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Processo: n.º 374/94.
Plenário
Relator: Conselheiro Guilherme da Fonseca.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
1 — A., com os sinais identificadores dos autos, veio, em processo de
extradição, e «nos termos consentidos pelo artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da
Constituição da República, do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, e do artigo 11.º da Lei n.º 112/91, de 29 de Agosto»,
interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Plenário do
Tribunal Superior de Justiça de Macau, de 14 de Abril de 1994, que, negando
provimento ao recurso por ele interposto, confirmou «a decisão recorrida», ou
seja, o acórdão da Secção de Jurisdição Comum do mesmo Tribunal, de 1 de Março
de 1994, que deferiu o pedido de extradição formulado pela República Popular da
China e concedeu «a extradição de B. (B1 ou B2) para a República Popular da
China, para aí ser julgado pelo crime de homicídio voluntário de C., cometido
pelas 18 horas do dia 15 de Junho de 1990 em Sha Ping (distrito de Heshan da
província de Guangdong)».
2 — Mas suas alegações, concluiu assim o recorrente:
1.ª O Acórdão recorrido fez aplicação da norma contida no artigo 4.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, ao autorizar a extradição
do recorrente com base na garantia de substituição da pena de morte oferecida
pelo Estado requisitante;
2.ª Tal norma é insusceptível de aplicação por ter sido inconstitucionalizada
pelo artigo 33.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que não pode
ter outra interpretação que não seja a de proibir a extradição quando o crime
imputado ao extraditando for abstractamente punido com pena de morte;
3.ª A norma adjectiva do artigo 21.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 437/75,
deixa de ter aplicação face à inconstitucionalidade da norma substantiva do
artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, mostrando-se, assim, tacitamente
derrogada pelo artigo 33.º, n.º 3, da Constituição da República;
4.ª Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o artigo 290.º, n.º
2, da CRP, na medida em que fez aplicação de direito ordinário anterior à
entrada em vigor do Texto Fundamental contrário à Constituição e aos princípios
nela consignados, assim como o artigo 207.º da CRP que determina que nos feitos
submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam a
Constituição ou os seus princípios;
5.ª Violou, ainda, o artigo 206.º da CRP que prescreve que os tribunais são
independentes e apenas estão sujeitos à lei e o artigo 18.º da CRP segundo o
qual os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas;
6.ª Violou, finalmente, o artigo 24.º, n.º 1, da CRP que consagra o princípio
da inviolabilidade da vida humana, assim como o artigo 33.º, n.º 3, do Texto
Fundamental que proíbe a extradição, quando o crime pelo qual é pedida a
providência for punido pelo direito do Estado requisitante com a pena de morte.
termos em que deve esse venerando tribunal: a) declarar que o pedido de
extradição contra o recorrente foi decidido com base no regime jurídico
estatuído na norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea A), do decreto-lei n.º 437/75,
de 16 de agosto; b) julgar inconstitucional tal norma substantiva e,
consequentemente julgar inconstitucional a norma adjectiva do artigo 21.º,
alínea C), do mesmo diploma legal; c) vincular o tribunal recorrido à aplicação
directa da norma do artigo 33.º, n.º 3, da constituição da república definindo o
seu sentido e alcance; d) e, em conformidade revogar a decisão recorrida quanto
à questão de constitucionalidade, ordenando-se que o tribunal recorrido proceda
à sua reforma.
3 — Contra-alegou o Ministério Público, demarcando o objecto do recurso e
concluindo do modo que se segue:
1 — O Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, sendo anterior à Constituição da
República aprovada em Abril de 1976, terá, para manter a sua validade, de se
conformar materialmente com esta ou com os princípios nela consignados (artigo
293.º, n.º 1, da versão originária e artigo 290.º, n.º 2, da versão actual);
2 — A norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma,
atribuindo carácter facultativo à recusa de extradição no caso de o crime ser
punível no Estado requerente com pena de morte, e admitindo garantias de
substituição desta, é materialmente incompatível, quanto a esse tipo de pena,
com o artigo 23.º, n.º 3, da versão originária da Constituição (artigo 33.º, n.º
3, da versão actual), cujo comando exclui a possibilidade de extradição nesse
caso, mesmo que oferecidas garantias de substituição;
3 — Deverá, assim, julgar-se parcialmente inconstitucional e, consequentemente,
caducada, a partir da entrada em vigor da Constituição de 1976, determinando-se
a aplicabilidade directa, por respeitar a direitos, liberdades e garantias, da
mencionada norma constitucional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição).
Termos em que merece provimento o recurso, devendo ordenar-se a reforma do
acórdão recorrido em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
4 — Vistos os autos, cumpre decidir (artigo 79.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, aditado pelo artigo 2.º da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro).
É a seguinte a sequência processual que importa resumidamente registar:
4.1 — Com a data de 6 de Dezembro de 1993 foi capturado o recorrente pelas
autoridades da Directoria da Polícia Judiciária do Governo de Macau, «nos termos
do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto», pois vinha sendo
«procurado pelas autoridades policiais da China por crime de homicídio ali
ocorrido em 15 de Junho de 1990», tendo sido confirmada a detenção por despacho
do Presidente do Tribunal Superior de Justiça de Macau, depois de ouvido o
detido em auto de declarações, no dia seguinte.
4.2 — Autorizado o prosseguimento do processo de extradição, por despacho do
Governador de Macau, datado de 14 de Janeiro de 1994, distribuído ele e
realizada a audiência do extraditando, veio este deduzir oposição ao pedido de
extradição [e logo aí se sustenta a inaplicabilidade do artigo 4.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, por ser, à luz do artigo
33.º, n.º 3, da Constituição, «inadmissível a extradição por crimes a que
corresponde a pena de morte, segundo o direito do Estado requisitante»].
4.3 — Seguida a respectiva tramitação processual, proferiu o Tribunal Superior
de Justiça de Macau o acórdão de 1 de Março de 1994, já referenciado, que
deferiu o pedido de extradição.
Neste aresto, depois de se trazer à colação o citado artigo 4.º, n.º 1, alínea
a), dizendo-se que ele «foi, em primeira leitura, inconstitucionalizado pelo n.º
3 do artigo 33.º da Constituição da República ao dispor a não extradição ‘por
crimes a que corresponda pena de morte’ segundo o direito do Estado
requisitante», mas esta norma «tem de ser interpretada em termos de pena,
concreta e efectivamente, aplicável, que não em termos de pena abstracta»,
concluiu-se:
Assim, sendo dadas garantias de não aplicação da pena de morte pelo crime que
motivou a extradição, desaparece a proibição constitucional.
E o acórdão tirou, antes da decisão, as seguintes conclusões:
a) Em matéria de extradição — regulada em Macau pelo Decreto-Lei n.º
437/75, de 16 de Agosto — é na fase administrativa que se ponderam as razões de
ordem política, de oportunidade ou de conveniência.
b) A fase judicial está sujeita a critérios de estrita legalidade mas,
tratando-se de decisão em matéria penal, terão de ponderar-se, como argumentos
adjuvantes, razões de política criminal e as necessidades de prevenção geral.
c) A Constituição da República Popular da China (aprovada na 5.ª Sessão
do 5.º Congresso Nacional do Povo e promulgada em 4 de Dezembro de 1982) e o
Código de Processo Penal do mesmo País (promulgado pelo Comité Permanente do
Congresso Nacional Popular em 7 de Julho de 1979) contêm um elenco de direitos e
garantias assegurando que o processo criminal não contenda, por forma
inconciliável com os princípios de ordem pública do extraditante.
d) Uma ampla margem de tolerância entre os diversos ordenamentos
jurídicos deve ser tida em conta e, ressalvando a ordem pública, não é avisado
impor a outros Estados modelos rígidos, sob pena de se negar a cooperação
internacional em matéria penal.
e) A proibição de extraditar constante do n.º 3 do artigo 33.º da
Constituição da República, reporta-se à pena concreta que não à pena abstracta
prevista ao texto legal.
f) A garantia de substituição dada pelo Ministério da Segurança Pública
da R.P. China é suficiente para impedir a violação do imperativo constitucional
citado.
4.4 — Desse acórdão recorreu o extraditando para o Plenário do mesmo Tribunal,
sustentando, entre o mais, que [conclusões 1) e 2) das alegações]:
1.ª O Acórdão recorrido violou o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição da
República Portuguesa — vigente no Território de Macau por força do disposto no
artigo 2.º do Estatuto Orgânico de Macau — que proíbe em absoluto a extradição
por crimes a que corresponda a pena de morte segundo o direito do Estado
requisitante e, ao fazer aplicação do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, para conceder a extradição do
recorrente, violou o artigo 207.º do mesmo Texto Fundamental, que determina que
«nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» assim
como o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 17/92/M, de 2 de Março, que contém idêntico
princípio, produzindo um aresto ferido de invalidade material.
2.ª Ao permitir-se uma interpretação restritiva do artigo 33.º, n.º 3, da
Constituição da República Portuguesa no sentido de que aquele comando
constitucional tem de ser analisado em termos de pena, concreta e efectivamente
aplicável e não em termos de pena abstracta, o acórdão recorrido foi além dos
sentidos possíveis resultantes do texto e do fim da Lei Constitucional e
procedeu a uma revisão do texto Fundamental, operando uma usurpação de funções,
por haver transformado os julgadores em legisladores activos.
4.5 — Por acórdão do dito Plenário, de 14 de Abril de 1994, ora recorrido, foi
negado provimento àquele recurso e confirmada «a decisão recorrida».
O aresto, rechaçando todas as conclusões das alegações do recorrente, adiantou,
para julgar improcedentes as duas primeiras conclusões, a seguinte ordem de
considerações que interessa transcrever na íntegra:
2 — Nas duas primeiras conclusões da sua alegação sustenta o recorrente que o
acórdão recorrido violou o artigo 33.º, n.º 3, da CRP, quando aplicou o artigo
4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, concedendo a sua extradição no
que concerne a um crime punível na RPC com a pena de morte.
Vejamos se lhe assiste razão.
O extraditando encontra-se indiciado na RPC, sem possibilidade de contestação,
face ao disposto no n.º 3 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 437/75, pela prática
de um crime de homicídio voluntário, por estrangulamento, na pessoa de C., sua
ex-namorada, ocorrido no dia 18 de Junho de 1990, pelas 18 horas, na residência
desta, sita no distrito de Heshan, província de Guongdong, na RPC.
O crime de homicídio voluntário encontra-se previsto na Segunda Parte — Medidas
Específicas — do Código Penal da RPC de 1979, sob o artigo 132.º, onde se lê:
Quem intencionalmente cometer homicídio será condenado à morte, a prisão
perpétua ou a prisão não inferior a dez anos; se ocorrerem circunstâncias
atenuantes, a pena não será inferior a três nem superior a dez anos de prisão.
Todavia, no caso sobre que nos debruçamos, a RPC obrigou-se, através de
promessas do seu Ministério da Segurança Pública, veiculadas em 8 e 15 de
Janeiro do ano corrente pela Agência de Notícias Xinhua, que em Macau exerce
funções paradiplomáticas, a não condenar o extraditando A. nem à pena de morte
nem à pena de prisão perpétua bem como a não extraditá-lo para terceiro Estado
nem a persegui-lo por factos diversos dos que fundamentaram o pedido de
extradição e lhe sejam anteriores ou contemporâneos (cfr. documentos de fls. 91
e 105).
3 — O princípio da legalidade em direito penal, assumido pelo
constitucionalismo, é uma garantia dos direitos individuais, com todas as
consequências que historicamente lhe foram atribuídas e se encontram expressas
no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e condensadas na fórmula
latina de Feuerbach: nullum crimen sine lege; nulla poena sine lege.
A nível internacional, diz-se no artigo 11.º, n.º 2, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 1948 (DUDH):
Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática,
não constituíam acto delituoso à face do Direito interno ou internacional. Do
mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no
momento em que o acto delituoso foi cometido.
E no artigo 15.º, n.º 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
de 1966 (PIDCP):
Ninguém pode ser condenado por acção ou omissão que não constitua acto delituoso
à face do direito interno ou internacional no momento em que foi cometida. De
igual sorte, não pode ser infligida pena mais severa do que a que era aplicável
no momento da prática da infracção. Se, posteriormente à infracção, a lei
estabelecer pena mais favorável, o delinquente deverá beneficiar da sua
aplicação.
No que concerne às normas penais, o princípio da legalidade somente se reporta
aos modos da sua criação e aplicação com reflexos nas penas ou medidas de
segurança que reclamam destino no caso concreto.
O princípio aplica-se, sem margem para dúvidas, às disposições legais que
prevêem crimes na parte especial do Código Penal e na legislação extravagante.
Mas não só. As disposições da parte geral que estabelecem os critérios
positivos de punibilidade (lato sensu) das primeiras, os pressupostos genéricos
das medidas de segurança, as causas de agravação das penas e das medidas de
segurança (não apenas as circunstâncias agravantes), e a extensão da
punibilidade a outras formas de infracção (cláusulas de extensão da tipicidade
dos factos previstos) — a tentativa, a participação — estão também sujeitas ao
princípio. Não têm, pois, razão aqueles autores que pretendem exceptuar toda a
parte geral da aplicação do princípio da legalidade.
Transferidos estes ensinamentos para o Código Penal da República Popular da
China, necessariamente integrará o princípio da legalidade das penas a norma
contida no seu artigo 44.º, incluído na Primeira Parte — Medidas Gerais —
onde se refere que não será imposta a pena de morte a quem tiver 18 anos ao
tempo do crime, excepto se, já tendo perfeito 16 anos, o crime for
particularmente grave (caso em que a execução da pena de morte será suspensa por
dois anos).
Todavia, de nenhum modo, apenas as disposições da parte geral, a par das da
parte especial do Código Penal, são susceptíveis de preencherem o princípio da
legalidade.
Também o direito internacional, como resulta dos artigos 11.º, n.º 2, da DUDH e
15.º, n.º 1, do PIDCP, atrás transcritos, pode definir ou delimitar normas
penais, permitindo que a pena prevista na parte especial dos códigos penais para
determinado crime seja, em certas circunstâncias, alterada.
É seguramente o que ocorre quando os Estados interessados em punir os crimes
cometidos no seu território se dirigem aos Estados onde os autores desses crimes
se encontram, comprometendo-se perante estes a certos comportamentos exigidos
pelos princípios de ordem pública aí vigentes. Refira-se a este propósito a
recusa da pena de morte e da pena de prisão perpétua por parte de vários
Estados, em nome de um princípio de humanidade, considerando-se aquela como
injustificável à luz dos fins das penas e esta como uma pena cruel e
desnecessária.
No que concerne a Portugal, a recusa da aplicação dessas penas é uma
concretização de princípios fundamentais da sua ordem jurídico-constitucional
(cfr. os artigos 24.º, 25.º, 30.º e 33.º da Constituição da República
Portuguesa).
No âmbito da cooperação internacional em matéria penal no referente a
transferência de pessoas para submissão a julgamento ou para cumprimento de
penas, o princípio da legalidade inclui necessariamente a promessa, definida
como «o compromisso assumido por um Estado de tomar no futuro determinada
atitude».
Como é sabido a promessa é uma das categorias em que se subdividem os actos
jurídicos unilaterais dos sujeitos do Direito Internacional, unanimamente
considerados como fontes formais de direito internacional público, não obstante
não referidos no artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça,
onde essas fontes se encontram elencadas, mas a título meramente
exemplificativo.
Os actos jurídicos unilaterais têm carácter normativo, como a jurisprudência
internacional tem reconhecido, comprometendo o seu autor perante o beneficiário,
por emanados segundo os princípios da boa fé e pacta sunt servanda.
A propósito dos actos jurídicos unilaterais, declarou em 1974 o Tribunal
Internacional de Justiça:
Quando o Estado autor da declaração entende estar ligado conformemente aos seus
termos, esta intenção confere à sua tomada de posição o carácter dum compromisso
jurídico, ficando o Estado interessado obrigado a seguir daí para o futuro uma
linha de conduta conforme com a sua declaração.
As promessas assumidas pela República Popular da China, no caso dos autos,
através dos documentos de fls. 91 e 105, veiculados pela Agência de Notícias
Xinhua, como actos jurídicos unilaterais de um sujeito do Direito Internacional,
integram, ao lado do artigo 132.º do seu Código Penal, o princípio da legalidade
da pena de que beneficiará o extraditando A... Daí não poder ser este sujeito
nem à pena de morte nem à pena de prisão perpétua pelo crime de homicídio
voluntário por que se encontra indiciado, mas somente a pena de prisão com o
limite máximo de 15 anos, face ao disposto no artigo 40.º do Código Penal da
República Popular da China. E o mesmo ocorreria, mesmo sem a emissão de
qualquer promessa por parte da República Popular da China, se ele tivesse menos
de 16 anos à data do crime, atento o disposto no artigo 44.º do mesmo Código,
não obstante a punição prevista no artigo 132.º, porquanto, como atrás vimos, o
princípio da legalidade não se aplica apenas aos preceitos que prevêem crimes na
parte especial do Código Penal.
A este entendimento não é obstáculo o n.º 3 do artigo 33.º da Constituição da
República Portuguesa, onde se estabelece que não há extradição por crimes a que
corresponda a pena de morte segundo o direito (e não segundo a lei) do Estado
requisitante. A nossa Constituição não se atém somente à lei (rectius: à parte
especial do Código Penal do Estado requisitante), mas a todas as fontes formais
de direito desse Estado, que na circunstância integrem o princípio da legalidade
da pena, ou, para usar a expressão de Maurice Hauriou, o bloco da legalidade
relevante. Não exclui assim que um acto jurídico unilateral de um sujeito do
Direito Internacional contribua para apurar se ao crime imputado ao extraditando
corresponde a pena de morte.
Concluindo-se pela não aplicação da pena de morte ao extraditando, aquando do
seu julgamento na República Popular da China, não há que invocar o artigo 4.º,
n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, que não tem assim de ser submetido
a um juízo de constitucionalidade.
Esse preceito terá a ver com aquelas hipóteses sobre que se tem debruçado a
nossa jurisprudência onde, na ausência de emissão de uma promessa relevante como
acto jurídico unilateral, o Estado requerente anuncia que não é habitual em
casos como o ajuizado ser aplicada a pena máxima prevista, mas sem qualquer
compromisso de não aplicação da mesma.
Improcedem, consequentemente, as duas primeiras conclusões da alegação do
recorrente.
4.6 — O recorrente veio ainda, «nos termos consentidos pelo artigo 668.º, n.º 3,
do Código Processo Civil, arguir a nulidade do n.º 1, alínea d), do artigo 668.º
com referência ao n.º 2 do artigo 660.º, ambas estas disposições do mesmo
diploma legal» desse acórdão, mas esse pedido de arguição de nulidade foi
indeferido pelo acórdão de 20 de Abril de 1994, com a seguinte fundamentação:
Tendo o tribunal ad quem precisamente os mesmos poderes que o tribunal a quo no
que toca às questões a apreciar na decisão final do processo de extradição e
encontrando-se liberto de quaisquer limitações no que tange à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito, de acordo com a regra
tradicional jura novit curia, recebida na 1.ª parte do artigo 664.º do CPC, nada
o impedia de, seguindo um caminho diferente do acórdão recorrido, fazer apelo ao
princípio da legalidade em direito penal e densificá-lo não só com as
disposições legais que prevêem crimes na parte especial do Código Penal mas
também com as disposições da parte geral do mesmo Código e, no âmbito da
cooperação internacional em matéria penal no referente a transferência de
pessoas para submissão a julgamento ou para cumprimento de penas, com os actos
jurídicos unilaterais dos sujeitos do Direito Internacional. E não estava
vedado igualmente ao tribunal de recurso considerar estes actos jurídicos
unilaterais como fontes formais de direito internacional público e neles incluir
a promessa assumida pela RPC de não aplicar nem a pena de morte nem a pena de
prisão perpétua a um extraditando indiciado pela prática de um crime de
homicídio voluntário.
Não enferma assim o acórdão de fls. 243 e segs. da nulidade de pronúncia
indevida.
E igualmente não lhe pode ser assacada a nulidade de omissão de pronúncia, por
não conhecimento das questões incluídas nas duas primeiras conclusões da
alegação do recurso.
Com efeito, face ao discurso jurídico adoptado, o acórdão não aplicou a norma do
artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, que
assim não teve que confrontar com a hierarquicamente superior contida no artigo
33.º, n.º 3, da Constituição da República. E quanto a esta, e para que o
acórdão não fosse ele próprio rotulado de inconstitucional, houve o cuidado de
explicitar que o direito do Estado requisitante da extradição não é somente
constituído pela lei (rectius: a parte especial do seu Código Penal), mas por
todas as fontes formais de direito desses Estados, que na circunstância integrem
o princípio da legalidade da pena.
4.7 — Interposto recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão de 14 de
Abril de 1994, como já ficou dito, «com fundamento em haver sido aplicada a
norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de
Agosto, norma ao abrigo da qual, ao ponderar os reflexos da garantia ou promessa
das autoridades do Estado requisitante na dosimetria da pena aplicável, se
decidiu pela sua extradição e cuja inconstitucionalidade foi suscitada ao longo
do processo», não foi ele admitido inicialmente, pelo Tribunal Superior de
Justiça de Macau, mas, utilizando o recorrente a via de reclamação, este
Tribunal Constitucional, por Acórdão de 12 de Julho de 1994 (Acórdão n.º 481/94,
publicado na II Série do Diário da República, n.º 288, de 15 de Dezembro de
1994), deferiu tal reclamação, mandando admitir o recurso de
constitucionalidade, que acabou, assim, por ser admitido, por despacho do
Relator de 20 de Julho de 1994.
5 — Preliminarmente, há que registar, na sequência da advertência do Ministério
Público (ponto 1.2. das suas alegações), que só a norma do artigo 4.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, preenche o objecto do
presente recurso de constitucionalidade, dele se excluindo forçosamente a norma
do artigo 21.º, alínea c), do mesmo Decreto-Lei (norma processual inserida no
processo de extradição relativa à aptidão e regularidade do pedido).
É que, à luz do n.º 4 do artigo 77.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a
decisão deste Tribunal Constitucional — aqui o já citado Acórdão n.º 481/94 —
que revogar o despacho de indeferimento do requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade «faz caso julgado quanto à admissibilidade do
recurso». O que significa que, sendo a norma erigida nesse Acórdão n.º 481/94
como norma aplicada pelo Tribunal a quo a do citado artigo 4.º, n.º 1, alínea
a), o acórdão fez caso julgado quanto à admissibilidade do recurso e quanto ao
seu objecto [é, aliás, tal norma, e não a norma do artigo 21.º, alínea c), a
indicada, de modo transparente, no requerimento de interposição do recurso para
este Tribunal Constitucional, em obediência ao disposto no artigo 75.º-A da Lei
n.º 28/82, aditado pelo artigo 2.º da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro].
Com o que não se vai tomar conhecimento do recurso quanto à invocada norma
adjectiva do artigo 21.º, alínea c), do mesmo Decreto-Lei n.º 437/75, ficando
prejudicado o conhecimento da conclusão 3.ª das alegações do recurso e também da
segunda parte da alínea b) do pedido final das mesmas alegações.
Há, pois, que prosseguir, para entrar no mérito do recurso, atento o objecto que
lhe está marcado, preenchidos como estão todos os pressupostos ou requisitos do
presente recurso de constitucionalidade, por força do citado caso julgado.
Lê-se com efeito, no Acórdão n.º 481/94 (referenciado no ponto 4.7), com a força
objectiva do seu discurso:
9 — Sendo o recurso restrito à questão de constitucionalidade do artigo 4.º, n.º
1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto (cfr. artigo 280.º, n.º
6, da Constituição e artigos 71.º, n.º 1, e 79.º-C da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro), não pode, obviamente, este Tribunal sindicar a interpretação que, no
caso, o tribunal recorrido diz ter feito do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º
437/75. O que, no entanto, pode — e deve — é verificar se o tribunal recorrido,
em direitas contas, não terá mesmo aplicado aquele artigo 4.º, n.º 1, alínea a),
com o sentido que o reclamante tem por incompatível com a Constituição.
Ora, embora o acórdão recorrido tenha decidido o pedido de extradição, fazendo,
formalmente, apelo apenas ao referido artigo 2.º — e não também ao mencionado
artigo 4.º, n.º 1, alínea a) —, o certo é que, como sublinha o Ministério
Público no seu visto, «numa visão substancial das coisas», do que se tratou foi
de uma «implícita aplicação do regime jurídico estatuído» no dito artigo 4.º,
n.º 1, alínea a).
De facto, sendo o crime punível, abstractamente, com pena de morte, o julgamento
do pedido de extradição não pode deixar de convocar aquele normativo: num tal
caso, a promessa de que essa pena não será aplicada mais não é do que a garantia
a que alude a alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo 4.º
Deve, na verdade, entender-se que há recurso para o Tribunal Constitucional de
decisões dos tribunais que aplicam o regime estatuído pela norma cuja
inconstitucionalidade foi suscitada, mesmo quando essa aplicação é feita sob a
invocação de outro ou outros preceitos jurídicos.
Isto é quanto basta para que se devam ter por verificados os pressupostos do
recurso que, com a presente reclamação, se pretende fazer seguir para este
Tribunal.
6 — Como se perceberá do discurso que vai adoptar-se, a decisão a tomar passa
pelos dois seguintes tópicos:
— o regime legal da extradição no território de Macau (artigo 292.º da
Constituição) é ainda o constante do citado Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de
Agosto — o primeiro diploma que no nosso País veio disciplinar tal matéria, pois
inexistia lei interna sobre extradição que definisse o seu regime, quer no
aspecto substantivo, quer no processual — e não o do Decreto-Lei n.º 43/91, de
22 de Janeiro, que revogou expressamente aquele (artigo 155.º), mas não foi
mandado aplicar ao território de Macau, nem nele foi publicado [artigos 72.º e
73.º do Estatuto Orgânico de Macau, constante da Lei n.º 1/76, de 17 de
Fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.os 53/79,
de 14 de Setembro, e 13/90, de 10 de Maio (n.º 2 do citado artigo 292.º)];
— o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias que consta da
Lei Fundamental da República Portuguesa é directamente aplicável ao território
de Macau, por força do disposto no artigo 2.º do mencionado Estatuto Orgânico,
pelo que a lei ordinária, como é o Decreto-Lei n.º 437/75, publicado no Boletim
Oficial de Macau n.º 47, de 19 de Novembro de 1977 (por determinação do Despacho
Normativo n.º 218/77, da Presidência do Conselho de Ministros, publicado na I
Série do Diário da República, n.º 201, de 11 de Novembro de 1977) ainda que
anterior à Constituição, tem de se conformar materialmente com esse regime
(artigo 290.º da Constituição).
7 — A partir destes tópicos, facilitado fica o caminho para formular um juízo de
(in)constitucionalidade acerca do questionado artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto-Lei n.º 437/75, aplicado, como foi, ainda que sob invocação de outro ou
outros preceitos jurídicos, no acórdão recorrido, nos termos que se deixaram
explanados [e que voltam a recordar-se com apelo à seguinte transcrição do
Acórdão n.º 481/94: «De facto, sendo o crime punível, abstractamente, com pena
de morte, o julgamento do pedido de extradição não pode deixar de convocar
aquele normativo: num tal caso, a promessa de que essa pena não será aplicada
mais não é do que a garantia a que alude a alínea a) do n.º 1 do mencionado
artigo 4.º»].
Ele reza assim:
1 — A extradição pode ser negada quando:
a) O crime for punível no Estado requerente com a pena de morte
ou com prisão perpétua e não houver garantia da sua substituição;
b) (…)
A extradição, que a lei não define, mas a Doutrina define («A extradição é a
transferência de um indivíduo que se encontra no território de um Estado para as
autoridades de outro Estado, a solicitação deste, por aí se encontrar arguido ou
condenado pela prática de um crime, sendo entregue às autoridades desse Estado»
— Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3.ª ed., p. 210), é um
instituto antiquíssimo como instrumento de colaboração entre as comunidades e os
Estados, e contribui fundamentalmente para a realização dos objectivos
prosseguidos pelo direito penal, pois é destinado a permitir a cada Estado
exercer a sua competência apesar da fuga do infractor.
Entrado em vigor o diploma de 1975, portanto, antes da Constituição, que é de
1976, assinale-se que a norma contida no seu artigo 4.º traduz praticamente o
estatuído no artigo 11.º da Convenção Europeia de Extradição, assinada em
Estrasburgo em 27 de Abril de 1957, onde se dispõe que:
Se o facto pelo qual é pedida a extradição for punido com pena capital pela lei
da Parte requerente e se essa pena não estiver prevista pela lei da Parte
requerida, ou aí não for geralmente executada, a extradição poderá ser recusada,
excepto se a Parte requerente prestar garantias, consideradas suficientes pela
Parte requerida, de que a pena capital não será executada.
Pode afirmar-se que o legislador do Decreto-Lei n.º 437/75 não ousou ir mais
longe, do que nessa Convenção se ía, no que respeita à extradição.
De entre os princípios gerais que caracterizam o direito extradicional (cfr.
Filomena Delgado, «A Extradição», in Boletim, n.º 367, pp. 23 e segs.), costuma
mencionar-se o da conformidade do pedido à ordem pública e a um fim de justiça e
com ele se relaciona a norma da alínea a), por dizer respeito à questão da pena
de morte.
É que, se para alguns Estados a pena de morte continua a não ser considerada uma
pena desumana e degradante, para outros Estados, como é o caso de Portugal, ela
foi abolida no leque das penas, e daí a preocupação do legislador ordinário, no
campo da extradição, em garantir a «sua substituição», para poder funcionar tal
instituto de cooperação internacional.
O que se compreende, na óptica da abolição da pena de morte, pois a vida humana
é inviolável, como se vê consagrado no n.º 1 do artigo 24.º da Constituição
(cfr. o Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 25/84, publicado na II Série
do Diário da República, n.º 80, de 4 de Abril de 1984), e isso tem a ver com a
«dignidade da pessoa humana», um dos esteios basilares da construção do nosso
Estado de direito democrático, à luz do artigo 1.º da Constituição. É esta
«dignidade da pessoa humana» que repudia a aplicação pelo Estado da pena
capital, a par de razões humanitárias, para se atingirem os fins de prevenção
geral e especial que acompanham o direito criminal.
Da benigna cultura penal a que se chegara já no período das Ordenações nada
testemunha melhor do que o assombro com que se gravaram na memória colectiva as
terríficas execuções da época pombalina, cujo modelo o despótico ministro teve
de ir buscar, por trágica ironia, às admiradas nações civis. Desde o século
XVIII ficaram abolidas de facto as penas cruéis e as penas corporais, e sob D.
Maria I deixou de ser executada a pena de morte, que todavia as comoções bélicas
e políticas da 1.ª metade do século XIX fariam renascer. A Carta Constitucional
de 1826 decretou definitivamente a extinção das penas corporais, e o Acto
Adicional de 1852 a abolição da pena de morte para os crimes políticos, depois
estendida a todos os crimes não-militares pela Carta de Lei de 1 de Julho de
1867, na metrópole, e pelo Decreto com força de lei de 9 de Junho de 1870, no
ultramar — lê-se na Polis, Verbo, 4, col. 1110.
E, mais à frente:
A modificação mais relevante no catálogo das penas é sem dúvida a abolição da
pena de morte para os crimes militares, ainda os cometidos no teatro de guerra,
imposta pela Constituição (artigo 24.º, n.º 2) e já concretizada no novo Código
de Justiça Militar de 1977. Portugal constitui-se assim num caso porventura
único no Mundo, se se abstrair das jurisdições eclesiásticas, de abolição total
da pena de morte — cols. 1112-1113.
Foi exactamente este nosso quadro normativo de abolição da pena de morte —
alcançado de modo absoluto, para o que restava dos crimes militares, com o novo
Código de Justiça Militar de 1977 — que levou o legislador, antes ainda da
Constituição de 1976, a rodear-se de garantias de que não haveria lugar a tal
pena, sendo ela prevista na legislação do Estado interessado na extradição. O
legislador não foi tão longe como depois foi o legislador constitucional, mas
logo vincou claramente que repudiava a pena capital quando nela poderia incorrer
o extraditando.
8 — O segundo tópico é decisivo para se alcançar a solução, pois passa por ele o
parâmetro da validade constitucional do questionado artigo 4.º, n.º 1, alínea
a), sendo que é indiscutível, à luz do artigo 2.º do Estatuto Orgânico de Macau,
que o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias que consta da
Lei Fundamental da República Portuguesa (o seu Título II da Parte I) é
directamente aplicável ao Território de Macau.
Ora, aqui relevam fundamentalmente:
— o artigo 24.º, a que correspondia o artigo 25.º do texto originário,
consagrando a inviolabilidade da vida humana (n.º 1) (e estabelecendo no n.º 2:
«Em caso algum haverá pena de morte»);
— o artigo 33.º, n.º 3, a que correspondia o n.º 3 do artigo 23.º, na redacção
primitiva, proibindo a «extradição por crimes a que corresponda pena de morte
segundo o direito do Estado requisitante» (e trazendo ainda à colação normas
como as dos actuais artigos 7.º, n.º 1, mandando reger Portugal nas relações
internacionais pelo princípio «do respeito dos direitos do homem», 15.º, n.º 1,
reconhecendo aos estrangeiros o gozo dos direitos do cidadão português, 25.º,
n.º 2, prescrevendo que ninguém «pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou
penas cruéis, degradantes ou desumanas»).
O confronto ou colisão parcial da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º, quando
admite a extradição se houver «garantia da sua substituição» (da substituição da
pena de morte), com aquelas normas da Lei Fundamental, preenchendo um
verdadeiro núcleo duro de características e valores de um Estado de direito, é
patente (para Filomena Delgado, loc. cit., p. 65, «este artigo encontra-se
parcialmente revogado pela entrada em vigor das disposições constitucionais
sobre a matéria»).
Com efeito, o legislador constitucional foi mais longe do que o legislador
ordinário de 1975, pois que não estabeleceu qualquer condicionalismo, no sentido
de condição legal, que tornasse possível a extradição para países onde existisse
a possibilidade de aplicação de pena de morte, que, depois de ser aplicada,
viesse a ser substituída por uma pena de outro tipo. Nem no plano literal, nem
no plano teleológico, se pode extrair do Texto Constitucional a permissão de tal
condicionalismo.
Deste modo, o texto da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º deverá agora ser
perspectivado à luz da Constituição (no entendimento de Gomes Canotilho e Vital
Moreira, «a proibição da extradição em caso de haver possibilidade de aplicação
da pena de morte está ligada à protecção absoluta, conferida ao direito à vida»
— loc. cit., pp. 210-211).
Na verdade, tem o Tribunal Constitucional afirmado por diversas vezes que,
quando esteja em causa a inconstitucionalidade material de uma norma, o
parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no
momento da aplicação da norma que é questionada, donde resulta que, no caso
concreto, tendo a aplicação da norma da alínea a) ocorrido depois da entrada em
vigor da Constituição de 1976, com as alterações introduzidas pela revisão de
1989, é a este texto que temos de nos ater (cfr. Acórdãos n.os 408/89 e 446/91,
publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 31 de Janeiro
de 1990 e de 2 de Abril de 1992).
A protecção constitucional significa averiguar em concreto da compatibilidade da
extradição com os princípios que a enformam, tendo em atenção, especialmente, a
Constituição, a infracção, e a pena, seja no plano substantivo, seja no plano
processual, à luz do ordenamento interno dos dois Estados interessados na
extradição.
Por conseguinte, deve considerar-se sempre lesivo da Constituição o facto de o
Estado Português poder concorrer, no plano da extradição, para a aplicação e
execução de uma pena — a pena de morte — que, em nenhuma hipótese e por nenhum
tipo de crime, poderia ser infligida a qualquer cidadão, estrangeiro ou não, em
Portugal.
A proibição de aplicação de pena de morte, à luz do artigo 24.º, n.º 2,
representa, na verdade, o limite extremo que o Estado português nunca pode
transpor.
É que, o legislador constitucional quis de forma enfática afirmar que, desde que
ao crime corresponda pena de morte segundo a lei incriminadora do Estado
requerente, a extradição está peremptoriamente proibida. Por conseguinte, à luz
do artigo 33.º, n.º 3, a extradição só é consentida quando, segundo o direito
interno do Estado requerente, a pena susceptível de, em concreto, ser aplicada
ou já aplicada ao caso não seja a pena de morte.
Na verdade, só então não corre perigo o direito à vida do extraditando. Ora, o
direito à vida é, justamente, o que se pretende tutelar com aquela proibição de
extradição, cujo fundamento último é, como se viu já, a dignidade da pessoa
humana em que assenta o Estado de direito democrático e que impõe se proíba a
pena de morte.
A expressão «segundo o direito do Estado requisitante», usada no n.º 3 do artigo
33.º, tem, pois, de entender-se como sendo o direito internamente vinculante
desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de
que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer
mecanismos — e só eles — que se inscrevam vinculativamente no direito e processo
criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito
jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte
não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada (pense-se,
como mera hipótese académica, em preceitos legais do tipo do artigo 16.º, n.os 3
e 4, do nosso Código de Processo Penal vigente, concedendo ao Ministério Público
a iniciativa, vinculativa para o juiz, e processualmente irreversível, de
«entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três
anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo»).
9 — E, se se atentar no cuidado com que Portugal se tem vinculado a instrumentos
internacionais, vê-se a sua preocupação em excluir sempre do respectivo âmbito a
pena de morte, seja para que efeitos for.
Sucede, assim, que aprovada a já citada Convenção Europeia da Extradição para
ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, em 8 de
Novembro de 1988 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/89,
de 21 de Agosto, bem como os seus dois Protocolos Adicionais, assinados em
Estrasburgo em 27 de Abril, respectivamente de 1977 e de 1978, Portugal
estabeleceu uma reserva ao referido artigo 11.º, segundo a qual:
Não há extradição em Portugal por crime a que corresponda pena de morte segundo
a lei do Estado requerente.
É, sem dúvida, uma reserva motivada por imperativos constitucionais (cfr., a
propósito da referida Convenção Europeia, Margarida Frias, Revista do Ministério
Público, n.º 44, pp. 97 e segs.), já que aquele artigo 11.º exclui a recusa de
extradição, no caso de pena capital, «se a Parte requerente prestar garantias»
consideradas suficientes pela Parte requerida, de que aquela pena não será
executada. Só à luz do teor dessa disposição, em confronto com o artigo 33.º,
n.º 3, da Constituição, se compreende a necessidade de uma tal reserva (e o
mesmo acontece, por exemplo, com as reservas formuladas a propósito das
Convenções identificadas pelo recorrente e que constam dos Decretos do
Presidente da República, n.os 22/94 e 66/94).
E registe-se ainda que no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro,
sobre a cooperação judiciária internacional em matéria penal, e que revogou a
lei de extradição de 1975, o legislador afirma claramente: «a lei vigente sobre
extradição foi entretanto inconstitucionalizada em certos pontos essenciais pela
Constituição da República, entrada em vigor posteriormente à sua introdução na
ordem jurídica interna».
10 — Sendo isto assim, a norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei
n.º 437/75, enquanto prevê a possibilidade da extradição ser concedida havendo
garantia da substituição da pena de morte, fere a Lei Fundamental, por violação
das normas constantes dos artigos 24.º, n.º 2, e 33.º, n.º 3.
In casu, talqualmente as instâncias do território de Macau deram como provado, e
resulta do modo como vem instruído o pedido de extradição, o recorrente
encontra-se indiciado na República Popular da China, «sem possibilidade de
contestação, face ao disposto no n.º 3 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 437/75,
pela prática de um crime de homicídio voluntário, por estrangulamento, na pessoa
de C., sua ex-namorada, ocorrido no dia 18 de Junho de 1990, pelas 18 horas, na
residência desta, sita no distrito de Heshan, província de Guongdong, na RPC» e
esse crime «encontra-se previsto na Segunda Parte — Medidas Específicas — do
Código Penal da RPC de 1979, sob o artigo 132.º, onde se lê:
Quem intencionalmente cometer homicídio será condenado à morte, a prisão
perpétua ou a prisão não inferior a dez anos; se ocorrerem circunstâncias
atenuantes, a pena não será inferior a três nem superior a dez anos de prisão».
Daqui decorre, à evidência, que, de acordo com a lei vigente na República
Popular da China (isto é, segundo o seu direito interno vinculante), o
recorrente, que tem mais de 30 anos de idade, por aplicação daquele artigo
132.º, estaria sempre sujeito a ser condenado numa pena de morte.
É certo que a República Popular da China ofereceu a garantia de que a pena de
morte não seria no caso aplicada. Não se questiona a consistência de uma tal
garantia, que internacionalmente vincula a República Popular da China, nem que
ela seja subsumível à previsão do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), na parte em que
prevê a possibilidade da extradição ser concedida, havendo garantia da
substituição da pena de morte. Só que, aquela norma do artigo 4.º, n.º 1,
alínea a), nessa parte, é inconstitucional, como já se viu.
De resto, nunca poderia ver-se em garantias desse tipo um mecanismo inscrito no
ordenamento jurídico interno do Estado requisitante capaz de tornar inoperante a
norma desse direito que preveja a pena de morte.
De facto, uma tal garantia, apesar de ser juridicamente vinculante no plano
internacional, não é direito do Estado requisitante, no sentido que atrás ficou
fixado, para efeitos do artigo 33.º, n.º 3, da Constituição, já que não pode
ter-se como juridicamente vinculante para o juiz interno.
11 — Termos em que, decidindo:
a) Julga-se inconstitucional a norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea a),
do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, por violação do artigo 33.º, n.º 3,
da Constituição, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no
Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição;
b) Em consequência, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o
acórdão recorrido, para ser reformado de acordo com o presente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 4 de Julho de 1995. — Guilherme da Fonseca — Messias Bento — José de
Sousa e Brito — Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — Fernando
Alves Correia — Maria Fernanda Palma — Maria da Assunção Esteves — Luís Nunes de
Almeida — Alberto Tavares da Costa — Vítor Nunes de Almeida (vencido) —
Bravo Serra (vencido) — José Manuel Cardoso da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não interessa discutir a asserção, constante do acórdão de que a presente
declaração faz parte integrante, segundo a qual, por força do disposto no n.º 3
do artigo 33.º da Constituição, não é consentida a extradição quando, «segundo o
direito do Estado requisitante», a pena susceptível de em concreto ser aplicada
revestir a espécie de pena capital.
Efectivamente, uma tal estatuição constante do nosso Diploma Básico decorre da
consagração constitucional fundamental segundo a qual «[a] vida humana é
inviolável» (n.º 1 do artigo 24.º), isto é, decorre da consagração da defesa do
valor positivo da vida, e não já do comando (ínsito no n.º 2 do citado artigo
24.º) de que «[e]m caso algum haverá pena de morte», ou seja, do comando que
visa a defesa do valor negativo da proibição da pena de morte, pois que, na
minha óptica, esta última prescrição dirige-se ao ordenamento jurídico nacional,
não podendo, como é evidente, ser imposto aos ordenamentos estrangeiros ou
servir como «forma de pressão» (no sentido de recusa de formas de cooperação
judiciária) para que estes deixem de conter na respectiva previsão a pena
capital.
Mas, se assim é, ou seja, se a proibição da extradição se funda no asseguramento
da inviolabilidade da vida humana, ou, como se disse, na defesa do valor
positivo da vida, então, se o Estado requisitante dessa forma de cooperação
judiciária assegurar a Portugal, como Estado requisitado, que a vida do
extraditado não será violada por intermédio da aplicação da pena de morte, já
será, na nossa perspectiva, possível, sem ofensa da proibição constante do n.º 3
do artigo 33.º, o deferimento da extradição.
Ora, é justamente aqui que, primordialmente, nos afastamos do discurso utilizado
no vertente aresto quanto à interpretação demasiado restritiva que nele se faz e
segundo a qual a «expressão ‘segundo o direito do Estado requisitante’, usada no
n.º 3 do artigo 33.º tem … de entender-se como sendo o direito internamente
vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas
penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por
quaisquer mecanismos — e só eles — que se inscrevem vinculativamente no direito
e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do
direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de
morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada», e
ainda quando ali se afirma que a garantia oferecida pela República Popular da
China cuja consistência se não questiona e que se aceita vincular
internacionalmente aquele Estado, sendo essa garantia «subsumível à previsão do
artigo 4.º, n.º 1, alínea a), na parte em que prevê a possibilidade de a
extradição ser concedida, havendo garantia da substituição da pena de morte» —
«apesar de ser juridicamente vinculante no plano internacional, não é direito do
Estado requisitante…, já que não pode ter-se como juridicamente vinculante para
o juiz interno».
Na verdade, um compromisso unilateral tomado por um Estado soberano e de
harmonia com qual ao extraditando nunca será aplicável a pena capital ou a pena
de prisão perpétua, assumindo esse compromisso, verdadeiramente, características
de renúncia parcial do livre direito de punir do Estado peticionante da
extradição, numa situação em que:
— a própria Constituição desse Estado prevê que os órgãos judiciais e de
acusação pública são constituídos pelo poder político, respondendo perante ele e
estando sujeitos à sua fiscalização (cfr. artigos 3.º, 62.º, 63.º, 67.º e 128.º
da Constituição da República Popular da China);
— o seu próprio direito interno pune, sem distinção ou ocorrência de especiais
circunstâncias, o crime em causa, quer com a pena de morte, quer com a pena de
prisão perpétua, quer com a pena de prisão não inferior a 10 anos e não superior
a 15 anos (cfr. artigos 132.º e 40.º do Código Penal da República Popular da
China);
— é concedida aos órgãos judiciais (cfr. o caso dos Comités Judiciais dos
tribunais populares, nomeados e exonerados pelas várias formas de organização do
congresso do povo consoante os graus de hierarquia desses tribunais — v. a Lei
Orgânica dos Tribunais Populares da República Popular da China) a faculdade de,
independentemente da as circunstâncias concretas rodeadoras do crime apontarem
no sentido da não dever ser imposta uma pena atenuada, sentenciarem em medida
inferior ao mínimo legalmente prescrito (cfr. artigo 59.º do Código Penal da
RPC);
— a prática frequente do processo criminal do Estado requisitante que, por
alguma doutrina, tem sido considerada como conduzindo a que a investigação prove
directamente, antes do julgamento, a «objectividade e relatividade da prova, do
tipo legal e da medida da pena» (cfr. Estudo sobre o Modelo de Processo Penal e
do Processo de Indemnização em Caso de Inocência do Prof. Tao Mao, Vice-Reitor
da Universidade de Direito e Ciência Política da China, no Seminário realizado
em 1994 em Macau e subordinado ao tema Linhas de Evolução do Direito da R.P.C.),
tal compromisso, dizíamos, não pode deixar de considerar-se algo que se reveste
de tanta força vinculativa para os órgãos judiciais internos como os
«mecanismos» a que se reporta o acórdão.
Com efeito, admitido como está pelo próprio aresto, que a garantia é
juridicamente vinculante no plano internacional, não faz sentido que ela se não
reflicta no plano interno, apresentando, pois, aí, idêntica força vinculante,
quanto mais não seja por via do princípio da boa fé que estrutura a validade
internacional dos compromissos assumidos por Estados soberanos.
Aliás, a nosso ver, o acórdão a que se encontra apendiculada a presente
declaração, mesmo delimitando, pela interpretação restritiva que faz, o que para
ele deve ser entendido como «direito interno do Estado requisitante», não logra
demonstrar que, atento o ordenamento jurídico do Estado em questão, o
compromisso in casu deparado não constitui ou, se se quiser, não faz ou vai
fazer, em concreto, parte do respectivo «direito interno» no sentido (para o
acórdão o único que deverá ser perspectivado como correcto) de integrar um
mecanismo que se inscreva «vinculativamente no direito e processo criminais,
ainda que» decorrente «do direito constitucional ou do direito jurisprudencial»
desse Estado.
Em face do exposto, entendemos que uma norma como a ora sub iudicio, entendida
no sentido de que é vedada a extradição quando o direito do Estado requisitante
puna o crime com pena capital, salvo se este se comprometer, ainda que por mero
acto unilateral, a não aplicar em concreto tal pena, não padece de
inconstitucionalidade, uma vez que, assegurado que seja esse compromisso,
salvaguardada está a defesa do aludido interesse positivo de defesa da vida,
valor subjacente à injunção constante do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição. —
Vítor Nunes de Almeida — Bravo Serra.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Novembro de
1995.