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Proc. nº 54/95
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. com os sinais dos autos foi condenado por
acórdão de 21 de Junho de 1994 na pena única de três anos de prisão pela prática
dos crimes de introdução em casa alheia previsto e punido pelo art. 176º nºs 1 e
2 do Código Penal e de ofensas corporais cometidas contra a assistente B. crime
previsto e punido pelo art. 144º nº 2 do mesmo diploma. Esta condenação foi
proferida pelo Tribunal de Círculo de Coimbra em processo de querela e por
tribunal colectivo na ausência do arguido o qual - tendo sido notificado
pessoalmente para o julgamento - faltou tendo o julgamento sido feito 'como se
estivesse presente em conformidade com o disposto no parágrafo 5 do art. 571º do
Cod. Proc. Penal de 1929' (despacho documentado em acta a fls. 241 dos autos).
Na sentença condenatória foram considerados dois perdões sucessivos de um ano de
prisão concedidos pelas Leis de Amnistia de 1991 e de 1994 o último sob condição
resolutiva.
O arguido veio depois justificar a falta tendo
sido considerado relevada esta última (despacho de fls. 253).
Em tempo interpôs recurso para o Tribunal da
Relação de Coimbra o qual foi admitido.
Nas suas alegações o arguido suscitou entre
outras questões a da inconstitucionalidade do § 5º do art. 571º daquele diploma
invocando a doutrina do acórdão nº 212/93 do Tribunal Constitucional a propósito
de norma paralela (corpo do art. 566º do mesmo diploma processual penal). Pediu
por isso a anulação do julgamento. Nas contra-alegações o Ministério Público
sustentou a plena constitucionalidade da norma impugnada. A mesma posição foi
assumida pela assistente.
Porém no visto do Ministério Público na 2ª
instância preconizou-se a desaplicação da norma por inconstitucionalidade (a fls
282).
Através de acórdão de 21 de Dezembro de 1994 a
Relação de Coimbra anulou o julgamento realizado sem a presença do arguido
desaplicando o § 5º do art. 671º do CPP de 1929 com fundamento em
inconstitucionalidade. Refere-se no aludido acórdão:
'O que está em causa na questão com que ora estamos confrontados é a realização
de uma audiência de julgamento em processo de querela sem a presença física do
réu como se este estivesse presente numa situação que se não pode reputar de
pura «revelia» - cfr. arts. 563º 565º 569º e 570º e segs. do C.P.P. de 1929 -
mas apenas de «revelia imprópria».
Assegurará um tal julgamento todas as garantias de defesa do réu?
Impõe-se a negativa a nosso ver.
Como bem se refere no Acórdão do T.C. nº 212/93 [...] da sua
ausência em audiência «resulta que ao arguido não é dada oportunidade para
pessoalmente expor as suas razões para exercer o seu direito a ser ouvido para
enfim se postar numa realização de imediação perante o Juiz ao qual é exigido o
conhecimento da sua personalidade conhecimento esse que sem a sua presença é
muito dificilmente atingível».
A presença do réu na audiência de julgamento vem a ser «um
verdadeiro direito que lhe cabe» o que a doutrina vem acentuando [...].
Em tal sorte de julgamento [sem a presença do arguido] o Estado
pode estar a realizar o seu jus puniendi mas no olvido das garantias de direitos
fundamentais do acusado e de que mais do que punir só tem interesse em punir o
verdadeiro culpado no olvido do respectivo pelo exercício do contraditório por
parte do réu e da integral satisfação da verdade material.
Há pois que reputar inconstitucional por violação do normativo
dos arts. 2º e 32º 1 e 5 C.R.P. o § 5º do art. 571º do C.P.P. que nos ocupa
enquanto permite o julgamento do réu à sua revelia como se estivesse presente'
(a fls. 286 e vº dos autos)
Deste acórdão interpôs o Ministério Público
recurso obrigatório de constitucionalidade nos termos do art. 70º nº 1 alínea a)
da Lei do Tribunal Constitucional. O recurso foi admitido por despacho de fls.
292.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações a entidade recorrente concluiu
no sentido da inconstitucionalidade da norma do § 5º do art. 571º do C.P.P. de
1929 'na parte em que dispõe que se o réu não comparecer ao julgamento
proceder-se-á ao julgamento à sua revelia como se estivesse presente' por
violação 'do princípio das garantias de defesa (artigo 32º nº 1 da Constituição)
do princípio do contraditório (artigo 32º nº 5 da Constituição) e dos princípios
da imediação de prova e da verdade material ínsitos na ideia de Estado de
direito democrático (artigo 2º também da Constituição' (a fls. 306-307 dos
autos). Pediu por isso a confirmação do acórdão recorrido.
O recorrido arguido não apresentou alegações.
3. Foram corridos os vistos.
Por não haver razões que a tal obstem impõe-se
conhecer do objecto do recurso.
II
4. Constitui objecto do recurso a norma da 1ª
parte do § 5º do art. 571º do Código de Processo Penal a qual foi desaplicada
com fundamento em inconstitucionalidade na decisão recorrida.
O art. 571º deste diploma encontra-se no primeiro capítulo do
Título VII capítulo esse que disciplina os processos de ausentes. A lei
processual penal de 1929 prevê as situações de ausência injustificada
nomeadamente por evasão de ausência justificada por impossibilidade de
comparência anterior ou posterior ao início do julgamento e regula a respectiva
tramitação. Aquele artigo regula precisamente a tramitação processual no caso de
ausência do réu em processo de querela ou correccional.
