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Processo nº 248/94
2ª Secção
Relator: Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J... impugnou, no Tribunal Tributário de 1ª
Instância de Lisboa, a liquidação do imposto sobre o rendimento de pessoas
singulares (IRS), relativo ao ano de 1989, pedindo a sua anulação parcial, no
valor de 479.400$00 (o montante total era de 1.222.952$00).
Fundamentou o seu pedido no facto de a
Administração Fiscal não ter deduzido à respectiva matéria colectável a
importância relativa à sua entrada de capital para a Cooperativa C..., de que é
sócio - o que, em seu entender, constitui ilegalidade.
2. Como a impugnação foi julgada improcedente,
o MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância recorreu da
sentença para o Supremo Tribunal Administrativo (Secção de Contencioso
Tributário), pugnando pela anulação da referida liquidação em nome dos
princípios constitucionais da legalidade tributária e da protecção da confiança,
'a fim de ser tido em consideração o benefício fiscal já adquirido' antes de 31
de Dezembro de 1988.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão
de 20 de Abril de 1994, negou, porém, provimento ao recurso, confirmando a
sentença recorrida.
3. É deste acórdão (de 20 de Abril de 1994)
que vem o presente recurso, interposto também pelo Ministério Público ao abrigo
da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para
apreciação do artigo 2º, nº 1, do Decreto‑Lei nº 215/89, de 1 de Julho (editado
ao abrigo do artigo 3º, nº 2, da Lei nº 8/89, de 22 de Abril).
Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto
concluiu as suas alegações do modo que segue:
1. A interpretação acolhida na decisão recorrida de que o artigo 2º, nº 1 do
Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, estatuído em obediência ao nº 2 do artigo
3º, da respectiva lei de autorização legislativa (Lei nº 8/89, de 22 de Abril),
não salvaguarda os benefícios fiscais temporários cujo direito tenha sido
adquirido até 31 de Dezembro de 1988, na hipótese de o Estatuto dos Benefícios
Fiscais não prever o mecanismo de conversão a que se refere a alínea e) do nº 1
daquele artigo 2º, viola o princípio da protecção da confiança insíto na ideia
de Estado de Direito Democrático (Artigo 2º da Constituição);
2. Deve, assim, conceder-se provimento ao presente recurso, determinando-se a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Por sua parte, o Director-Geral das
Contribuições e Impostos apresentou as seguintes conclusões:
1º O benefício fiscal previsto no artigo 14º do Dec.Lei nº 737-A/74, visava
desagravar o imposto complementar;
2º O imposto complementar era um imposto cedular, inserido num sistema de
tributação sobreposta, que perdeu existência legal com a entrada em vigor do
diploma que criou o IRS, cujo objectivo foi substituir o sistema de tributação
sobreposta por um sistema de tributação unitária e global dos rendimentos;
3º A implementação legal do sistema de tributação unitária e global pretendeu
dar corpo aos princípios da justa repartição dos rendimentos e da riqueza,
ínsitos no nº 1 do artigo 106º da CRP;
4º O desaparecimento do imposto que o benefício em questão pretendia desagravar
e a sua não substituição por outro de igual ou idêntica natureza, determinou,
consequentemente, o desaparecimento de tal benefício, sem que com isso se
ofendam quaisquer normas ou princípios constitucionais;
5º Com o desaparecimento do imposto complementar desapareceram os próprios
pressupostos da determinação da matéria colectável que servia de base ao cálculo
do imposto e onde era relevante o facto originador do direito ao benefício
Termos em que concluímos:
A interpretação que a administração fiscal fez, do nº 1 do artigo 2º do
Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, no acto de liquidação do IRS do
contribuinte J..., relativo ao ano de 1989, interpretação acolhida e confirmada
no douto acórdão do STA, de 20/04/94, não viola qualquer norma ou princípio
constitucional, nomeadamente, não viola quer o princípio da protecção da
confiança, quer o princípio da legalidade tributária.
Como tal, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se o
entendimento maioritariamente acolhido no acórdão recorrido.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir a
questão de saber se é (ou não) inconstitucional a norma do artigo 2º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, quando interpretado (tal como o foi pelo
acórdão recorrido) em termos de não salvaguardar o benefício fiscal fundado no
artigo 14º do Decreto-Lei nº 737‑A/74, de 23 de Dezembro, adquirido antes de 31
de Dezembro de 1988.
II. Fundamentos:
5. A questão prévia do conhecimento do
recurso:
Para que este Tribunal deva conhecer de um
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, é necessário, entre o mais, que o recorrente tenha
suscitado a inconstitucionalidade de determinada norma legal, durante o processo
(isto é: em regra, até ao momento em que é proferida a decisão sobre a matéria a
que respeita a questão de constitucionalidade); e que, não obstante essa
acusação de desconformidade com a Lei Fundamental, a decisão recorrida tenha
aplicado essa norma no julgamento do caso.
A questão de constitucionalidade tem que ser
suscitada perante o tribunal de cuja decisão se recorre para o Tribunal
Constitucional, de forma clara e perceptível - ou seja: por forma a que aquele
tribunal saiba que tem essa questão para resolver.
Pois bem: conquanto o caso dos autos não seja
um modelo de clareza no modo de suscitar a inconstitucionalidade de uma certa
interpretação de uma norma legal (no caso, da interpretação, que se apontou, do
artigo 2º, nº 1, do Decreto‑Lei nº 215/89, de 1 de Julho), há, apesar de tudo,
que concluir que o recorrente cumpriu o respectivo ónus.
De facto, ele começou por mostrar que a
dedução (prevista no artigo 14º do Decreto-Lei nº 737-A/74) é um benefício
fiscal: 'um estímulo fiscal, em que a natureza para‑contratual mais se acentua,
uma vez que determinou uma situação tributária, de carácter temporário, em que a
necessidade de salvaguardar a segurança, a boa fé e a confiança dos cidadãos
assume maior intensidade ainda que na hipótese de um benefício, a vigorar por um
certo período, mas em que os efeitos se esgotem no mesmo ano fiscal da
verificação dos pressupostos do respectivo direito', estando, por isso, incluído
na previsão do artigo 3º da Lei nº 8/89, de 22 de Abril, que é a norma que
salvaguarda os direitos adquiridos. Disse, a seguir, que 'não seria pela não
inclusão nestas [refere-se às tabelas de conversão] que o benefício em causa
iria ficar desprovido da protecção jurídica que, em observância dos princípios
da boa fé e da segurança jurídica dos cidadãos, lhe foi conferida pelos artigos
3º, nº 3, da Lei nº 8/89 e 2º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 215/89'.
Acrescentou, depois, que, no caso dos autos, à data da entrada em vigor do
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, já existia um
direito adquirido à referida dedução, que, por isso, 'deve ser considerado, quer
por força dos princípios fundamentais, que regulam a sucessão das leis no tempo,
quer por força das disposições atrás referidas que integram o regime
transitório, quer ainda por força dos princípios da legalidade tributária [...]
e da 'protecção da confiança', que apontam para uma consagração implícita da não
retroactividade da lei fiscal' (sublinhado acrescentado). E concluiu dizendo:
Devendo, nos termos das disposições legais referidas [...] e de acordo com o
princípio da legalidade tributária [...] e da 'protecção da confiança', ser
anulada a liquidação impugnada a fim de ser tido em consideração o benefício
fiscal já adquirido.
Significa isto que, na tese do recorrente, o
benefício fiscal, fundado no artigo 14º do Decreto-Lei nº 737‑A/74, de 23 de
Dezembro (e adquirido, no caso dos autos, antes de 31 de Dezembro de 1988), deve
considerar-se salvaguardado pelo artigo 2º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº
215/89, de 1 de Julho, seja por via de interpretação deste normativo, seja
porque, se outro for o sentido desta norma, tal salvaguarda a impõem os
princípios constitucionais da legalidade tributária e da protecção da confiança.
Dizendo de outro modo: na tese do recorrente,
o mencionado artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, se for
interpretado em termos de não salvaguardar os benefícios fiscais fundados no
artigo 14º do Decreto-Lei nº 737‑A/74, de 23 de Dezembro, adquiridos antes de 31
de Dezembro de 1988, é inconstitucional, pois violará aqueles princípios
consagrados na Lei Fundamental.
Também o acórdão recorrido, quando conclui que
a liquidação impugnada, tal como foi feita, não ofendeu os princípios da
legalidade tributária e da protecção da confiança, o que está a afirmar é que a
apontada interpretação do referido artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89 não
é inconstitucional, já que foi à luz dessa interpretação que a Administração
Fiscal liquidou o imposto de 1989.
O recorrido também não põe em dúvida que a
questão de constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Há, então, que passar a decidir a questão que
atrás se indicou.
6. A questão de constitucionalidade:
6.1. Com a publicação do Decreto-Lei nº
737-A/74, de 23 de Dezembro, as entradas dos sócios para as cooperativas de
habitação económica passaram a ser deduzidas na matéria colectável a considerar
para o imposto complementar. Tal dedução era 'escalonada pelo período de três
anos a contar daquele em que se efectuou a entrada do capital', sendo que a
parte que não pudesse ser 'deduzida num determinado ano, por insuficiência de
matéria colectável', o seria 'nos anos seguintes, desde que não ultrapass[asse]
o último daquele período' de três anos (cf. artigo 14º).
Dispunha, com efeito, o referido artigo 14º:
1. As entradas dos sócios para as cooperativas de habitação económica são
deduzidas à matéria colectável a considerar para o imposto complementar
respeitante ao ano em que a entrada se efectuou.
2. A dedução a que se refere o número anterior será escalonada pelo período de
três anos a contar daquele em que se efectuou a entrada do capital, mas a parte
que não possa ser deduzida num determinado ano, por insuficiência da matéria
colectável, sê-lo-á nos anos seguintes, desde que não ultrapasse o último
daquele período.
Tratava-se claramente de um benefício fiscal,
que o legislador concedeu aos sócios das cooperativas de habitação económica,
por entender que estas são de 'interesse social' (cf. artigo 1º do citado
Decreto-Lei nº 737-A/74).
Este benefício fiscal temporário, que actuava
apenas em sede de imposto complementar, foi poupado pelo Decreto-Lei nº 485/88,
de 30 de Dezembro, que, logo após a publicação do Código do IRS (Decreto-Lei nº
442-A/88, de 30 de Dezembro), do Código do IRC (Decreto-Lei nº 442-B/88, de 30
de Novembro), do Código da Contribuição Autárquica (Decreto-Lei nº 442-C/88, de
30 de Novembro), e ainda antes de publicado o novo Estatuto dos Benefícios
Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho), extinguiu perto de
uma centena de benefícios fiscais.
Publicado o novo Estatuto dos Benefícios
Fiscais, ficaram, em princípio, revogados os benefícios fiscais referentes aos
impostos extintos. Isto, porém, sem prejuízo do respeito pelos direitos
adquiridos ao abrigo da legislação revogada.
De facto, a Lei nº 8/89, de 22 de Abril (lei
de autorização legislativa) e os artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº 215/89, de 1
de Julho (editado ao abrigo de tal autorização) - como escreve NUNO DE SÁ GOMES,
'Teoria Geral dos Benefícios Fiscais', in Ciência e Técnica Fiscal, nº 359
(Julho-Setembro 1990), página 33 -, 'ressalvaram os direitos adquiridos
emergentes dos benefícios fiscais anteriormente concedidos, de fonte
internacional, contratuais, temporários e condicionados, que, em princípio,
foram mantidos nos termos em que foram concedidos'.
E o referido Autor especifica (ob. e loc.
cit.):
Assim, integrar-se-á o anterior benefício fiscal no novo sistema de tributação,
sempre que se trate de desgravamento que o permita, como sucede nos casos de
benefícios que se traduziam em aumentos de custos (v.g., amortizações e
reintegrações aceleradas) ou em deduções ao lucro tributável, ou ainda quando se
tratasse de isenções de impostos parcelares acompanhadas da isenção do
respectivo imposto complementar.
