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Processo n.º 163/2012
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Por despacho de fls. 77 e seguintes dos Juízos de Execução de Lisboa, foi recusada a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea p) da Constituição, do Decreto-Lei n.º 113-A/2001, de 29 de novembro, com os fundamentos seguintes:
«(…)
O Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, alterado pela Declaração de Retificação n.º 27/2011, de 19 de agosto, alargou, entretanto, o novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e a da Cova da Beira.
(…)
Ora, tendo a terceira pergunta obtido resposta afirmativa, impõe-se responder à quarta pergunta e o preâmbulo só por si, ainda que desacompanhado de outras informações formalmente transmitidas pela tutela, permite concluir que o Governo abandonou a organização judiciária dada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto e já implementada pelos Decretos-Lei acima referidos, reequacionando “(...) globalmente a malha judiciária (...)“. Ao revogar o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho extingue duas comarcas recém-criadas – Cova da Beira e Lisboa –, num sentido divergente e não convergente à Lei de Base – Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, versando sobre matéria evidentemente de organização e competência dos tribunais.
Aquela que, intimamente, se julga ser a boa tradição legislativa, onde, desde logo, se inscreviam as normas constitucionais ao abrigo das quais os atos normativos eram elaborados, enunciando-se exemplificativamente:
– a Lei n.º 38/87, de 23 de dezembro (lei que aprovou a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), onde se lia “A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 164.º, n.º 1, alínea d), 168º, n.º 1, alínea q), e 169º, n.º 2, da Constituição, o seguinte:”,
- o Decreto-Lei n.º 214/88, de 17 de junho (decreto-lei que regulamento a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), onde se lia, no preâmbulo: ‘Publicada a nova Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Lei n.º 38/87, de 23 de dezembro, incumbe ao Governo a tarefa de a regulamentar.
(…)
Assim,
No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 38/87, de 23 de dezembro [leia-se Lei n.º 38/87], e nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:”
- o já referido Decreto-Lei n.º 186-AI99, de 31 de maio, onde se lia: “No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição, o Governo decreta, para valer como lei geral da República, o seguinte:”,
foi abandonada.
Matéria que todos reconhecem da reserva relativa da Assembleia da República – cfr. artigo 165, n.º 1, alínea p) da Constituição da República Portuguesa – relativamente à qual o Governo apenas tem legitimidade para produzir atos normativos se ao abrigo de lei de autorização ou de lei de bases, é agora objeto de iniciativa legislativa ao abrigo da alínea a) e não da alínea c) do n.º 1 do artigo 198 do Diploma Fundamental.
E, invocando a existência da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, aliás com poderes revogatórios da Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro e do Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de maio – cfr. artigo 186 –, o atual legislador produz um ato normativo, por certo não fundado em lei de autorização (inexistente e não invocada), que também não desenvolve a Lei de Bases. Admitindo que a “(...) especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão apresentam-se como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, o que justifica a sua manutenção e reforço.”, o legislador abandona a organização judiciária assente na matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal III, procurando criar um contexto que propicie uma organização judiciária de base territorial sequer ainda sufragada pela Assembleia da República.
Ou seja, inverte-se a lógica legislativa. Primeiro um Decreto-lei enuncia os novos propósitos de organização judiciária e depois apresentar-se-á uma proposta de Lei que oportunamente será discutida e quiçá aprovada em Assembleia da República. Sem ser conhecido o eventual novo “paradigma” de organização judiciária “descria-se” o que o Decreto-lei n.º 74/2011, de 20 de junho criou – Comarcas previstas no Mapa II, anexo à Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto – à luz da Lei de Bases.
Antes de terminar, sempre resulta por perceber parte da ratio legis expressa pelo legislador no Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, e isto porque, se por um lado, dá por certo que “A especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão apresentam-se como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, o que justifica a sua manutenção e reforço”, por outro, entende que “(...) há elementos que aconselham a que se reequacione globalmente a malha judiciária, no sentido de se criar uma estrutura de tribunais mais simplificada, sem complexidades inúteis e assente em territorialidades sedimentadas pela história e entendíveis pela generalidade da população”, uma vez que a matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal não tem tradição, não foi assimilada e apresenta pouca adesão à realidade.
