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Processo nº. 396/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J... interpôs recurso da decisão do CENTRO REGIONAL DE SEGURANÇA SOCIAL DE LISBOA E VALE DO TEJO, que o condenou na coima de 500.000$00, em virtude de, em 15 de Junho de 1995, sem possuir alvará ou autorização para funcionamento provisório, ter a funcionar um lar para idosos, denominado CASA DE REPOUSO X..., sito em Lisboa.
O Juiz do Tribunal do Trabalho de Lisboa (5º Juízo), por sentença de
7 de Março de 1996, considerando que inexiste, por efeito da inaplicabilidade da norma (in)constitucional, norma punitiva da factualidade em causa, por respeito ao princípio da tipicidade consignado na lei, julgou inconstitucional a norma constante do artigo 27º. do Decreto-Lei 30/89, de 24.1, por violação, no que respeita às pessoas
singulares, da alínea d) do nº.1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa e revogou a decisão administrativa recorrida.
2. É desta sentença (de 7 de Março de 1996) que vem o presente recurso, interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº.1 do artigo 70º.da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, tendo concluído as suas alegações como segue:
1º. É organicamente inconstitucional a norma editada pelo Governo, no exercício da sua competência legislativa própria, que estabeleça como sanção para determinada contraordenação, tipificada no mesmo diploma, coima cujo limite máximo exceda o constante do diploma que estabelece o regime geral de punição do ilícito de mera ordenação social, na redacção vigente à data em que foi publicada a norma em questão.
2ª. A alteração daquele limite máximo, em consequência da revisão do regime geral do ilícito de mera ordenação social, não implica a constitucionalização parcial superveniente da inconstitucionalidade orgânica originariamente cometida.
3ª. Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, que deverá graduar a responsabilidade do arguido dentro dos limites abstractos da coima, decorrentes da aplicação da versão originária do Decreto-Lei nº.433/82, de 27 de Outubro.
De sua parte, o recorrido formulou as seguintes conclusões:
1. As disposições do artigo 27º. do Decreto-Lei 30/89, de 24 de Janeiro, encontram-se feridas de inconstitucionalidade orgânica.
2. Os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, eram de 200$00 a 200.000$00, sendo inconstitucionais, neste âmbito, os valores de coimas superiores fixados em diplomas específicos, quer se trate de pessoa singular quer colectiva.
3. Não existe no direito português e na jurisprudência do Tribunal Constitucional a figura da constitucionalidade superveniente.
4. Não são directamente aplicáveis a qualquer contraordenação em concreto as disposições do Decreto-Lei nº.433/82, de 27 de Outubro, que apenas fixa o quadro legal por que os diplomas específicos se hão-de reger e com que se hão-de conformar, independentemente de se tratar de pessoa singular ou colectiva. Termos em que (...) deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida (...).
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma do artigo 27º. do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, enquanto aplicável às pessoas singulares, é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. Uma advertência prévia:
Há que advertir que, se o Tribunal vier a conceder provimento ao recurso, nem por isso determinará que, ao ser reformada, a decisão recorrida deverá graduar a responsabilidade
do arguido dentro dos limites abstractos da coima, decorrentes da aplicação da versão originária do Decreto-Lei nº.433/82, de 27 de Outubro, como parece sugerir o Ministério Público.
Como o presente recurso é restrito à questão da constitucionalidade do artigo 27º. do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, se o Tribunal vier a revogar o julgamento que dessa questão fez o juiz recorrido, só nessa parte mandará reformar a sentença impugnada.
As consequências, que, ao nível do direito ordinário, decorrerem para o julgamento do caso do juízo que este Tribunal vier a fazer da questão de constitucionalidade, há-de ser o tribunal recorrido a extraí-las com inteira independência, embora, claro é, com absoluto respeito pelo julgamento que este Tribunal vier a proferir.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. O artigo 27º. do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, reza assim: Artigo 27º. Constitui contraordenação punível com coima de 500.000$00 a
1.500.000$00 a abertura ou o funcionamento do estabelecimento que não se encontre
licenciado nem disponha de autorização de funcionamento provisório, nos termos do artigo 16º.
O artigo 27º., acabado de transcrever, tipifica uma contraordenção, que consiste em abrir ou manter em funcionamento um estabelecimento sem licença ou autorização de funcionamento provisório, e prevê a respectiva coima.
Tal norma, enquanto aplicável a pessoas singulares, foi, como se viu, totalmente desaplicada pela sentença recorrida: tanto na parte em prevê o ilícito, como naquela em que para ele comina uma coima, a sentença julgou inconstitucional a norma constante do artigo 27º do DL 30/89, de 24.1, por violação, no que respeita às pessoas singulares, da alínea d) do nº.1 do artigo
168º da Constituição da República Portuguesa, por isso que tenha considerado que inexiste, por efeito da inaplicabilidade da norma (in)constitucional, norma punitiva da factualidade em causa e que, sequentemente, tenha revogado, sem mais, a decisão recorrida.
Será, então, este preceito inconstitucional, em toda a sua extensão
?
5. 2. Este Tribunal tem afirmado repetidamente que, do regime geral de punição (...) dos actos ilícitos de mera ordenação social, sobre que o Governo só pode legislar munido de autorização legislativa (cf. artigo 168º., nº.1, alínea d), da Constituição), faz parte a definição do quadro das sanções aplicáveis a este tipo de ilícito e, bem assim, a fixação dos limites mínimo e máximo das coimas.
Por isso, o Governo - que, dentro dos limites do regime geral definido pela lei-quadro do ilícito de mera ordenação social, pode definir contraordenações, criá-las ou eliminá-las e modificar a sua punição -, quando estabelecer as sanções desses ilícitos (designadamente, quando fixar as coimas que lhes correspondem), tem que mover-se dentro da moldura constante da respectiva lei-quadro. E, assim, não pode fixar às coimas limite mínimo inferior, nem limite máximo superior aos estabelecidos nessa lei-quadro, que é o Decreto-Lei nº.433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado pelo Decreto-Lei nº.356/89, de 17 de Outubro, e pelo Decreto-Lei nº.244/95, de 14 de Setembro.
O Tribunal também já decidiu que, para ajuizar se determinada norma legal é inconstitucional por violação da
mencionada alínea d) do nº.1 do artigo 168º da Constituição, o parâmetro de referência tem que ser a lei-quadro do ilícito de mera ordenação social na versão em vigor à data da sua edição (cf. acórdão nº.837/93, da 1ª Secção, por publicar, que incidiu sobre o artigo 27º., aqui sub iudicio).
Já, porém, no acórdão nº. 157/96 da 2ª Secção (também por publicar e tendo por objecto igualmente o mencionado artigo 27º.), o Tribunal ponderou que quem se ativer, para o valorizar, ao facto de a lei-quadro ser simples parâmetro mediato ou interposto de validade - e não lei a que cumpra definir o órgão competente para a fixação do montante das coimas - propenderá a atribuir pouco relevo ao princípio tempus regit actus e a considerar relevante, para o efeito de saber quais os montantes que devem servir de parâmetros de referência, o momento da prática da respectiva infracção.
5. 3. É o entendimento por último enunciado que aqui se adopta.
Pois bem: o artigo 27º do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, na parte em que comina a coima aplicável à
contraordenação que ele próprio prevê, cometida por pessoas singulares, viola a alínea d) do nº.1 do artigo 168º da Constituição: não decerto, enquanto lhe fixa o montante mínimo (500.000$00), que é - e pode sê-lo - superior ao estabelecido pela lei-quadro na versão do artigo 17º introduzida pelo Decreto-Lei nº.356/89
(500$00). Já, porém, viola aquele preceito constitucional ao fixar-lhe o valor máximo (1.500.000$00), pois que, sem que tal pudesse acontecer, esse valor excede o limite máximo fixado à coima em 1989 (500.000$00).
O julgamento de inconstitucionalidade do artigo 27º do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, feito pela sentença recorrida, não merece, pois, censura, no ponto em que atinge a parte da norma que fixa o limite máximo da coima aplicável a pessoas singulares pela prática da contraordenação aí prevista.
Tal julgamento, no ponto em que se dirige à parte da norma que tipifica a contraordenação, já não pode, porém, ser confirmado, pois que o Governo não carecia de autorização legislativa para criar o ilícito que aí definiu.
6. Conclusão:
O recurso merece, pois, ser parcialmente provido, devendo revogar-se a sentença recorrida, no ponto em que ela julgou inconstitucional o mencionado artigo 27º. na parte em que este normativo define a contraordenação.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). julgar inconstitucional - por violação da alínea d) do nº.1 do artigo 168º. da Constituição - a norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº.30/89, de 24 de Janeiro, enquanto aplicável a pessoas singulares, mas tão-só na parte em que ela, ao cominar a coima da contraordenação que define, fixa o respectivo limite máximo em montante superior ao limite máximo estabelecido na respectiva lei-quadro, na versão de 1989;
(b). conceder provimento parcial ao recurso e, em consequência, determinar que a sentença recorrida seja reformada em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade aqui feito. Lisboa, 21 de Janeiro de 1997 Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Luis Nunes de Almeida