Tratando-se de situações em que não poderá ou não deverá ser feita a integração
do anterior benefício fiscal no novo sistema de tributação, como sucede, v.g.,
nos casos em que o benefício fiscal dizia apenas respeito ao imposto cedular
revogado mas já não também ao correspondente imposto complementar,
substituir‑se‑ão os anteriores benefícios fiscais pelos novos benefícios
considerados equivalentes mediante a aplicação das tabelas de conversão que
foram publicadas em anexo ao EBF, concebidas como tabelas de dupla entrada
configurando as correspondentes situações verificadas nos impostos parcelares e
no imposto complementar, em correspondência com os respectivos coeficientes de
equivalência.
6.2. O acórdão recorrido interpretou a norma
sub iudicio (dito artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho) no
sentido de que ela não salvaguarda o benefício fiscal que o artigo 14º do
Decreto-Lei nº 737-A/74, de 23 de Dezembro, concedia aos sócios das cooperativas
para habitação económica, mesmo que adquirido antes de 31 de Dezembro de 1988.
Em tal aresto, depois de se transcrever o
mencionado artigo 14º, escreveu-se , com efeito, o seguinte:
Simplesmente, por força do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de
Novembro, que aprovou o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares, foi abolido, na data da entrada em vigor deste Código, ou seja, em 1
de Janeiro de 1989, entre outros, o imposto complementar.
Por isso, acrescentou-se, aí - como, por força
do disposto no nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho (que
aprovou o Estatuto dos Benefícios Fiscais e foi editado ao abrigo da autorização
legislativa concedida pelo artigo 3º da Lei nº 8/89, de 22 de Abril), os
benefícios fiscais que tinham sido adquiridos antes de 31 de Dezembro de 1988,
só se mantêm, se forem 'benefícios fiscais de fonte internacional e contratual'
ou, então, 'benefícios temporários e condicionados', o benefício concedido pelo
mencionado artigo 14º do Decreto-Lei nº 737-A/74 caducou.
Isto é assim, porque - disse-se - 'na espécie
vertente, o benefício fiscal [...] brota unicamente da lei, mais concretamente,
do artigo 14º do Decreto-Lei nº 737-A/74, de 23 de Dezembro, pelo que não se
poderá falar, aqui, de 'fonte internacional' ou 'contratual' e, por outro lado,
pese embora o seu carácter temporário, o mesmo não consta das 'tabelas de
conversão' a que aludem os artigos 3º, nº 4, e 2º, nº 1, alínea e)'.
E acrescentou-se no referido aresto:
De qualquer modo, ainda que, como pretende o recorrente, se atribua 'carácter
paracontratual ao questionado benefício, este nunca terá lugar em sede de IRS'.
É que, como o Supremo Tribunal Administrativo vem afirmando a propósito de casos
idênticos 'o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, ao contrário do
que acontecia com o imposto complementar, não é um tributo de sobreposição - que
recaia sobre rendimentos total ou parcialmente já tributados noutras cédulas -,
mas de substituição destas, em que aquele não tem lugar nem relevância,
tendo-se, pois, passado a uma tributação global e unitária [...]
Por conseguinte, extinto que foi, com o CIRS, o sistema de tributação
sobreposta, os benefícios fiscais próprios desse sistema deixaram de ter
qualquer relevância e, assim, não poderão figurar no âmbito daquele Código,
relativo a um imposto com carácter unitário, que não de sobreposição.
6.3. Pergunta-se, então: o referido artigo 2º,
nº 1, do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho - cujo texto, a seguir se
transcreve -, interpretado do modo que se deixa apontado, será inconstitucional,
designadamente por violação dos princípios da legalidade tributária e da
protecção da confiança, este último ínsito na ideia de Estado de Direito?
No que aqui importa, o artigo 2º citado
preceitua:
Artigo 2º (regime transitório geral)
1. São mantidos nos termos em que foram concedidos, com as necessárias
adaptações, os benefícios fiscais cujo direito tenha sido adquirido até 31 de
Dezembro de 1988 ou aqueles que, tendo sido objecto de decisão em data
posterior, forem reportados a 31 de Dezembro de 1988, nos termos do nº 5, sendo
de observar o seguinte:
a). os benefícios fiscais que se traduzem em aumentos de custos, designadamente
acelerações de reintegrações e amortizações ou em deduções ao lucro tributável,
efectivam-se em sede de IRS ou de IRC nos termos da legislação que lhes era
aplicável.
b). os benefícios fiscais que se traduziam em isenções dos impostos parcelares e
do imposto complementar correspondente convertem-se em isenções dos respectivos
rendimentos em sede de IRS ou de IRC;
e). os benefícios fiscais não compreendidos nas alíneas anteriores são
substituídos por benefícios fiscais equivalentes mediante a aplicação de tabelas
de conversão anexas ao Estatuto dos Benefícios Fiscais e que dele fazem parte
integrante.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, são direitos adquiridos os
benefícios fiscais de fonte internacional e contratual e os benefícios
temporários e condicionados, sem prejuízo do disposto nos Códigos do IRS, IRC e
da CA.
O Procurador-Geral Adjunto responde
afirmativamente à pergunta formulada, uma vez que, em seu entender, a
interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº
215/89, de 1 de Julho, 'implica uma violação constitucionalmente inadmissível do
princípio da protecção da confiança'.
É que, disse:
Em primeiro lugar, por ser indiscutível que afecta a expectativa que os
titulares do benefício naturalmente criaram de que este não lhes seria retirado
antes de terminado o prazo respectivo. Em segundo lugar, porque a retirada de
tal benefício não era previsível, não aparecia aos olhos dos seus titulares como
provável. Em terceiro lugar, porque não se descortinam quaisquer razões de
interesse público que possam sobrepor-se à tutela dos valores da segurança
jurídica, como, aliás, o próprio legislador não descortinou [...].
O Director-Geral das Contribuições e Impostos,
de sua parte, entende que 'a interpretação das normas legais que lhe subjazem [à
liquidação impugnada] em nada ofende os princípios constitucionais da legalidade
tributária e da protecção de confiança.
De facto, acentua:
[...] não se poderá dizer que a caducidade de um benefício fiscal, previsto para
actuar em sede de um determinado imposto, provocada pela abolição deste, possa
colidir com o princípio da protecção da confiança, enquanto princípio imanente
do princípio constitucional do Estado de Direito: com efeito, no caso concreto
[...], trata-se não da substituição de um imposto por outro imposto de natureza
equivalente, mas sim da alteração profunda do sistema tributário, onde o imposto
sobre que incidia uma determinada redução da matéria colectável deixou pura e
simplesmente de existir e com o seu desaparecimento desapareceram os próprios
pressupostos da determinação da matéria colectável que serviria de base ao
cálculo do imposto e onde era relevante o facto originador do direito ao
benefício.
6.4. Na interpretação feita pelo acórdão
recorrido, o artigo 2º, nº 1, aqui sub iudicio, não ressalvou o benefício fiscal
concedido pelo artigo 14º do Decreto-lei nº 737-A/74, de 23 de Dezembro, aos
sócios das cooperativas de habitação económica, relativamente às entradas de
capital, mesmo que o direito a esse benefício tenha sido adquirido antes de 31
de Dezembro de 1988 e, atento o carácter temporário deste, houvesse de ser
exercido para além dessa data.
O artigo 2º, nº 1, assim interpretado, assume
carácter retroactivo.
De facto, tal interpretação afectou a
expectativa que os titulares desse benefício haviam criado no sentido de que o
mesmo lhes não seria retirado antes de terminado o período de três anos por que
o mesmo fora concedido.
O que, então, importa decidir é se esta
retroactividade é ou não constitucionalmente admissível.
Este Tribunal já decidiu que a Constituição
não acolheu, como princípio geral, a proibição de leis fiscais retroactivas: a
irretroactividade da lei fiscal - para além de se não achar expressamente
consagrada no texto constitucional - não pode extrair-se do princípio da
legalidade tributária (consagrado no artigo 106º, nº 2, da Constituição), nem
tão‑pouco vai implicada, necessariamente, de forma absoluta, no princípio do
Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental.
No acórdão nº 66/84 (publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 4º volume, 1984, páginas 35 e seguintes - que seguiu na
esteira do acórdão nº 11/83 (publicado nos citados Acórdãos, volume 1º, 1983,
páginas 11 e seguintes), e bem assim na da jurisprudência firmada pela Comissão
Constitucional [cf. Pareceres nºs 25/81 (Pareceres da Comissão Constitucional,
volume 16º, páginas 265) e 14/82 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 318,
página 224)] - escreveu-se, a propósito:
O princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito
democrático, só exclui a possibilidade de leis fiscais retroactivas, 'quando se
esteja perante uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível
e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos
contribuintes'.
Significa isto, pois, que - como sublinharam
BARBOSA DE MELO, CARDOSO DA COSTA e VIEIRA DE ANDRADE (Estudo e Projecto de
Revisão da Constituição, Coimbra, 1981, página 125) - não devem 'considerar-se
constitucionalmente lícitos todos e quaisquer impostos 'retroactivos',
nomeadamente os eivados de 'autêntica' retroactividade: há aqui limites que de
modo algum podem transpor-se, e que derivam do princípio da protecção da
confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito. Simplesmente, e sem que para
isso haja necessidade de referi-los expressamente na Constituição, há-de ser a
jurisprudência, com o apoio da doutrina, a traçá-los em cada caso'.
Pois, o Tribunal Constitucional, no já
mencionado acórdão nº 66/84, acentuou, justamente, que 'o órgão de fiscalização
da constitucionalidade haverá que pronunciar a ilegitimidade constitucional das
normas fiscais retroactivas editadas, tão-somente quando essa retroactividade se
revelar intolerável, por violar a confiança dos cidadãos de forma inadmissível e
arbitrária'.
Posteriormente, este Tribunal, no seu acórdão
nº 287/90 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Fevereiro de
1991), depois de ponderar que a proibição da retroactividade arbitrária ou
excessivamente onerosa (e, por isso mesmo, inadmissível) vale, não apenas para a
retroactividade autêntica, como também para a retroactividade inautêntica
(retrospectiva), disse:
A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois
seguintes critérios:
a). Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b). Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes
(deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo
18º da Constituição, desde a 1ª revisão). Pelo primeiro critério, a afectação de
expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer
ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável,
porque injustificada ou arbitrária.
6.5. A norma que se contém no artigo 2º, nº 1,
do Decreto-Lei nº 215/89, de 1 de Julho, interpretada como foi pelo acórdão
recorrido (ou seja: interpretada por forma a aplicar-se às situações já
constituídas sem respeitar o direito ao benefício fiscal concedido pelo artigo
14º do Decreto-Lei nº 737-A/74, de 23 de Dezembro), violará, então, a confiança
dos cidadãos que investiram em cooperativas de habitação económica, de forma
inadmissível e arbitrária? Conterá ela uma retroactividade intolerável - e, por
isso mesmo, constitucionalmente inadmissível?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Na verdade, sendo o benefício fiscal concedido
pelo artigo 14º do Decreto-Lei nº 737-A/74 de carácter temporário, pois que,
valia, no máximo, durante três anos contados daquele em que se efectuou a
entrada do capital, aos investidores não ocorreria que o regime legal pudesse
ser modificado em termos de lhes ser retirado um tal benefício - ou, se se
quiser, sem respeitar o direito que a ele haviam adquirido. E, como se não
descortinam razões de interesse público que, no caso, sejam capazes de
prevalecer sobre o valor da segurança jurídica, a conclusão a extrair é a de que
a confiança de tais investidores na ordem jurídica foi violada de forma
inadmissível e arbitrária.
A retroactividade é, no caso, intolerável e,
consequentemente, constitucionalmente ilegítima.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional - por violação do princípio da protecção da
confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito - a norma do artigo 2º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 251/89, de 1 de Julho, interpretado no sentido de não
salvaguardar o benefício fiscal que o artigo 14º do Decreto-Lei nº 737-A/74, de
23 de Dezembro, concedia aos sócios das cooperativas de habitação económica,
adquirido antes de 31 de Dezembro de 1988;
(b). em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão
recorrido, a fim de o mesmo ser reformado em conformidade com o aqui decidido
sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 28 de Junho de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Luis Nunes de Almeida