Se esta ratio legis determinou esta opção normativa, porque razão o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro declara que procede à revogação do Decreto-Lei n.° 74/2011, de 20 de junho, sem cuidar de salvaguardar os seus efeitos em relação à recém-criada Comarca da Lisboa, pois, se a especialização (aliás já existente na Comarca de Lisboa há longos anos) e o novo conceito de gestão se apresentam como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008 e não é conhecida estrutura mais simplificada assente numa territorialidade historicamente sedimentadas há séculos, que faz corresponder a Comarca de Lisboa ao respetivo concelho, sobejamente entendimento pela população e com plena adesão à realidade?
Salvo melhor opinião, poderá concluir-se que inexistem razões coincidentes com a dita ratio legis que conduzissem à sustação da instalação da nova Comarca de Lisboa.
Parece ainda importante salientar que o legislador, em momento algum, fundamenta a alteração legislativa preconizada pelo Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro em razões de emergência de ordem conjuntural ou estrutural, aliás razões estas que foram antes consideradas no Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, na sequência do Memorando de Entendimento, assinado em 17 de maio de 2011 entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Do mesmo modo, tais razões, ainda que existissem, não justificam a violação de regras de competência legislativa.
Para concluir.
Situemo-nos no disposto nos artigos 171, n.º 2, 184, n.º 1 e 4 e 187, n.º 4, todos da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto. Todos eles se reportam a Decretos-Leis de desenvolvimento, um referente à instalação, funcionamento e ao mapa que contém a identificação das sedes do tribunal de comarca respetivo das comarcas piloto (concretizado no Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de janeiro), outro de regulamentação (digamos – geral) da própria Lei, um outro de aprovação do mapa de divisão territorial que contenha a composição por juízos dos tribunais de comarca de todo o território nacional, como mapa III anexo à Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, da qual fará parte integrante, e, por fim, tantos decretos-leis quantos aqueles que, em função da aplicação faseada do processo a todo o território nacional, definirem as comarcas a instalar em cada fase.
Ora, salvo melhor opinião, se não restam dúvidas que o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho respeita, observa e corresponde ao enunciado no n.º 4 do artigo 187 da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, já o mesmo não se poderá dizer do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro que não respeita, não observa e não corresponde as decretos-leis enunciados nos artigos 171, n.º 2, 184, n.º 1 e 4 e 187, n.º 4, todos da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto.
Assim sendo, como parece evidente, o mesmo não desenvolve a Lei de Bases, não tem contemplação legal que observe os poderes constitucionalmente conferidos ao Governo sobre a matéria, quando desacompanhado de lei de autorização ou lei de bases.
Dito de outra forma: a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, porque versa sobre matéria da reserva relativa da Assembleia da República, apenas conferiu ao Governo poderes legislativos de desenvolvimento naqueles quatro domínios que careciam de desenvolvimento, por conseguinte, tudo quanto se encontre à sua margem, não se encontra a coberto do seu manto, como parece não estar o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, apesar de invocá-la para nela acolher proteção.
O vício resultante da desconformidade dos decretos-leis de desenvolvimento com os parâmetros legais superiores (leis de bases) poderá originar uma violação direta da Constituição (inconstitucionalidade orgânica), quando versar sobre matéria da competência relativa da Assembleia da República, ou uma violação direta da lei de valor superior, que nos reconduzirá ao vício da ilegalidade acima referido.
Pelo exposto, pugnando pela inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 do artigo 165 da Constituição da República Portuguesa, recuso a sua aplicação nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280 da Constituição da República Portuguesa.
Julgo vigente o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, porquanto por aquele não poder ter sido revogado.
Consequentemente, determino que, após trânsito, se dê baixa ao processo e se proceda à respetiva distribuição por um dos 12 (doze) juízes do Juízo de Execução da Comarca de Lisboa – cfr. artigos 209, 210, 220, alínea a), todos do Código de Processo Civil, anexo 1 e artigos 13, 15, 17, 19 e 37 do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho.»
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, para si obrigatório, nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC). Notificado para produzir alegações, concluiu que:
«(…)
61º
Entende, pois, este Ministério Público, que os critérios interpretativos utilizados, pelo digno magistrado judicial, no despacho recorrido, de 19 de dezembro de 2011, acabaram por conduzir a um resultado que não reflete, adequadamente, o sentido da evolução legislativa verificada.
62º
A idêntica conclusão chegou também, como se viu, este Tribunal Constitucional, no âmbito dos Acórdãos 174/12 e 175/12, a que atrás se fez referência, em que, designadamente se concluiu (cfr. Acórdão 174/12):
“Esta atividade legislativa do Governo não é conformadora do regime da organização e funcionamento dos tribunais judiciais, situando-se claramente num domínio de mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, pelo que se encontra fora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia República estabelecida na alínea p), do artigo 165.º, da Constituição, sendo, por isso, legítima a remissão para o exercício das funções legislativas do Governo.
E o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o Decreto-Lei n.º74/2011, de 20 de junho, impedindo que se efetivasse o alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, o qual havia sido determinado por este último diploma, mantém-se no referido domínio da mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, não invadindo a competência legislativa reservada ao legislador parlamentar nesta matéria.
Na verdade, o diploma sob fiscalização em nada altera a estrutura judiciária construída pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, tendo apenas recuado na sua aplicação a novas comarcas, a qual havia sido determinada por um anterior decreto-lei, emitido em cumprimento de acordo de apoio financeiro a Portugal que incluía uma cláusula nesse sentido, após o Estado Português se ter libertado desse específico compromisso e o Governo ter entendido que existiam elementos fornecidos durante a fase experimental que aconselhavam uma reponderação da malha judiciária.
Note-se que, apesar de estar subjacente ao Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, a necessidade de uma redefinição da estrutura judiciária criada pela Lei n.º52/2008, de 28 de agosto, ele não procede a qualquer alteração dessa estrutura, limitando-se a suster a sua aplicação às comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária. E tendo intervindo apenas no campo executivo da aplicação no tempo e no espaço daquela lei, manteve-se fora da área reservada à intervenção legislativa da Assembleia da República, não sofrendo, por isso, do vício da inconstitucionalidade orgânica.”
63º
Conclui-se, por isso, pelo deferimento do interposto recurso de constitucionalidade, com a consequente revogação do despacho recorrido, por se não verificar, nos presentes autos, nenhuma inconstitucionalidade orgânica que obste à aplicação, pelo tribunal a quo, do Decreto-Lei 113-A/2011, de 29 de novembro.»
II. Fundamentos
Delimitação do objeto do recurso
3. O juízo decisório constante do despacho a quo declara recusar a aplicação do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição, julgando, consequentemente, vigente o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho. Este diploma foi revogado pelo artigo 1.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 113-A/2011, que integra o objeto do presente recurso.
Não obstante ter sido recusada aplicação ao diploma na sua totalidade, a leitura atenta do despacho evidencia que, na realidade, o objeto do juízo de inconstitucionalidade se restringe ao preceito contido no artigo 1.º, n.º 1, na medida da referida revogação do diploma anteriormente vigente. Este é, também, por conseguinte, o objeto dos presentes autos.
Mérito do recurso
4. A questão a decidir prende-se com a análise do disposto no artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que procedeu à revogação do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho. Este segundo diploma veio alargar o novo mapa judiciário, criado pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, às comarcas da Cova da Beira e de Lisboa. Não obstante ter entrado em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, a extinção de círculos, comarcas, varas e juízos nele prevista apenas se operaria a partir do dia 1 de dezembro de 2011 (cfr. artigos 41.º e 36.º, n.º 1). Posteriormente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, cujo artigo 1.º, n.º 1 revogou o Decreto-Lei n.º 74/2011.