No caso sub judicio o arguido já tinha sido
julgado à revelia tendo requerido novo julgamento nos termos do § 4º do art.
571º CPP 1929.
Marcado novo dia para julgamento verificou-se a
situação contemplada no § 5º do art. 571º que se transcreve:
'Se o réu por qualquer motivo não comparecer no dia novamente designado
proceder-se-á ao julgamento à sua revelia como se estivesse presente e o prazo
para o trânsito em julgado da sentença contar-se-á desde a data da publicação
não podendo em caso algum requerer-se novo julgamento.'
5. Consoante é referido nas alegações do
Ministério Público a doutrina portuguesa no domínio do processo penal regulado
no Código de 1929 vinha sustentando de forma uniforme que a presença do réu no
julgamento penal é um direito do arguido condição de concessão de uma plena
garantia à defesa deste (por todos Eduardo Correia 'Breves reflexões sobre a
necessidade de reforma do Código de Processo Penal relativamente aos réus
presentes ausentes e contumazes' in Revista de Legislação e Jurisprudência anos
110º 114º e 115º maxime ano 110º pág. 99).
Com base nesta orientação unânime a Comissão
Constitucional pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade dos §§ 1º 2º e
3º do art. 418º do Código de Processo Penal de 1929 por violação do princípio
constitucional do contraditório. Este parecer levou à declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral dessas normas pela resolução
do Conselho da Revolução nº 62/78 de 19 de Abril de 1978 (veja-se o parecer e a
resolução in Pareceres da Comissão Constitucional vol. 5º págs. 79 e segs. e 85)
O Tribunal Constitucional manteve este
entendimento pacífico em diferentes acórdãos: no Acórdão nº 394/89 (in Acórdãos
13º vol. II págs. 1087 e segs) julgou inconstitucional a norma do art. 394º nº 3
do Código de Justiça Militar na parte em que permite se proceda ao julgamento
sem a presença do réu; no Acórdão nº 212/93 (in Diário da República II Série nº
127 de 1 de Junho de 1993) e nos Acórdãos nºs 479/93 350/94 351/94 e 333/95
todos inéditos julgou inconstitucional a norma do corpo do art. 566º do Código
de Processo Penal.
No caso da norma sub judicio a única
particularidade consiste em a não comparência do réu ao julgamento ocorrer num
segundo julgamento por ele requerido após um primeiro julgamento à revelia.
Essa diferença não é porém de molde a afastar o
juízo de inconstitucionalidade da norma desaplicada por se lhe aplicarem os
fundamentos do juízo de inconstitucionalidade expresso na indicada
jurisprudência.
De facto e como sustenta o Ministério Público nas
suas alegações a similitude do caso sub judicio com os anteriormente indicados e
que estão na origem desses acórdãos é total já que não se está 'perante uma
situação de revelia própria em que o paradeiro do arguido é desconhecido e este
não é notificado para julgamento mas antes de revelia imprória (como é
vulgarmente designada) em que o arguido foi notificado para o julgamento e
faltou tendo sido julgado como se estivesse presente' (a fls. 304). Sempre seria
possível no caso sub judicio obter a comparência forçada do arguido tal como se
acha previsto no novo Código de Processo Penal (comparência sob custódia -
vejam-se arts. 333º e 116º nºs 1 e 2 deste diploma).
Como refere ainda a entidade recorrente:
'Na verdade resulta do que se disse que face à nossa Constituição salvo casos
excepcionais (que não é manifestamente o caso dos autos) ninguém pode ser
julgado sem estar presente no julgamento quer se trate do primeiro quer se trate
do segundo - até porque só pode ter lugar um segundo julgamento quando o arguido
foi julgado à revelia no primeiro. Ou seja não estar presente no segundo
julgamento significa necessariamente ser julgado sem nunca ter estado presente.
Importa além disso ponderar o disposto no artigo 576º do Código
de Processo Penal de 1929 que estabelece que no segundo julgamento do réu que
tenha sido julgado à revelia valerão para todos os efeitos as provas produzidas
no primeiro julgamento' (a fls. 305-306 dos autos; nas mesmas alegações
invoca-se o Acórdão nº 259/90 in Acórdãos 17º vol. págs. 123 e segs para afastar
o seu julgamento de não inconstituciona-lidade sobre o art. 576º CPP 1929 pois
que no caso então sub judicio o réu havia comparecido no 2º julgamento e pudera
contraditar a prova antes produzida).
Resta assim concluir que a norma desaplicada
viola pois o princípio das garantias de defesa a que o processo criminal deve
obedecer bem como o princípio do contraditório a que deve subordinar-se a
audiência de julgamento (art. 32º nº s 1 e 5 da Constituição) e ainda os
princípios da verdade material e de imediação que estão ínsitos no processo
criminal de um Estado de direito como exigências fundamentais do respeito pela
dignidade da pessoa humana (art. 2º da Constituição).
III
Nestes termos e pelas razões expostas decide o
Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso confirmando o acórdão
recorrido quanto ao julgamento da questão de inconstitucionalidade.
Lisboa 6 de Julho de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa