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Proc. nº 33/98
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - J. C. (ora reclamado), por si e em representação da Sociedade Comercial Espanhola N....,SA, participou criminalmente contra A. V. e mulher C. M. (ora reclamantes), imputando-lhes factos susceptíveis de, no seu entender, configurarem a prática de um crime de abuso de confiança previsto pelo art. 300º do Código Penal, bem como de um crime de contrafacção de marcas previsto pelo art. 217º do Código de Propriedade Industrial.
2 - Após a realização do inquérito o Ministério Público ordenou o arquivamento dos autos, por entender que os factos não integravam o crime de abuso de confiança, mas um mero incumprimento contratual. Quanto aos factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de contrafacção de marcas, considerou o Ministério Público que tal ilícito, a existir, estaria abrangido pelo art. 1º, alínea s), da Lei 15/94, de 11 de Maio e, consequentemente, extinto, nesta parte, o procedimento criminal contra os arguidos.
3 - Inconformado com o teor do despacho supra referido requereu o participante a abertura da instrução, finda a qual foi proferido pelo Tribunal um despacho de não pronuncia.
4 - Novamente inconformado, o assistente J. C. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual veio a ter parcial provimento. Entendeu aquele tribunal que os factos indiciados nos autos integravam um crime de infidelidade, previsto pelo art. 319º, nº 1, do Código Penal de 1982, e pelo artigo 224º do Código Penal, na versão revista de 1995, pelo que ordenou a revogação do despacho de não pronuncia, e a sua substituição por outro em que o tribunal a quo pronunciaria os arguidos por um crime de infidelidade, previsto pelo art.
319º, nº 1, do Código Penal/82, e pelo artigo 224º do Código Penal/95.
5 - Em face desta decisão são agora os arguidos que, inconformados, requerem ao Tribunal da Relação -...que se digne anular o acórdão ou, caso assim não se entenda, a decisão relativa à pronúncia pelo Tribunal a quo, sem que aos arguidos seja previamente facultada a possibilidade de produzir prova.
6 - Colocou-se à questão objecto deste requerimento uma questão prévia, consistente em saber se, havendo a Relação já decidido, por acórdão, o recurso interposto de decisão da 1ª instância, poderia a mesma Relação anular esse acórdão, se uma das partes afectadas pelo recurso com ele não concordasse invocando uma qualquer irregularidade. A esta questão entendeu a Relação ser de dar uma resposta negativa.
7 - Notificados dessa decisão interpuseram os arguidos, em 20 de Novembro de
1997, e ao abrigo da alínea b), do nº 1, do art. 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, recurso para o Tribunal Constitucional. Pretendiam os recorrentes ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, segundo a qual o mesmo consente que em sede de recurso do despacho de não pronuncia se qualifiquem diferentemente os factos, ordenando-se consequentemente a pronúncia, sem facultar aos arguidos prévio contraditório, por entenderem que tal norma, assim interpretada, viola o disposto nos artigos
32º, nº 1 e 5; 13º, nº 1; e 20º da Constituição.
8 - Porém, o Relator do processo junto do Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho de 25 de Novembro de 1997, decidiu não admitir o recurso, com o fundamento em que o despacho de pronúncia é um despacho meramente interlocutório, sendo que para o Tribunal Constitucional apenas cabe recurso de decisões finais.
9 - Desta decisão apresentaram os arguidos a reclamação que agora se julga. Na fundamentação da mesma disseram, em síntese, o seguinte:
' 1. A douta decisão de rejeição do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, assenta na alegação segundo a qual o despacho de pronúncia é interlocutório, só assistindo aos ora Reclamantes o direito de recorrerem para o Tribunal Constitucional se condenados em última instância - o STJ.
(...)
3. Salvo o devido respeito por tal decisão, entendem os ora Reclamantes que a mesma assenta em interpretação errónea do disposto no art. 70º nº 2 da LOTC.
(...)
10. Todo o processo decorreu no sentido da imputação aos arguidos de dois tipos de crime relativamente aos quais os mesmos se defenderam. Mas não se defenderam, pois não podiam adivinhar, que posteriormente haveriam de ser acusados da prática do crime de infidelidade, o que veio a suceder apenas em sede de acórdão proferido em recurso.
11. Deste modo, os Reclamantes, que têm direito ao seu bom nome e à dignidade, enfrentarão o opróbrio de se sentarem no banco dos réus, sem que antes tenham podido esboçar qualquer defesa relativamente ao tipo criminal de que agora vêm a ser acusados, pelo simples motivo de não poderem adivinhar que tal viria a suceder.
12. Inconformados vieram os Reclamantes arguir nulidades do douto acórdão, nos termos que melhor constam do documento que se junta e aqui se tem por reproduzido.
13. O qual foi indeferido.
14. Tendo, então, os mesmo interposto recurso para esse Tribunal Constitucional, pretendendo que fosse aferida a conformidade com a Constituição das normas do Código de Processo Penal, com base nas quais se ordenava a pronúncia dos mesmos, sem prévio contraditório quanto à novel qualificação.
15. Tendo o recurso sido rejeitado nos termos já referidos.
16. Conforme já se disse, salvo o devido respeito, o entendimento em que se escorou a decisão em causa assentou em incorrecta interpretação do art. 70º, nº
2, da LOTC.
17. Refere-se na mesma: «os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei não o prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam». O recurso em causa - recorde-se - foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LOTC.
18. Estávamos perante o recurso de um despacho de não pronúncia, interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nos termos do Código de Processo Penal (artigos
13º, nº 2, alínea c) e 427º do CPP e 41º, nº 1, alínea a) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - LOTJ) compete ao Tribunal da Relação conhecer de recursos interpostos pelos tribunais de primeira instância.
19. Os Tribunais de Instância Criminal, são tribunais de primeira instância, conforme flui da sua inclusão no Capitulo V da LOTJ, subordinado à epígrafe
«Tribunais Judiciais de 1ª Instância».
20. Conforme resulta dos artigos 11º e 432º do CPP e 28º da LOTJ, dos acórdãos do Tribunal da Relação em matéria criminal, proferidos em sede de recurso interposto de decisões da primeira instância, não cabe recurso para o STJ.
21. Assim, a decisão do Tribunal da Relação, proferida nestas circunstâncias já não é passível de recurso ordinário, decidindo este tribunal em última instância.
22. A questão que importava resolver, e que se consubstanciava em saber se - sim ou não - os ora Reclamantes deveriam ser pronunciados criminalmente, já não é passível de recurso ordinário.
23. Assim, ao dispor conforme dispôs, violou a douta decisão o disposto no artigo 70º, nº 2 da LOTC.
24. Termos em que, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência ser admitido o recurso'.
10 - Ao abrigo do disposto no artigo 688º nº 3 do Código de Processo Civil o Tribunal da Relação de Lisboa, agora em conferência, decidiu manter o despacho reclamado, com base nos fundamentos que de seguida se sintetizam:
'Tem o Tribunal Constitucional decidido, constituindo jurisprudência pacífica, que: se houver recurso de constitucionalidade em consequência da decisão recorrida ter utilizado norma ou normas questionadas apesar de o recorrente as ter arguido de inconstitucionais (art. 70º, nº 1, al. b), da LTC), a admissibilidade deste tipo de recurso obedece à concorrência dos seguintes pressupostos:
a) prévia suscitação, durante o processo, pelo recorrente, da inconstitucionalidade da norma (ou da interpretação dada pela decisão);
b) utilização da norma pela decisão recorrida em termos de tal norma ou a interpretação contestada integrar a sua ratio decidendi;
c) exaustão dos meios de recurso ordinário por a lei os não prever ou por já se haverem esgotado os que no caso cabiam; Atentos estes princípios, pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso, importará analisar se o recorrente, ora reclamante, arguiu de inconstitucional a norma do art. 61º, nº 1, al.b), do CPC, e se a decisão recorrida, no caso disso e apesar disso, utilizou a norma questionada. Vejamos: A decisão que ordenou a pronúncia dos arguidos teve como fundamento a existência de indícios que permitiriam concluir que os factos que lhe eram, ab initio, imputados integrariam um crime de infidelidade (arts. 319º, nº 1, alíneas c) e d) do CP/82 e art. 224º, alíneas c) e d) do CP/95).