A questão de constitucionalidade que neste processo se debate foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, através dos acórdãos n.ºs 174/2012, 175/2012 e 214/2012 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). A fundamentação de todos eles é idêntica e assenta na seguinte ordem de argumentos:
“2.1. Enquadramento legislativo
Para melhor percebermos e nos pronunciarmos sobre o mérito deste recurso convém proceder ao enquadramento legislativo deste diploma, aproveitando a descrição pormenorizada constante das alegações apresentadas pelo Recorrente.
A Assembleia da República, invocando a alínea c), do artigo 161.º, da Constituição, aprovou a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, uma nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) que veio revogar a anterior Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro (artigo 186.º, alínea d)).
O novo mapa judiciário, criado por esta lei, procedeu a uma reorganização profunda da estrutura dos tribunais que visou, nas palavras dos seus preponentes, aumentar a eficiência da organização judiciária com a implementação de um novo modelo de gestão do sistema, e adequar as respostas dos tribunais à nova realidade da procura judicial, com base numa matriz territorial que assegurasse os princípios da proximidade e da eficácia e celeridade da resposta aos cidadãos e às empresas (preâmbulo da Proposta de Lei n.º 187/X)
Relativamente à data da entrada em vigor deste diploma, o seu artigo 187º, dispôs que “a presente lei entra em vigor no 1º dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, sendo apenas aplicável às comarcas piloto referidas no nº 1 do artigo 171.º”.
Na verdade, o novo regime foi pensado para ser aplicado a título experimental, até 31 de agosto de 2010, às comarcas do Alentejo Litoral, Baixo-Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, que funcionariam como comarcas-piloto (cfr. artigo 171º, nº 1, da Lei 52/2008, de 28 de agosto, artigo esse integrado no Capítulo XI desta lei, sob a epígrafe de “Disposições transitórias e finais”).
Nos termos do n.º 2, do referido artigo 171.º, a instalação e o funcionamento das comarcas piloto ficaram de ser “definidos por Decreto-Lei a publicar no prazo de 60 dias após a publicação da presente lei”.
O n.º 3 do mesmo artigo veio ainda referir que “em anexo ao Decreto-Lei referido no número anterior é publicado um mapa que contém a identificação das sedes do tribunal de comarca respetivo das comarcas piloto, bem como a definição dos juízos que destas constem”.
Assim, muito embora a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, devesse entrar, teoricamente, em vigor no 1ª dia útil do ano judicial seguinte ao da sua publicação, para as comarcas piloto, tal entrada em vigor ficou condicionada à publicação de decreto-lei de regulamentação, o que veio a concretizar-se com o Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de janeiro, que procedeu “à reorganização judiciária das comarcas piloto do Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa-Noroeste, dando concretização ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 171.º da Lei nº 52/2008, de 28 de agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ)”.
Por outro lado, conforme consta do n.º 3, do referido artigo 187.º, a nova lei de organização judiciária, a partir de 1 de setembro de 2010, aplicar-se-ia a todo o território nacional, tendo em conta a avaliação que o Ministério da Justiça fizesse do impacto da sua vigência nas comarcas piloto, nos termos definidos pelo artigo 172.º.
Mas também o início desta fase estaria dependente da aprovação de um decreto-lei que regulamentasse a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, nos termos definidos pelo artigo 184.º.
Posteriormente, a Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei de Orçamento de Estado para 2010 (cfr. artigo 162º desta lei) -, publicada quando ainda se encontrava em funções o XVIII Governo Constitucional, no seu artigo 162.º, veio alterar os números 3, 4 e 5, do artigo 187.º, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, determinando o seguinte:
- a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, continua a aplicar-se às comarcas piloto, a partir de 1 de setembro de 2010, uma vez que, inicialmente, o período experimental apenas estava previsto para vigorar até 31 de agosto de 2010;
- a reorganização judiciária do país prosseguirá, mas de forma faseada, ao abrigo da mesma Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto;
- o processo de reorganização judiciária deverá estar concluído a 1 de setembro de 2014;
- para o efeito, no seguimento da avaliação referida no artigo 172.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, a aplicação faseada da reforma, pelo Governo, será executada através de decreto-lei, que definirá as comarcas a instalar em cada fase;
- consequentemente, os mapas anexos à Lei n.º 52/2008 de 28 de agosto apenas entrarão em vigor a partir de 1 de setembro de 2014, com exceção do mapa II, que entrará em vigor de forma faseada, à medida que a respetiva comarca seja instalada.
Em suma, alterou-se o programa de entrada em vigor da nova lei de organização judiciária, prolongando-se a fase experimental nas comarcas-piloto por mais quatro anos e optando-se por uma sua aplicação faseada ao resto do território.
Integrado nesta nova programação, o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, igualmente elaborado pelo XVIII Governo Constitucional, veio, entretanto, alargar o novo mapa judiciário, criado pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, às comarcas da Cova da Beira e de Lisboa.
Foram apontadas como razões determinantes para o alargamento do mapa judiciário a estas duas novas comarcas:
- os compromissos assumidos pelo Estado Português, no quadro do programa de apoio financeiro a Portugal;
- a necessidade de acelerar, em consequência, a implementação do novo modelo organizativo;
- a preocupação de combater a morosidade processual e assegurar a liquidação de processos pendentes;
- o peso específico da comarca de Lisboa, em termos de pendências processuais, pelo que a sua reorganização se revelava prioritária;
- a preocupação de dar seguimento às conclusões dos estudos efetuados, conclusões essas corroboradas pelo debate público subsequente;
- pelo que, em 2011, com o alargamento do novo mapa judiciário às duas novas comarcas – Lisboa e Cova da Beira -, ficariam abrangidos mais de 37% dos processos tramitados no território nacional.
O Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, entrou em vigor no dia 21 de junho de 2011 (cfr. artigo 41º do referido diploma), mas a extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, nele prevista, apenas teria, no entanto, efeito a partir de 1 de dezembro de 2011 (cfr. artigo 36.º, n.º 1 do mesmo diploma). Até à instalação das novas comarcas e juízos, a competência conferida pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro, às comarcas e tribunais objeto do Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, mantinha-se (cfr. artigo 36.º, n.º 2 do mesmo diploma), apenas se considerando instalados e convertidos as comarcas e juízos previstos no Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, a partir de 1 de dezembro de 2011.
Posteriormente, um novo Governo – ou seja, o atual, o XIX Governo Constitucional – veio elaborar e publicar o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que expressamente revogou o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho (cfr. artigo 1º, nº 1 do primeiro diploma).
Como o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, muito embora tivesse entrado em vigor em 21 de junho de 2011, tinha os seus efeitos práticos, quanto à extinção de círculos, comarcas, varas e juízos, bem como à instalação de novas comarcas e juízos, diferidos para o dia 1 de dezembro de 2011, não chegou a produzir efeitos, em matéria de alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, uma vez que foi revogado em 29 de novembro de 2011, pelo Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, que entrou em vigor logo no dia seguinte, ou seja, a 30 de novembro (cfr. artigo 13.º deste último diploma).
Do preâmbulo deste último diploma resulta que se o alargamento do novo modelo judiciário a mais duas comarcas tinha resultado duma imposição do Memorando de Entendimento, assinado em 17 de maio de 2011 entre o Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional, uma posterior revisão desse Memorando, que eliminou essa medida, permitiu a reponderação da sua aplicação, tendo o Governo optado por revogá-la.
Esta opção foi justificada pelo Governo com a necessidade de reequacionar globalmente a malha judiciária, no sentido de criar uma estrutura de tribunais mais simplificada, sem complexidades inúteis e assente em territorialidades sedimentadas pela história e entendíveis pela generalidade da população. Isto, apesar de considerar que a especialização da oferta judiciária e o novo conceito de gestão se apresentavam como elementos positivos do modelo de organização judiciária de 2008, justificando a sua manutenção e reforço.
