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Procº nº 460/94.
2ª Secção.
Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. E..., , propôs no Tribunal de comarca de Tomar
providência de injunção contra S...., com vista a obter força executiva a uma
obrigação pecuniária no montante de Esc. 44.962$00, de que era credora e que
decorreu de um contrato de compra e venda entre ambas celebrado, obrigação essa
que requerida não teria cumprido.
Tendo a mesma requerida sido notificada nos termos do
artº 4º do Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, e não tendo ela deduzido
oposição, o secretário judicial daquele Tribunal, por despacho de 19 de Maio de
1994, apôs no requerimento solicitador da providência a fórmula 'Execute-se'.
Em 14 de Julho seguinte, veio a E... instaurar, ainda
naquele Tribunal e contra S...., execução para pagamento da quantia
correspondente ao dito montante, acrescida de juros vencidos e vincendos.
O Juiz do Tribunal de comarca de Tomar, por despacho de
26 de Setembro de 1994, suportando-se num juízo de 'inconstitucionalidade
material do Dec Lei nº 404/93 de 10/12, designadamente do seu artº 5º', cuja
aplicação recusou, já que, em seu entender, essa norma violaria o nº 1 do artº
205º da Lei Fundamental, liminarmente indeferiu o pedido de execução visto que,
na sua óptica, se postaria uma situação de inexistência de título executivo.
Do assim decidido recorreu o Ministério Público para o
Tribunal Constitucional.
2. Aqui produziu alegação o Ex.mo Procurador-Geral
Adjunto que, sustentando a procedência do recurso, a concluiu do seguinte modo:-
'1º - A possibilidade, conferida ao se cretário judicial pelo artigo
7º do Decreto- -Lei nº 404/93, de 10 de Dezembro, de recusar o pedido de
injunção quando este se não adeque às finalidades tipificadas no artigo 1º
constituiu simples decorrência de existir um evidente e ostensivo erro na forma
de processo escolhida pelo requerente, e não prolacção de qualquer decisão de
mérito, ainda que liminar, sobre a pretensão formulada.
2º - A aposição da fórmula executória, nos casos em que se consumou a
notificação por via postal do requerido e em que este não de duziu oposição, nos
termos do artigo 5º, em conjugação com os artigos 4º e 6º, nº 2, do mesmo
diploma legal, não representa a prolação de qualquer decisão de natureza
jurisdicional que traduza composição do eventual litígio que oponha o credor ao
devedor, mas tão somente a certificação por aquele funcionário judicial de que,
tendo-se consumado a notificação do pedido de injunção ao requerido e não tendo
sido deduzida por este oposição, se mostra constituído, nos termos da lei,
título executivo extra-judicial.
3º - Não traduzindo a referida aposição da fórmula executória a
prática de qualquer acto jurisdicional de composição do litígio, não envolve
qualquer preclusão relativamente aos meios de defesa que, em processo executivo,
ao executado é lícito opor ao exequente o qual seguirá necessariamente a forma
sumária (artigo 465º, nº 2, do Código de Processo Civil), iniciando-se com a
citação do executado e comportando a eventual dedução de embargos nos amplos
termos consentidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil.
4º - O regime constante do Decreto-Lei nº 404/93 não implica, deste
modo, violação do preceituado nos artigos 205º e 206º da Constituição da
República Portuguesa, já que não resulta conferida ao secretário judicial
qualquer competência para proceder, à revelia do juiz, a uma composição do
conflito de interesses privados entre requerente e requerido no procedimento de
injunção, esgotando-se a actividade que lhe é consentida na mera certificação de
que se mostra criado, nos termos da lei, título executivo extrajudicial.
5º - O mesmo regime em nada ofende o princípio do contraditório,
ínsito nos artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, já que não preclude ao requerido
qualquer direito de defesa: na verdade, se este não foi notificado, ou deduziu
oposição, seguem-se os termos do processo declarativo sumaríssimo, que
naturalmente são idóneos para assegurar tal direito; a aposição da fórmula
executória em nada preclude a dedução de embargos de executado, nos amplos
termos permitidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil, já que
obviamente a execução a instaurar se não baseia em sentença.'
II
1. Com vista a permitir que 'o credor de uma prestação'
possa obter, por meio de uma 'forma célere e simplificada' e de forma
desburocratizada, 'um título executivo', que actuará como 'condição
indispensável ao cumprimento coercivo' dessa prestação, caso esse cumprimento
coercivo se traduza 'no cumprimento de uma obrigação pecuniária', concebeu o
legislador, por intermédio do Decreto-Lei nº 404/93, uma providência, que
designou de «injunção», mencionando desde logo no seu preâmbulo que era
atribuída ao secretário judicial do tribunal 'competência para proceder à
notificação do requerido e, na ausência de oposição, também para imediata
aposição da fórmula executória', advertindo que essa aposição não constituía,
'de modo algum, um acto jurisdicional', já que, 'indubitavelmente', não deixava
de permitir 'ao devedor defender-se em futura acção executiva, com a mesma
amplitude com que o pode fazer no processo de declaração, nos termos do disposto
no artigo 815.º do Código de Processo Civil', sendo que, não obstante se tratar
'de uma fase desjurisdicionalizada', nem assim se mostravam 'diminuídas as
garantias das partes intervenientes no processo', uma vez que o respectivo
acautelamento era 'efectivamente, assegurado quer pela via da apresentação
obrigatória dos autos ao juiz quando se verifique oposição do devedor, quer pelo
reconhecimento do direito de reclamação no caso de recusa, por parte do
secretário judicial, da aposição da fórmula executória' (entre aspas, as
palavras do exórdio do citado diploma).
Nesse decreto-lei definiu-se, no artº 1º, a «injunção»
como sendo 'a providência destinada a conferir força executiva ao requerimento
destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes
de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1ª
instância', consagrando-se que o respectivo pedido 'é apresentado na secretaria
do tribunal que seria competente para a acção declarativa com o mesmo objecto'
(artº 2º, nº 1), devendo ele conter exposição dos 'factos que fundamentam' a
pretensão, ser acompanhado pelos 'documentos comprovativos, se os houver' e
concluir 'pelo pedido da prestação a efectuar' (artº 3º).
Seguidamente, o diploma estatui, nos seus artigos 4º a
7º, do seguinte modo:-
Artigo 4.º
Notificação da injunção
Recebido o pedido, o secretário judicial do tribunal notifica o
requerido, por carta registada com aviso de recepção, remetendo cópia da
pretensão e dos documentos juntos, devendo indicar, de forma inteligível, o
objecto do pedido e demais elementos úteis à compreensão do mesmo, referindo,
ainda, expressamente, o último dia do prazo para a oposição.
Artigo 5º.
Aposição da fórmula executória
Na falta de oposição, ou em caso de desistência da mesma, o
secretário judicial apõe a seguinte fórmula executória no requerimento de
injunção: «Execute- -se».
Artigo 6º.
Oposição do requerido.
1 - O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de sete dias a
contar da notificação.
2 - Sendo deduzida oposição, ou frustrando-se a notificação por via
postal, o secretário judicial do tribunal apresentará os autos à distribuição,
sendo conclusos ao juiz, o qual, se o estado do processo o permitir, designará,
desde logo, o dia para julgamento, observando-se a tramitação estabelecida para
o processo sumaríssimo.
Artigo 7º.
Recusa da aposição da fórmula executória
e reclamação
A aposição da fórmula executória só poderá ser recusada quando o
pedido não se adeque às finalidades constantes do artigo 1º. e nas situações em
que à se- cretaria, nos termos da lei do processo, é lícito não receber a
petição, cabendo da recusa reclamação para o juiz presi- dente do tribunal ou do
respectivo juízo cível.
2. Segundo a decisão ora impugnada, 'a actividade
destinada a conferir força executiva ao requerimento do credor, nos termos do
Dec.Lei supra-citado, insere-se no exercício da função jurisdicional', já que
tal actividade 'torna certa a existência de uma obrigação, dispensando o credor
de recorrer ao processo declaratório', ao que acresce que 'o secretário
judicial, embora em casos contados, pode recusar a aposição da fórmula
executória', o que traduz, 'de modo evidente a resolução de uma questão de
direito' por parte desse funcionário.
Será que colhe uma argumentação tal como a acolhida no
despacho sob censura?
Adianta o Tribunal desde já que não.
3. Teve já este órgão de fiscalização concentrada da
constitucionalidade, por várias vezes, oportunidade de se pronunciar sobre a
definição do que seja função jurisdicional comparativamente com aquilo que seja
a função administrativa, tendo por referência as disposições constantes dos
(hoje) números 1 e 2 do artigo 205º da Constituição. Fê-lo, verbi gratia, no
Acórdão nº 443/91 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 2 de Abril de
1992), relatado pelo agora relator, onde se sintetizou, após excurso sobre
várias posições doutrinárias tomadas em torno desta questão, que '[s]erá, pois,
na chamada de resolução de um conflito relativo a um caso concreto, resolução
essa cujo atingir decorre dos critérios constantes de normas jurídicas já
existentes (e, desta arte, tendo como fim específico a realização do direito e
da justiça), que residirá o punctum saliens caracterizador da função
jurisdicional que, assim, não almeja a prossecução e realização de um interesse
público diferente do da composição dos conflitos'.
Assente esta caracterização, seguir-se-á,
necessariamente, a análise consistente em saber se, de um lado, a prescrição
ínsita no artº 5º do D.L. nº 404/93 e, de outro, os casos de recusa de aposição
da fórmula executória estatuídos no artº 7º, traduzem o desenvolvimento ou o
exercício, por banda do secretário judicial, de uma função jurisdicional.
4. No tocante à primeira sub-questão, viu-se já que o
despacho sob censura entendeu que a aposição da fórmula executória tornava certa
a existência de uma obrigação e, assim, era uma tal actividade inserível na
função jurisdicional.
Não pode o Tribunal acompanhar um tal raciocínio.
Na verdade, bem vistas as coisas, aquele raciocínio tem,
de modo necessário, de ter como assente a consideração de que à existência de
uma obrigação subjaz um litígio actual e efectivo entre os respectivos sujeitos,
sendo, por isso, imperiosa a intervenção de um órgão jurisdicional que torne
certa tal existência.
Essa consideração, contudo, não tem razão de ser. E isto
pela simples razão de que o cumprimento de determinadas obrigações pode ser
obtido coactivamente sem que se exija uma sentença judicial que as torne
provadas, certas e exequíveis [cfr. alíneas b), c) e d) do artº 46º e artigos
50º, 51º e 1016º, nº 4, todos do Código de Processo Civil - a última destas
disposições tem, por alguma doutrina (cfr. Lebre de Freitas, A Acção Executiva,
51), sido considerada como contendo um título executivo 'judicial impróprio'], e
isto mesmo que não exista uma anterior actividade, desenvolvida por um oficial
público, revestido de fé pública, certificativa da assunção da prestação que se
deseja obtida ou da verdade da assinatura aposta no escrito titulante da
obrigação do devedor (cfr., v.g., nº 1 do aludido artº 51º, designadamente no
que concerne aos extractos de facturas, livranças e cheques e o referido nº 4 do
artº 1016º).
Ora, mesmo nos casos em que a nossa actual lei adjectiva
civil impõe o reconhecimento notarial da assinatura do devedor (citado nº 1 do
artº 51º), como forma de conferir exequibilidade ao escrito, nem daí resulta que
é atestado pelo oficial público a feitura de uma declaração do devedor
confessória da prestação da obrigação. E, nem por isso, deixa de ser conferido a
esse escrito força coactiva imediata, no sentido de dispensar a prolação de uma
decisão jurisdicional que torne certa e indiscutível a existência da obrigação.
Sendo assim, não se vislumbra como a intervenção, nos
sobreditos termos, do oficial público, tenha, de um ponto de vista substancial,
de ser perspectivada como algo de diferente da intervenção do secretário
judicial que, após comunicar a pretensão de reconhecimento da obrigação
apresentada pelo credor, e a ela se não tendo oposto o devedor, confere força de
título executivo ao 'escrito' consubstanciador do requerimento da «injunção»
como titulante de uma obrigação que, afinal, é apenas pecuniária e apresenta um
valor diminuto (metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância).
5. Como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua
alegação, com o ora sindicado diploma, o legislador, 'em vez de generalizar e
desformalizar as condições de exequibilidade dos documentos particulares, optou
pela criação de um processo pré- -judicial susceptível de culminar na criação
de um título executivo extrajudicial, na sequência de uma notificação para
pagamento, realizada sem intervenção do juiz, e desde que o pessoalmente
notificado não deduza oposição'.
Não se depara, na actividade do secretário judicial
consistente na aposição da fórmula executória, qualquer modo ou forma de
composição ou resolução de um conflito ou litígio entre credor (requerente da
«injunção») e devedor (requerido nessa providência) por recurso a critérios
constantes de normas jurídicas já existentes, tendo por finalidade alcançar a
paz jurídica e sendo iluminado pelo desiderato de realização da justiça.
Aliás, como bem ressalta das prescrições do D.L. nº
404//93, sempre o requerido/devedor poderá opor-se a que à invocada obrigação
seja conferida exequibilidade, se entender que ela inexiste ou não é certa,
oposição essa que, ao fim e ao resto, em pouco ou mesmo nada difere daqueloutra
que, no processo declarativo utilizável para esse fim, é gizada no diploma
adjectivo civil. E, mesmo nos casos em que é aposta a fórmula executória na
providência de injunção, nem por isso também lhe fica vedada a possibilidade de
se opor à futura acção executiva baseada naquele título, de harmonia com as
disposições do artº 815º do Código de Processo Civil (onde releva a
possibilidade de lançar mão dos fundamentos de oposição que ao executado seria
lícito deduzir como defesa no processo declarativo como modo de, livremente,
impugnar a existência e exigibilidade da obrigação), razão pela qual, logo por
aqui, se há-de concluir não impedir a normação em apreço, quer a efectivação dos
meios de defesa, quer o asseguramento do princípio do contraditório que, mesmo
em processo civil, deflui dos artigos 2º e 20º do Diploma Básico.
Isto revela, em consequência, que inexiste, na função
cometida ao secretário judicial, um qualquer desejo de composição de conflitos
de interesses entre terceiros, antes lhe sendo, simplesmente, confiada a missão
de criar um novo título executivo extrajudicial.
6. Adianta o despacho sub specie que a possibilidade
conferida ao secretário judicial, 'embora em contados casos', de recusar a
aposição da fórmula executória, faz surgir 'de modo evidente a resolução de uma
questão de direito' por ele prosseguida.
Neste ponto, e contrariamente ao que parece defluir
daquele despacho, impõe-se desde logo sublinhar que, como resulta da
caracterização da função jurisdicional acima sintetizada, a resolução de uma
questão de direito não é algo que, só por si, seja bastante para essa
caracterização.
Na verdade, também na função administrativa se impõe,
muitas vezes, a resolução de questões jurídicas, ou o desenvolvimento de
actividades tendentes a tornar certo o direito ou o facto. Ponto é que o
objectivo dessa actividade não seja o de almejar a paz jurídica decorrente dessa
resolução (cfr. Afonso Queiró, in A Função Administrativa, Revista de Direito e
Estudos Sociais, 24º ano, 31), mas sim que a questão de direito seja 'orientada
por uma perspectiva de interesse público, justamente o interesse público
específico ou particular acolhido na norma e nela incorporado e não,
decisivamente, o interesse público geral ou interesse colectivo primário' (cfr.
Rogério Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, 101 e segs.).
Mas, seja como fôr, o que é certo é que a recusa de
aposição da fórmula executória por banda do secretário judicial não visa a
resolução de uma questão de direito iluminada pelo intúito de compor determinado
litígio.
De facto, essa recusa não pode repousar em qualquer
consideração de uma manifesta improcedência da pretensão. Antes, e pelo
contrário, ela só é permitida se a requerida providência de injunção não versar
uma obrigação pecuniária decorrente de contrato e exceder metade do valor da
alçada do tribunal de 1ª instância, bem como nos casos a que se reporta, por
exemplo, o nº 3 do artº 467º do Código de Processo Civil. Vale isto por dizer
que os casos em que o diploma sub iudicio permite a recusa da aposição da
fórmula executória se resumem aos de mera constatação da manifesta
irregularidade formal ou, se se quiser, procedimental, do requerimento da
providência, nada tendo, por isso, que ver com possíveis vícios de natureza
substantiva que podem afectar a pretensão do requerente e, que, por se
projectarem nos seus interesses, poderiam ser passíveis de ser perspectivados
como carentes de intervenção jurisdicional.
A isto é de aditar que, de todo o modo, sempre ao
requerente é facultada a reclamação para o juiz da recusa de aposição da fórmula
executória derivada da consideração de, no caso, se estar perante
irregularidades formais, o que significa, ao fim e ao resto, que àquela entidade
cabe, neste particular, a última palavra.
Daí que se não possa antever, neste campo, violação dos
números 1 e 2 do artigo 205º da Constituição.
III
Neste contexto, concede-se provimento ao recurso, assim
se determinando a revogação do despacho sindicado, a fim de o mesmo ser
reformado em consonância com o presente juízo sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Junho de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José de sousa e Brito
Guilherme da fonseca
Luis Nunes de Almeida