É certo que o processo decorreu no sentido de que os factos imputados aos arguidos integrariam um crime de abuso de confiança e um crime de contrafacção de marca. Relativamente a tais factos, defenderam-se, na instrução, os arguidos da forma que tiveram por mais conveniente para os seus objectivos, não prestando quaisquer declarações. Acresce que, ao contrário do que alegam os reclamantes, os mesmos não invocaram, durante o processo, antes da decisão, a inconstitucio-nalidade da citada norma ou da sua interpretação que, nas suas palavras, fora dada a essa norma, pela decisão. Por outro lado, não vemos que tal norma haja sido utilizada pela decisão recorrida nem, consequentemente, e muito menos, em termos de tal norma ou a interpretação contestada constituir a sua ratio decidendi. Finalmente dir-se-á que, não tendo sido ainda pronunciados os arguidos e constituindo o despacho de pronúncia uma decisão interlocutória o que significa que os mesmos não foram julgados, assistindo-lhes por isso a faculdade de recorrerem para um Tribunal Superior, se condenados, não foram por isso esgotados os recursos que no caso cabem. Acresce que nem sequer foram ainda pronunciados. Neste sentido, não caberá, por ora, recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação que pelos (mesmos) factos descritos no requerimento do assistente de abertura da instrução, determina, em recurso, que o juíz do processo «pronuncie o arguido» ainda que por «crime diverso» do sugerido pelo assistente'.
11 - Notificado o assistente, ao abrigo do art. 688º nº 4 do CPC, para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, veio este ao processo para dizer, em conclusão, que: 'A presente reclamação deve ser indeferida, pois não houve qualquer violação da norma constante do art. 61º do CPC e não há fundamento para o recurso para o Tribunal Constitucional por não estarem reunidos, nos presentes autos, os pressupostos exigidos pelo art. 70º, nº 1, alínea g) (sic), da LTC'.
12 - Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da procedência da presente reclamação, pelas razões que de seguida se transcrevem:
'A questão suscitada na presente reclamação de dimensão estritamente processual e conexionada com a exacta delimitação da regra do contraditório - pode enunciar-se nos seguintes termos: será lícito à Relação, em recurso interposto de despacho de não pronúncia pelos crimes imputados ao arguido, convolar, sem prévia audição deste, para o preenchimento de diferente tipo criminal, cuja vocação para se aplicar à matéria de facto indiciada não havia resultado minimamente ao longo do anterior curso do processo?
a)Em primeiro lugar, é evidente que não era exigível ao arguido que tivesse suscitado previamente tal questão de constitucionalidade, já que naturalmente só após a referida «convolação surpresa» foi confrontado com a situação processual atrás relatada - e tendo, aliás, arguido logo a nulidade do acórdão proferido, por violação do contraditório quanto a esta inovatória qualificação jurídica dos factos considerados suficientemente indiciados.
b) Estão efectivamente esgotados todos recursos ordinários possíveis, já que não cabe qualquer meio de impugnação, no âmbito do tribunais judiciais, relativamente ao acórdão da Relação que dirimiu a questão procedimental objecto de controvérsia.
c) Pode considerar-se efectivamente aplicada, se bem que em termos implícitos, a norma constante do art. 61º, nº 1, alínea b), do CPP, interpretada em termos de não ser pertinente ou necessária a audição prévia do arguido, relativamente a uma «convolação surpresa», a operar no âmbito de um recurso interposto de uma decisão de não pronúncia; na verdade, tal convolação - relativamente aos factos indiciados - para um diverso tipo criminal representa decisão que pessoalmente afecta o arguido, já que implica a sua sujeição a julgamento, com base no cometimento de um crime diverso do que constava da acusação, sem se lhe facultar a eventual dedução das razões de direito que poderiam eventualmente obstar à dita convolação, realizada oficiosamente pelo Tribunal.
d) A decisão proferida não pode considerar-se como uma decisão provisória, já que, por um lado, vincula irremediavelmente o juiz de 1ª instância a proferir despacho de pronúncia, fundando-se no tipo legal de crime que a Relação considerar preenchido; e, por outro lado, a questionada quebra do contraditório, na fase de pronúncia, é definitiva, não sendo precludida pelo facto de, seguindo o processo para julgamento, o arguido gozar aí de oportunidade de defesa, relativamente à qualificação jurídica tida por adequada.
e) Finalmente, o recurso interposto, fundado na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei 28/82, não pode qualificar-se como «manifestamente infundado», já que a questão de constitucionalidade suscitada - ligada à exacta delimitação da regra do contraditório e das garantias de defesa, bem como à proibição de «decisões surpresa» em sede de qualificação ou enquadramento jurídico da matéria de facto provada ou indiciada - não pode ser liminarmente rejeitada por desprovida de qualquer base ou fundamento razoável. Nestes termos, e pelas razões aduzidas, somos de parecer que a presente reclamação deverá ser deferida, já que se verificam, no caso, os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. II - Fundamentação
13 - A presente reclamação coloca-nos três tipos de questões, correspondentes aos três fundamentos de rejeição do recurso invocados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido ao abrigo do disposto no art. 688º, nº 3, do CPC que confirmou o despacho de rejeição do recurso que os recorrentes pretenderam interpor: (a) a irrecorribilidade para o Tribunal Constitucional do acórdão da Relação que ordena a pronúncia, por se tratar de um despacho interlocutório; (b) a não aplicação, pela decisão recorrida, do disposto no art., 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal; (c) a não suscitação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade. Apreciemos cada um destes fundamentos.
14 - Em primeiro lugar refere o Tribunal da Relação de Lisboa que não é admissível recurso para o Tribunal Constitucional da decisão da Relação que ordene a pronúncia do arguido, por se tratar de uma decisão interlocutória. Porém, como vai ver-se, sem razão, como o atesta a já muita jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da recorribilidade do despacho de pronúncia
(cfr., a título de exemplo,e quanto a este preciso ponto, os acórdãos nºs
815/93, ainda inédito, e 265/94, in Colectânea de Acórdãos, 27º vol., pp. 751).
É, desde logo, incontroversa a inadmissibilidade de recurso ordinário da decisão da Relação que ordenou a pronúncia: nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, não é admissível recurso de acórdãos das Relações em recursos interpostos de decisões proferidas em primeira instância. Como sublinha, e bem, o Ministério Público, no caso que é objecto dos autos estamos perante uma decisão definitiva num duplo sentido: 'por um lado, vincula irremediavelmente o juiz de 1ª instância a proferir despacho de pronúncia, fundando-se no tipo legal de crime que a Relação considerar preenchido' e, nessa medida, conforma decisivamente o objecto do processo; por outro lado 'a questionada quebra do contraditório, na fase de pronúncia, é definitiva, não sendo precludida pelo facto de, seguindo o processo para julgamento, o arguido gozar aí de oportunidade de defesa, relativamente à qualificação jurídica tida por adequada'. Nada havendo a acrescentar a esta doutrina, que se tem por inteiramente correcta, apenas há que reiterar a tese da recorribilidade do despacho de pronúncia, por se tratar, para efeitos de verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, de uma decisão definitiva.
15 - Sustenta ainda o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão que confirmou o despacho de não admissão do recurso, que o recurso de constitucionalidade que os recorrentes pretenderam interpor não era de admitir uma vez que estes pretendiam ver apreciada a constitucionalidade do art. 61º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, sendo que esta norma não foi, no entender daquele Tribunal, aplicada pela decisão recorrida. Porém, também neste ponto, como vai ver-se, sem razão. Na verdade, só se compreende que o Tribunal da Relação tenha decidido, como decidiu, sem diligenciar no sentido da prévia audiência dos arguidos, se entender que o art. 61º, nº 1, al. b), do CPP, não reconhece ao arguido, em situações como a dos autos, o direito a ser ouvido num momento prévio à decisão.
Dito de outra forma: a própria existência, naquela sequência processual, da decisão recorrida, só se compreende na base de um entendimento do disposto no artigo 61º, nº 1, alínea b), do CPP - que traz implícito -, no sentido de que essa norma não obriga à audiência do arguido num momento prévio à própria decisão, e, nessa medida, essa dimensão normativa do disposto no art. 61º. nº 1, al. b), constitui também, ainda que implicitamente, uma base normativa da decisão recorrida. Deve, ainda, acentuar-se que a questão da eventual prática de um crime tipificado como «infidelidade», quando, quer o requerimento para abertura de instrução, quer o recurso do despacho de não pronúncia, apenas levantaram a questão da prática de um outro tipo de crime (abuso de confiança), não pode deixar de ser considerada como uma nova questão relativamente à qual o artigo
61º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal é chamado a aplicar-se no sentido aqui relevante. E a novidade do objecto da decisão do juiz em nada depende de esta ter sido desencadeada por uma acusação, ou, como foi, por um requerimento de abertura de instrução (na sequência de um despacho de arquivamento), seguido de um recurso do despacho de não pronúncia, na medida em que todos esses actos tenham um objecto diferente (cfr. artigo 303º do CPP). Acresce que, como tem sido afirmado por diversas vezes por este Tribunal, a aplicação da norma pela decisão recorrida não tem que ser expressa, pode ser, como é no caso dos autos, uma aplicação implícita (veja-se, a título de exemplo, o acórdão nº 167/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 727 e ss, com referência à jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional). Decisivo é que se demonstre - como cremos ter feito - que a decisão recorrida fez efectiva aplicação, como sua ratio decidendi, da norma ou dimensão normativa arguida de inconstitucional.
16 - Refere finalmente o Tribunal da Relação de Lisboa que o recurso não é de admitir na medida em que os recorrentes não suscitaram durante o processo a questão da constitucionalidade do disposto no art. 61º, nº 1, alínea b), do CPP. Também neste ponto, como se demonstrará já de seguida, não assiste razão ao Tribunal recorrido.
É certo - como se refere na decisão recorrida - que o recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pressupõe a suscitação pelo recorrente, durante o processo, da constitucionalidade da norma objecto do recurso.
É igualmente certo que constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita, em regra, durante o processo, quando tal se faz em tempo de o Tribunal recorrido a poder decidir, o que exige normalmente que a questão seja suscitada antes da prolação da decisão recorrida. Incidentes pós-decisórios, como reclamações de nulidade ou o próprio requerimento de interposição do recurso não são, por via de regra, momentos processualmente idóneos para a suscitação da questão de constitucionalidade. Situações há, porém, em que a sequência processual em que a aplicação de determinada norma ocorreu não foi de molde a facultar ao interessado oportunidade processual efectiva de levantar a questão. É o que sucede, nomeadamente, naqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão. Ora, tem este Tribunal entendido - e são já muitas as decisões nesse sentido - que nessas situações é de aceitar que a suscitação da questão da constitucionalidade ocorra depois da prolação da decisão recorrida. Se procurarmos agora aplicar o sentido da jurisprudência supra exposta ao caso que é objecto dos autos verificamos que a que a questão decisiva é a seguinte: era razoavelmente exigível aos arguidos que antecipassem a aplicação pela decisão recorrida do disposto no art. 61º, nº 1, al. b), do CPP, com o sentido de que em recurso do despacho de não pronúncia pode a Relação alterar a qualificação jurídica dos factos e ordenar, em consequência, a pronúncia por um crime diverso - cuja vocação para se aplicar à matéria de facto indiciada não havia resultado minimamente ao longo do anterior curso do processo - sem prévia audição dos arguidos? Colocada a questão nestes termos, como deve sê-lo, a resposta não pode deixar de ser negativa. Só se fosse de prever que o Tribunal adoptasse a tese da desnecessidade de audiência prévia do arguido, na situação presente nos autos, é que seria exigível à ora recorrente a antecipação da questão de constitucionalidade dessa eventual dimensão normativa, de carácter negativo, do artigo 61º, nº 1, alínea b) do CPP. Ora, não há nenhuma corrente, jurisprudencial ou doutrinária (v., por todos, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, 7ª Ed., 1996, pp. 148-153; Costa Pimenta, Código de Processo Penal Anotado, 1987, p. 276-277), nesse sentido. Acresce que, no caso dos autos, a susceptibilidade dos factos imputados aos arguidos integrarem o crime de infidelidade previsto pelo art. 319º, nº 1, do Código Penal de 1982, e pelo artigo 224º do Código Penal de 1995, não havia sido nunca colocada ao longo do anterior curso do processo, em termos de permitir aos arguidos que antecipassem a possibilidade de o Tribunal da Relação vir a decidir como decidiu, e nessa medida suscitassem desde logo a questão de constitucionalidade. Como refere o Ministério Público no seu parecer, '...não era exigível ao arguido que tivesse suscitado previamente tal questão de constitucionalidade, já que naturalmente só após a referida
«convolação-surpresa» foi confrontado com a situação processual atrás relatada ' e tendo, aliás, arguido logo a nulidade do acórdão proferido, por violação do contraditório quanto a esta inovatória qualificação jurídica dos factos considerados suficientemente indiciados'. Assim, da conjugação dos dados expostos, resulta que na hipótese que constitui objecto dos autos ocorreu um inesperado uso de uma interpretação normativa - que não era razoavelmente exigível aos arguidos que antecipassem - que não pode deixar de abrir a via da suscitação, após a decisão recorrida, da questão de constitucionalidade.
III - Decisão Por tudo o exposto, defere-se a presente reclamação e, em consequência, determina-se que o despacho reclamado seja substituído por outro que admita o recurso interposto. Lisboa, 4 de Novembro de 1998 José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
Votei vencido relativamente à decisão tomada no aresto de que a presente declaração faz parte integrante, já que entendo que a vertente reclamação não seria de deferir.
Na verdade, no caso dos autos não houve dedução de acusação por parte do Ministério ou de quem quer que fosse e, bem assim, não houve prolação de despacho de pronúncia após a feitura da instrução.
Daí que conclua que, até à decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nenhum órgão de administração de justiça procedeu a qualquer qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos, sendo, pois, aquele tribunal de 2ª instância o primeiro que procedeu à subsunção à lei dos factos que entendeu por indiciados.
A ter havido uma qualquer operação de qualificação, ela teria, quando muito e unicamente, ocorrido na participação (ou no requerimento para a abertura da instrução), devendo notar-se que - ponderando que, tal como se encontra prescrito no Código de Processo Penal, não é formalidade obrigatória da denúncia facultativa a qualificação jurídica dos factos denunciados, identicamente o não sendo no requerimento para a abertura da instrução (cfr. artigos 246º, números 1 e 2, e 287º, nº 2) – de todo o modo, ainda que essa operação fosse levada a efeito, ela, seguramente, nunca vincularia, quer o Ministério Público, caso este exercesse a acção penal deduzindo acusação, quer o tribunal da pronúncia (cfr. o nº 1 do artº 303º que, no caso dos autos, obviamente não tinha de ter lugar, atento o conteúdo da decisão instrutória, que foi a de não- -pronúncia).
Se assim não fosse, então poder-se-ia chegar a uma conclusão – que entendo absurda – segundo a qual se, numa denúncia, houvesse qualificação jurídica dos factos denunciados e se, após o inquérito, o Ministério Público diferentemente os viesse a subsumir à lei, o mesmo teria, antes de deduzir a acusação, de ouvir o arguido sobre essa diversa subsunção.
Neste contexto, a qualificação jurídica dos factos que a Relação de Lisboa considerou indiciados – justamente porque, até então, não foi uma tal qualificação efectivada por qualquer órgão de administração de justiça – foi a primeira a ter lugar nos autos.
Sendo assim, entendo que se não pode, in casu, falar em qualquer
«convolação», razão pela qual não figuro que tivesse havido aplicação, ainda que implícita, da norma constante da alínea b) do nº 1 do artº 61º do Código de Processo Penal, na interpretação questionada pelos ora reclamantes.
Não existindo uma tal aplicação, falta, na minha óptica, um dos pressupostos do recurso a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, pelo que, por este fundamento (conquanto não sendo idêntico ao utilizado no despacho de não admissão do recurso), não podendo o recurso ser admitido, deveria ter sido indeferida a reclamação.
Bravo Serra