No entanto, da avaliação efetuada, o Governo concluiu que a circunstância da matriz territorial Unidades Territoriais Estatísticas de Portugal (NUT) ser muito recente, sem tradições e ausente da vida corrente dos cidadãos em geral, não permitia, em muitos casos, a assimilação de centralidades «naturais», obrigando a uma seleção de sedes das NUT com pouca adesão à realidade, nomeadamente nos circuitos de mobilidade interna em cada região, o que, aliado à vantagem de se avaliar o mapa judiciário de forma articulada com as linhas mestras da revisão do processo civil, em curso, garantindo que as duas reformas constituam um todo harmonioso, justificava que se adotassem medidas no sentido de suster a instalação das comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontrasse definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária.
2.2. Da inconstitucionalidade orgânica
A decisão recorrida, considerando a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, uma lei de bases que consagrava os princípios vetores do regime jurídico da organização e do funcionamento dos Tribunais Judiciais, entendeu que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o disposto no anterior Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, em vez de desenvolver aqueles vetores, como era sua obrigação constitucional, contrariou-os, pelo que sofre de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que legislou inovatoriamente em matéria que competia à Assembleia da República.
É certo que, nos termos do artigo 112.º, n.º 2, da Constituição, um decreto-lei que tenha como parâmetro normativo de referência uma lei de bases, em matéria reservada à Assembleia da República, deve subordinar-se aos seus princípios e directrizes. Contudo, não há qualquer razão para qualificar a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como uma lei de bases. Nem esta se intitula como tal, nem as características do seu complexo normativo permitem tal qualificação.
Na verdade, apenas deve ser considerada uma lei de bases aquela que se resuma à enunciação das opções político-legislativas fundamentais na matéria em causa, através da formulação de princípios normativos, diretrizes ou critérios gerais, contidos em disposições de reduzida densidade, dotados de um grau de indeterminação tal que exija necessariamente o seu desenvolvimento e concretização através de uma atividade legislativa subsequente.
Ora, conforme resulta da leitura da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, esta não se limitou a enunciar os grandes princípios da política legislativa em matéria de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, tendo ela própria definido com o pormenor necessário a estrutura dessa organização e o modo de funcionamento dos tribunais judiciais. Aliás não existindo na redação da alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição, qualquer referência a bases, nunca poderia o legislador parlamentar optar por apenas restringir a sua intervenção a uma lei de simples enunciação de princípios normativos, uma vez que estamos num domínio em que existe uma reserva de densificação total (vide, neste sentido, Jorge Miranda, em “Manual de direito constitucional”, tomo V, pág. 377-378, da 3.ª ed., da Coimbra Editora, e Blanco de Morais, em “Curso de direito constitucional”, tomo I, pág. 326, da ed. de 2008, da Coimbra Editora)
Contudo, o facto de não se ter aderido à qualificação da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, como lei de bases, não invalida que o decreto-lei aqui sob fiscalização não deva respeitar a reserva da competência legislativa da Assembleia da República estabelecida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição.
Conforme resulta da descrição que acima se fez das normas específicas da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, sobre a sua aplicação no tempo, o regime por ela consagrado, relativo à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, foi instituído numa primeira fase, a título experimental, em determinadas comarcas piloto, visando-se testar ou ensaiar a aplicação das suas normas, limitando tal aplicação no tempo e no espaço, de modo a permitir uma avaliação dos efeitos e resultados dela decorrentes.
Este «método» de legislação tem na sua base uma indecisão do legislador, que adota uma atitude de prudência.
Como se disse no Acórdão n.º 69/2008 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) relativamente a uma lei que adotou igual metodologia, “a «normação experimental» pressupõe antes do mais um legislador indeciso, ou ao qual faltam certezas quanto à regulação definitiva a adotar para o cumprimento de certas políticas públicas ou para a disciplina de certos domínios da vida coletiva. Ao invés, por isso, de esperar que a adequação do Direito às realidades se faça, na continuidade, pela jurisprudência, ou na descontinuidade, por reformas legislativas sucessivas – como sucede com o método, chamemos-lhe assim, ‘clássico’ de normação –, o «legislador experimental» testa ou ensaia primeiro, num espaço e num tempo limitados, a aplicação e os efeitos da aplicação das suas normas, a fim de evitar os riscos que, em situações de elevado grau de incerteza quanto aos efeitos de certa regulação, geraria porventura a adoção de sistemas normativos ‘definitivos’. (Pierre-Henri Bolle, «Lois Expérimentales et Droit Pénal», em Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 321-335). Assim, o legislador que «experimenta» – tal como o legislador que toma ‘medidas’ para situações que não são nem gerais nem abstratas – parece ser movido por uma racionalidade técnico-económica que será diversa daquela que orienta os métodos ‘comuns’ de legiferação.”
Daí que o artigo 187.º, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, na redação que lhe foi conferida pelo artigo 162.º, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, tenha determinado que a entrada em vigor da nova organização judiciária, ao restante território nacional, para além das comarcas piloto, se faria de forma faseada, durante um período de 4 anos, a partir de 1 de setembro de 2010, tendo incumbido o Governo de executar essa aplicação faseada, através de decretos-lei que definissem as comarcas a instalar em cada fase, tendo em atenção a avaliação do impacto da sua vigência nas comarcas piloto, a efetuar nos termos do artigo 172.º, do mesmo diploma.
O legislador parlamentar remeteu, pois, para o Governo, a tarefa de avaliar os resultados da aplicação da lei nas comarcas piloto e, de acordo com a avaliação efectuada, faseadamente, durante um período de quatro anos, determinar a sua aplicação a outras comarcas do país.
Esta atividade legislativa do Governo não é conformadora do regime da organização e funcionamento dos tribunais judiciais, situando-se claramente num domínio de mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, pelo que se encontra fora da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia República estabelecida na alínea p), do artigo 165.º, da Constituição, sendo, por isso, legítima a remissão para o exercício das funções legislativas do Governo.
E o Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, ao revogar o Decreto-Lei n.º 74/2011, de 20 de junho, impedindo que se efetivasse o alargamento do novo mapa judiciário às comarcas de Lisboa e Cova da Beira, o qual havia sido determinado por este último diploma, mantém-se no referido domínio da mera execução e aplicação do regime consagrado na Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, não invadindo a competência legislativa reservada ao legislador parlamentar nesta matéria.
Na verdade, o diploma sob fiscalização em nada altera a estrutura judiciária construída pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, tendo apenas recuado na sua aplicação a novas comarcas, a qual havia sido determinada por um anterior decreto-lei, emitido em cumprimento de acordo de apoio financeiro a Portugal que incluía uma cláusula nesse sentido, após o Estado Português se ter libertado desse específico compromisso e o Governo ter entendido que existiam elementos fornecidos durante a fase experimental que aconselhavam uma reponderação da malha judiciária.
Note-se que, apesar de estar subjacente ao Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro, a necessidade de uma redefinição da estrutura judiciária criada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, ele não procede a qualquer alteração dessa estrutura, limitando-se a suster a sua aplicação às comarcas de Lisboa e da Cova da Beira, até que se encontre definido e consensualizado o novo paradigma de organização judiciária. E tendo intervindo apenas no campo executivo da aplicação no tempo e no espaço daquela lei, manteve-se fora da área reservada à intervenção legislativa da Assembleia da República, não sofrendo, por isso, do vício da inconstitucionalidade orgânica.»
É este o entendimento que se reitera.
III. Decisão
5. Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 113-A/2011, de 29 de novembro de 2011;
b) e consequentemente, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente julgamento de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 23 de maio de 2012. – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Gil Galvão.