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Proc. nº 302/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A. e outros intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, nos termos do artigo 40º da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de
7 de Abril), acção com a forma ordinária contra o Município de Palmela. Os autores pediram que fosse ordenada ao réu a cessação das causas de violação dos seus direitos a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, a uma habitação em condições de higiene e conforto, de bem estar físico e mental e de propriedade, e ainda que o Município fosse condenado a indemnizá-los.
No despacho saneador, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal considerou-se incompetente, em razão da matéria, para tomar conhecimento do objecto da acção, por se estar no domínio de actos de gestão pública.
2. Desta decisão recorreram os ora reclamantes para o Tribunal da Relação de Lisboa, que revogou a decisão recorrida. Tal decisão revogatória teve por fundamento a intenção inequívoca do legislador de contemplar expressamente os tribunais comuns com a competência para tomar conhecimento do objecto da acção em causa (artigo 45º, nºs 1 e 2, da Lei nº
11/87).
O réu interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando, para além do mais, a inconstitucionalidade da interpretação das normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 45º da Lei nº 11/87 acolhida pela decisão recorrida.
Por acórdão de 7 de Dezembro de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida. Entendeu-se, para tanto, que o artigo 45º da Lei nº 11/87, tal como foi interpretado no acórdão recorrido, afronta a Constituição. E concluiu-se que seria competente para conhecer o objecto da acção interposta pelos reclamantes o Tribunal Administrativo de Círculo [artigo 51º, nº 1, alínea h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].
3. Os reclamantes interpuseram recurso deste acórdão (de 7 de Dezembro de 1995) para o Tribunal Constitucional.
Porém, o respectivo requerimento foi indeferido, por despacho de 15 de Janeiro de 1996, tendo-se então entendido que o acórdão recorrido não havia recusado a aplicação das normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 45º da Lei nº 11/87, mas sim limitado a considerar uma interpretação conforme à Constituição de tal norma. Pode ler-se, nesse despacho, que 'a norma não foi desaplicada, foi sim aplicada de acordo com a interpretação que se teve por correcta'.
4. É deste despacho que vem a presente reclamação, interposta nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei do Tribunal Constitucional.
O Ministério Público em funções junto deste Tribunal, pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento à presente reclamação por considerar que houve efectiva desaplicação de uma interpretação normativa do preceito em causa, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. Entendeu-se no despacho reclamado que as normas que os ora reclamantes pretendiam que o Tribunal Constitucional apreciasse não foram desaplicadas no acórdão recorrido. Considerou-se, antes, que tais normas foram interpretadas no sentido correcto e conforme à Constituição, sem que isso implicasse qualquer desaplicação.
Porém, como se afirmou no Acórdão nº 315/92 do Tribunal Constitucional (D.R., II Série, de 18 de Fevereiro de 1993), não basta 'que o tribunal recorrido proclame a aplicação ou a recusa de aplicação de uma norma para que ela se tenha por aplicada ou desaplicada. É indispensável que a decisão recorrida documente a aplicação ou a recusa de aplicação em causa' (neste sentido, cf. também Acórdão do Tribunal Constitucional nº 584/96 - inédito).
Importa, pois, verificar, em face do pedido do reclamante, se a interpretação jurídica do acórdão do Supremo Tribunal permite, efectivamente, essa conclusão.
7. É a seguinte a redacção dos nºs 1 e 2 do artigo 45º da Lei nº 11/87:
'1. O conhecimento das acções a que se referem os artigos 66º, nº 3, da Constituição e 41º e 42º da presente lei é da competência dos tribunais comuns.
2. Nos termos dos artigos 66º, nº 3, da Constituição e 40º da presente lei, os lesados têm legitimidade para demandar os infractores nos tribunais comuns para obtenção das correspondentes indemnizações (...).'
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de
1995, entendeu-se como duvidoso que o artigo 45º da Lei nº 11/87, tal como foi interpretado no acórdão recorrido - no sentido de serem competentes os tribunais judiciais para apreciar as acções a que se refere o preceito transcrito -, respeitasse a Constituição, na redacção dada pela Lei Constitucional nº 1/82, de
30 de Setembro.
Num passo, porém, chegou a afirmar-se o seguinte:
'não duvidamos porém que esse preceito - artigo 45º, nºs 1 e 2 da Lei nº 11/87
-, com a referida interpretação - de acordo com a qual são competentes os tribunais judiciais para julgar as acções a que a disposição legal se refere -, afronta a Constituição revista em 1989.'
E foi, nitidamente, em consequência de tal entendimento que se decidiu conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, pois se veio sustentar uma outra interpretação do preceito, pela qual o 'sentido corrente' de tribunais comuns é afastado, concluindo-se que o artigo 45º, nº 1, da Lei nº 11/87, apenas se refere às 'acções jure civile'.
8. Assim, o Acórdão de que se pretende recorrer afastou explicitamente uma determinada interpretação das normas em causa, com fundamento da sua incompatibilidade com a Constituição. Na verdade, afastou-se a interpretação segundo a qual seria atribuída competência aos tribunais comuns para o conhecimento do objecto de determinadas acções situadas, como a dos autos, em sede de direito do ambiente, com fundamento na incompatibilidade de um tal regime com o disposto nos artigos 211º e 214º, nº 3, da Constituição, na versão da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho.
A questão não foi colocada, diferentemente do que se afirma no despacho reclamado, apenas no plano da melhor interpretação da norma, mas antes no plano da sua necessária interpretação, para evitar um sentido inconstitucional - o sentido que foi acolhido pela decisão da segunda instância e que, por ser tido como inconstitucional, foi desaplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Se não se tomasse conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, transitaria em julgado o acórdão que revogou a decisão da segunda instância com fundamento num juízo de inconstitucionalidade sobre uma interpretação das normas perfeitamente plausível em face da letra do preceito, já que possui o 'mínimo de correspondência verbal' exigido pelo nº 2 do artigo
9º do Código Civil. O que se disse permite concluir que uma certa interpretação plausível das normas contidas no artigo 45º, nºs 1 e 2, da Lei nº 11/87 foi desaplicada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade [cf., neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/96 (inédito), que versou sobre uma questão idêntica à dos presentes autos].
9. As considerações precedentes impõem que se considere que cabe ao Tribunal Constitucional confirmar ou revogar o acto de desaplicação normativa levado a cabo pelo tribunal a quo, abrindo-se assim a via do recurso previsto nos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
III Decisão
10. Ante o exposto, decide-se conceder provimento à reclamação, admitindo-se, em consequência, o presente recurso e revogando-se, nessa medida, o despacho reclamado.
Lisboa, 9 de Outubro de 1996 Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa