, p. 263).
13. No caso dos autos, os recorrentes defenderam com veemência que, para os efeitos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, era suficiente a invocação da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 30.689, de
27 de Agosto de 1940, sem individualização das normas que o tribunal a quo aplicou, já que, na sua óptica, todas as normas daquele diploma legal enfermam de inconstitucionalidade.
Entende, pois, o Tribunal que os recorrentes, ao reiterarem aquele ponto de vista, mesmo após serem alertados para a sua incorrecção jurídica, não estavam a deduzir pretensão cuja falta de fundamento não ignoravam, a fazer do processo um uso manifestante reprovável ou a entorpecer a acção da justiça.
Daí que não se possa falar em litigância de má fé por parte dos recorrentes.
III
14. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se os recorrentes em custas, para o que se fixa a taxa de justiça em 4 unidades de conta.
Lisboa, 20 de Novembro de 1991
Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa