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Proc. nº 145/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - C...,SA, intentou na comarca de Lisboa, acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra A...,SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 302.677$00, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, invocando, para o efeito, o disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº
289/88, de 24 de Agosto.
A sociedade demandada contestou oportunamente, logo equacionando a questão de constitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 2º desse diploma, por violação do disposto nos artigos 13º, 81º, alínea f), e 102º, alínea a), da Constituição da República (CR).
Prosseguiram os autos seus termos, após o que se proferiu decisão a julgar a acção parcialmente procedente por provada e, consequentemente, foi a ré condenada em parte no pedido, não sem antes se afastar a suscitada questão de inconstitucionalidade, que se teve por improcedente.
2. - Inconformada, recorreu a ré para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da citada norma do nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 Agosto, que, em seu entender, viola os já mencionados preceitos constitucionais.
Admitido o recurso, alegaram ambas as partes.
A ré e recorrente concluíu, assim, as respectivas alegações:
'Em conclusão, a norma ínsita no nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº
289/88, de 24 de Agosto, enquanto cria e impõe a assumpção de um risco por parte do importador no que toca ao pagamento dos direitos e imposições alfandegárias que, como importador, lhe cabem, mas eximindo afinal desse risco a entidade seguradora garante de Despachante Oficial, cujo risco ou responsabilidade assumiu, viola o princípio da igualdade e o princípio da concorrência salutar dos agentes mercantis, expressos nos artigos 13º, 81º, alínea f), e 102º, alínea a), da Constituição da República Portuguesa, tanto mais flagrante na hipótese dos autos quanto é certo que a recorrente, R, na acção, não só remeteu ao Despachante a que os autos se reportam o dinheiro necessário para o pagamento dos referidos direitos e imposições aduaneiras, como tem até em poder dela o recibo passado pela própria Alfândega comprovativo desse pagamento, recibo que lhe foi enviado pelo referido Despachante, a quem, para o efeito, a recorrente remeteu os necessários fundos.?
Por sua vez, condensou a autora e recorrida do seguinte modo as suas alegações:
'1.- Não há qualquer violação das normas da Constituição por parte do artigo 2º do Decreto-Lei nº 298/88;
2.- Em consequência, nada há a criticar à douta sentença proferida pelo Mto. Juiz do 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa;
3.- Deve, por isso, ser o recurso julgado improcedente.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II
1.1. - O Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, consoante se retira da respectiva nota preambular, teve por confessado objectivo acelerar o processo de desalfandegação de mercadorias, mediante a simplificação do sistema de prestação de garantias e de pagamento dos direitos aduaneiros e demais imposições legais, assim se reduzindo substancialmente os prazos de entrega das mercadorias.
Deste modo, criou-se, pelo nº 1 do artigo 1º, a caução global para o desalfandegamento, destinada a garantir os direitos e demais imposições devidos pela totalidade das declarações apresentadas pelos despachantes oficiais às alfândegas, a prestar sob a forma de fiança bancária ou de seguro-caução, nos termos do artigo 3º, compreendendo os direitos e demais imposições os direitos aduaneiros e outras imposições de efeito equivalente, bem como quaisquer outros impostos ou taxas cuja cobrança esteja a cargo das alfândegas, de acordo com o nº 2 do artigo 1º.
Neste enquadramento, preceitua o artigo 2º, ora em causa:
'.- No âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis.
2.- O despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhadas de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas.'
1.2. - O Decreto-Lei nº 289/88 responsabiliza solidariamente os interessados no processo de desalfandegamento - dono (ou consignatário) das mercadorias e despachante - pelo pagamento dos direitos e imposições alfandegárias, permitindo à seguradora, como entidade garante por força do contrato de seguro-caução, exercer direito de regresso contra qualquer deles pelo que pagou à entidade alfandegária. O legislador afastou-se, deste modo, da disciplina civilística do mandato sem representação, tal como a regem os artigos
1180º e seguintes do Código Civil, com o confessado objectivo de facilitar e melhor garantir a cobrança das importâncias respeitantes aos direitos e demais imposições aduaneiras devidas por todos os interessados no processo de desalfandegamento, alargando o leque de responsabilização mediante o esquema mais simples e directo que encontrou. Medida esta certamente discutível, sem embargo de a jurisprudência nacional mais representativa, não obstante alguma considerar a opção do legislador como ?mau direito?, não lhe vir a reconhecer vício de inconstitucionalidade (assim, v.g., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Junho de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência ? Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo II, págs. 151 e segs., e do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Maio de 1994, 6 de Outubro de 1994 e 30 de Janeiro de 1995, publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, tomo III, págs. 191 e segs., e tomo V, págs. 197 e segs., e ano XX, tomo I, págs. 207 e segs., respectivamente).
1.3. - No caso sub judicio, a seguradora, ora recorrida, perante o incumprimento do despachante, com o qual celebrara contrato de seguro-caução, interpelada pela Alfândega de Lisboa, pagou a esta o devido, considerando-se, em consequência, subrogada nos seus direitos, nos termos do nº 2 do citado artigo
2º e, assim, veio exigir da recorrente o reembolso do que pagou.
Esta mecânica está, no entanto, posta em causa pela recorrente.
Alega-se, na verdade, que a norma do nº 2 do artigo 2º, enquanto cria e impõe a assunção de um risco por parte do importador no que toca ao pagamento dos direitos e imposições alfandegárias que lhe cabem, como importador, ao eximirem desse risco a entidade seguradora garante do despachante oficial está, por um lado, a atribuir um privilégio e um benefício à entidade garante, como evidente prejuízo e discriminação do importador, assim violando o princípio da igualdade, e, por outro lado, está a onerar o importador com um duplo pagamento, não permitindo assegurar a concorrência entre os agentes económicos, protegida constitucionalmente, nos termos da alínea f) do artigo 81º
(redacção anterior à resultante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro).
Não foi esta, porém, a tese sufragada na decisão recorrida.
Aí se escreveu, nomeadamente:
'...]o artigo 2/2 não teve como fim que o importador pagasse duas vezes os direitos e imposições alfandegárias. O que este preceito legal quis foi, em primeira linha, assegurar o pagamento às alfândegas, transmitindo a quem lhe paga directamente os seus direitos. Não foi pensando para o caso dos autos, ou seja do despachante receber o dinheiro dos importadores e não o entregar, mas sim de não receber e ter, não obstante, que pagar à mesma, por ser devedor solidário com o importador, embora não seja o beneficiário da mercadoria importada. O importador, que foi vítima como no caso dos autos de um comportamento incorrecto e passível de enquadramento criminal, tem também ao seu dispor a possibilidade de se ressarcir, demandando o despachante, por violação do disposto no nº 6 do artº 1161/6 do CC.
Não houve qualquer violação do princípio da igualdade e do princípio da equilibrada concorrência. Não se trata de situações iguais que estejam a ser tratadas de forma distinta, mas de situações desiguais. Poderia haver desigualdade, se nas mesmas circunstâncias, a lei permitisse só a sub-rogação relativamente a alguns importadores, desonerando os demais. O estatuído no artº
2/2 não impede o ressarcimento do prejuízo que o importador possa vir a sofrer. Aliás, através do incidente processual próprio do chamamento à demanda - artº
330/al. a) do CPC - a R. podia ter feito intervir nos autos a Sociedade Hernâni José e obter, em caso de procedência da acção, a sua condenação.'
2.1. - A norma em referência já foi objecto de apreciação por este Tribunal Constitucional, como se colhe da leitura do recente acórdão nº
504/98, ainda inédito, em termos que se entende ser de manter (cfr., ainda no mesmo sentido, o acórdão nº 570/98, também inédito).
Após afastar uma então alegada violação da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, no tocante à matéria de criação de impostos e sistema fiscal [alínea i) do nº 1 do artigo
168º da CR, na redacção da Segunda revisão constitucional) - questão que, no caso vertente, não se aborda por inútil, pois nem foi equacionada nem o Tribunal a julgou procedente - o acórdão afrontou a eventualidade de violação do artigo
13º da CR, nomeadamente por se defender contra a norma do nº 2 do artigo 2º um privilégio concedido à seguradora tido por desrazoável e desproporcionado, mesmo admitindo a possibilidade de onerar o dono das mercadorias com um duplo pagamento. Ao invés do que sucede no contrato de seguro, impõe-se a este a assunção do risco da prestação da garantia em causa, vindo a ter de pagar os direitos e imposições alfandegárias à entidade garante, não obstante, eventualmente, o pudesse ter já feito relativamente ao despachante oficial.
Ora, a este propósito, ponderou-se no citado acórdão nº
504/98, em termos que ora se reiteram:
'...]a medida legislativa que o artigo 2º exponencia não foi [...] arbitrariamente decretada, pois que justificada por uma lógica de celeridade e simplificação que, sempre e em última instância, aproveita essencialmente aos agentes económicos - donos das mercadorias ou seus consignatários, importadores ou exportadores - que retirarão as vantagens inerentes a um desalfandegamento mais expedito e eficiente, sem prejuízo de, em qualquer circunstância, poderem lançar mão dos direitos que lhes assistem e respectivos meios processuais próprios a fim de se ressarcirem de eventuais prejuízos sofridos pelo incumprimento, ou cumprimento defeituoso, dos despachantes oficiais, por eles, de resto, livremente escolhidos para desembaraçarem as suas mercadorias, como técnicos especialistas em matéria aduaneira (como sublinha Antunes Varela na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125, pág. 56). Se o despachante embolsou em seu proveito a importância que lhe foi entregue, não lhe dando o devido destino, não deixará de incorrer em responsabilidade civil, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que terá causado, além da inerente responsabilidade criminal.'
Considerou-se, assim, não ocorrer violação do princípio da igualdade, como, afinal, no caso dos autos, o entendeu a 1ª instância, tomando esse princípio como sedimentado se encontra no acervo jurisprudencial deste Tribunal.
E observou-se, ainda, com pertinência para o presente caso:
'Nao écorrecto nomeadamente, afirmar que o Estado deixa de ter o direito de reclamar directamente ao importador o valor dos direitos e imposições aduaneiras devidos se este demonstrar que entregou ao despachante oficial a quantia devida: a sua obrigação perante a Alfândega não se extinguiu pelo facto de ter posto à disposição do despachante as importâncias destinadas ao pagamento das importâncias devidas, o que, aliás, constitui res inter alios no tocante à Alfândega e à seguradora.'
2.2. - Melhor destino não merece a alegada violação da equilibrada concorrência empresarial, com projecção no âmbito de uma concorrência salutar dos agentes mercantis.
Entende a recorrente que a norma em sindicância - pelo menos na interpretação que lhe foi dada - enquanto e na medida em que posiciona os importadores em manifesta desvantagem face às empresas seguradoras, ocasiona uma situação de flagrante concorrência desleal, ao arrepio da incumbência prioritária do Estado em assegurar uma equilibrada concorrência entre as empresas, de harmonia com a alínea f) do artigo 81º da CR [hoje, e após a IV Revisão Constitucional, tarefa recortada como uma das vertentes em que se desdobra o funcionamento eficiente dos mercados: alínea e) do actual artigo
81º]. Avançando um passo mais, logo se coloca em crise um dos objectivos constitucionais a desenvolver no plano da política comercial, concernente à
'concorrênciasalutar dos agentes comerciais?, com suposta violação da alínea a) do artigo 102º da CR [hoje, alínea a) do artigo 99º].
Esta é, para já, uma construção que subentende uma premissa que se não deu por verificada, a de uma ?manifesta desvantagem?, lesante do princípio da igualdade, que a suporta, significando, assim, a sua insustentabilidade.
Mesmo que assim se não entendesse, sempre seria de observar que a norma impugnada se situa no circunscrito âmbito da regulação interna das relações creditícias entre os sujeitos de uma operação de desalfandegação. Ou seja, pelos interesses que tutela escapa, por um lado, ao quadro da concorrência desleal, que a recorrente houve por bem invocar (sem, de resto, dele retirar ilações), e, por outro lado, não configura uma modelação normativa de algum modo ligada ao ?funcionamento eficiente dos mercados? que, constitucionalmente, o Estado deve assumir como incumbência prioritária.
Por outras palavras, a convocação dos preceitos integrados na organização económica da Lei Fundamental articular-se-ia, na tese professada, com a violação do princípio da igualdade, que se afastou. De qualquer modo, a questão de constitucionalidade não é situável em sede de constituição económica.
Assim, também neste ponto não assiste razão à recorrente.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida