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Processo nº 440/94
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. E... requereu no Tribunal Judicial de Penafiel
providência de injunção relativamente a J... e Mulher, visando conferir natureza
executiva a uma obrigação pecuniária no valor de 28 501$00, decorrente do
fornecimento de mercadorias por aquela a estes.
Tendo-se frustrado a notificação postal da injunção (que
com o despacho 'Notifique', o Secretário Judicial determinou) foram os autos,
após distribuição, conclusos ao Juiz da Comarca que, por entender ferido de
inconstitucionalidade orgânica e material o Decreto-Lei nº 404/93, de 10 de
Dezembro, recusou 'designar dia para julgamento'.
2. Do despacho contendo esta posição, interpôs o
Ministério Público recurso, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei
28/82, de 15 de Novembro, formulando o Procurador-Geral Adjunto em exercício
neste Tribunal - fundando o entendimento de que o recurso deve proceder - as
seguintes conclusões:
'1º - A possibilidade, conferida ao secretário judicial pelo artigo 7º do
Decreto-Lei nº 404/ /93, de 10 de Dezembro, de recusar o pedido de injunção
quando este se não adeque às finalidades tipificadas no artigo 1º constitui
simples decorrência de existir um evidente e ostensivo erro na forma de processo
escolhida pelo requerente, e não prolação de qualquer decisão de mérito, ainda
que liminar, sobre a pretensão formulada.
2º - A aposição da fórmula executória, nos casos em que se consumou a
notificação por via postal do requerido e em que este não deduziu oposição, nos
termos do artigo 5º, em conjugação com os artigos 4º e 6º, nº 2, do mesmo
diploma legal, não representa a prolação de qualquer decisão de natureza
jurisdicional que traduza composição do eventual litígio que oponha o credor ao
devedor, mas tão somente a certificação por aquele funcionário judicial de que,
tendo-se consumado a notificação do pedido de injunção ao requerido e não tendo
sido deduzida por este oposição, se mostra constituído, nos termos da lei,
título executivo extrajudicial.
3º - Não traduzindo a referida aposição da fórmula executória a
prática de qualquer acto jurisdicional de composição do litígio, não envolve
qualquer preclusão relativamente aos meios de defesa que, em processo executivo,
ao executado é lícito opor ao exequente o qual seguirá necessariamente a forma
sumária (artigo 465º, nº 2, do Código de Processo Civil), iniciando-se com a
citação do executado e comportando a eventual dedução de embargos nos amplos
termos consentidos pelo artigo 815º do Código de Processo Civil.
4º - O regime constante do Decreto-Lei nº 404/93 não implica,
deste modo, violação do preceituado nos artigos 205º e 206º da Constituição da
República Portuguesa, já que não resulta conferida ao secretário judicial
qualquer competência para proceder, à revelia do juiz, a uma composição do
conflito de interesses privados entre requerente e requerido no procedimento de
injunção, esgotando-se a actividade que lhe é consentida na mera certificação de
que se mostra criado, nos termos de lei, título executivo extra-judicial.
5º - O mesmo regime em nada ofende o princípio do contraditório,
ínsito nos artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, já que não preclude ao requerido
qualquer direito de defesa: na verdade, se este não foi notificado, ou deduziu
oposição, seguem-se os termos do processo declarativo sumaríssimo, que
naturalmente são idóneos para assegurar tal direito; no caso contrário, a
aposição da fórmula executória em nada preclude a dedução de embargos de
executado, nos amplos termos permitidos pelo artigo 815º do Código de Processo
Civil, já que obviamente a execução a instaurar se não baseia em sentença.'
Corridos os pertinentes vistos, cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
3. Contém a decisão recorrida uma recusa global, não
reportada a normas concretas, de aplicação do Decreto-Lei nº 404/93. Importa,
porém, - porque um recurso de fiscalização concreta só se compreende
relativamente a disposições individualizadas, aplicáveis à situação - isolar as
normas que o processamento referido tornou operantes.
Em causa, no Decreto-Lei nº 404/93, só podem estar,
assim, o artigo 4º (que o Secretário cumpriu notificando o pedido de injunção
aos requeridos) e o artigo 6º, nº 2, no segmento que dispõe para a hipótese de
frustração da notificação postal (que foi cumprido com a remessa à distribuição
e a conclusão ao Juiz).
Fora do objecto do presente recurso ficam, assim,
quaisquer outras disposições do Decreto-Lei 404/93, designadamente as constantes
dos artigos 5º e 7º, isto não obstante o despacho de recusa parecer feito a
pensar nelas ('...com o diploma em análise um pedido ilegal pode, facilmente,
obter a fórmula executiva do Sr. Secretário Judicial' - fls. 19). Com efeito,
sendo certo não ter ocorrido a aposição de qualquer fórmula executória no
requerimento, nem sido exercida a faculdade estabelecida no artigo 7º, estas
normas (e todas as outras, com excepção dos artigos 4º e 6º, nº 2) nenhuma
relevância apresentaram no processamento desde concreto pedido de injunção.
Assim delimitado o objecto do recurso e tendo presente
que a decisão de recusa global do diploma implicou também a recusa dos citados
artigos 4º e 6º, nº 2, importa apreciar o problema de inconstitucionalidade que
o despacho impugnado afirma existir.
4. Vê a decisão de recusa, na direcção do processamento
da injunção pelo secretário judicial, neste caso até à conclusão ao juiz,
constatada a frustração da notificação postal, uma 'mexida' não autorizada pelo
Parlamento na 'organização e competência dos Tribunais' (inconstitucionalidade
orgânica) e uma atribuição de 'funções jurisdicionais' àquele funcionário
judicial (inconstitucionalidade material).
A resposta às interrogações de constitucionalidade assim
suscitadas pressupõe a caracterização da figura da injunção, nos termos em que a
instituiu o Decreto-Lei 404/93.
4.1. Visa a injunção facultar, ao credor de uma
obrigação pecuniária decorrente de contrato cujo valor não exceda metade do da
alçada do tribunal da 1ª instância, um título executivo (v. preâmbulo e artigo
1º, do Decreto-Lei 404/93), ou seja, a condição de acesso ao processo de
execução que este representa. Não se trata, portanto, e importa reter este
aspecto, da criação de qualquer forma processual diversa das já existentes na
nossa lei adjectiva, tanto mais que, se ao requerimento for aposta a 'fórmula
executória' o que se segue é uma execução sob a forma de processo sumário
baseada num título diverso da sentença judicial (cfr. artigo 465º, nº 2, do
Código de Processo Civil); e, se for deduzida oposição à pretensão ou, como aqui
sucede, frustrada a notificação do requerimento (hipóteses previstas no artigo
6º do Decreto-Lei nº 404/93), o que se segue é uma acção declarativa com
processo sumaríssimo [note-se que a referência do artigo 6º, nº 2 à marcação de
julgamento - 'se o estado do processo o permitir' - aplica-se apenas às
hipóteses em que foi deduzida oposição; nos casos em que a notificação postal
não ocorre (se frustrou como diz a lei), tem lugar, como não podia deixar de
ser, a citação nos termos do artigo 794º, do Código de Processo Civil].
Trata-se, assim, como refere o preâmbulo do diploma, do
estabelecimento de uma 'fase desjurisdicionalizada' visando facultar
relativamente a dívidas de montante reduzido a possibilidade - mediante a
formação de um título executivo decorrente do reconhecimento implícito do
devedor - de acesso à acção executiva sem passagem pelo processo declarativo,
garantida que se mostra, conforme o legislador expressamente fez questão de
indicar, a defesa do devedor através dos mecanismos normais de oposição à
execução, decorrentes do artigo 815º do Código de Processo Civil.
Cabe aqui notar constituirem precisamente este tipo de
dívidas (inferiores a 250 000$00) a fatia esmagadora das acções declarativas
propostas na justiça cível portuguesa, no que um estudo recente qualifica
sugestivamente de 'colonização do sistema judiciário pelas pequenas dívidas'
(referimo-nos ao trabalho coordenado por Boaventura Sousa Santos, Os tribunais
na Sociedade Portuguesa', v. 'A Justiça em Tribunal', Expresso//Revista de
4.3.95, pág. 32/43, cfr. quanto ao peso das acções declarativas de dívida até
250 000$00, os quadros constantes de págs. 40/41).
Assumindo o processo de formação deste tipo específico
de título executivo índole essencialmente tabeliónica (trata-se de verificar a
regularidade formal de papéis e levá-los, por via postal, ao conhecimento de
alguém), é natural que o legislador, em homenagem aos objectivos de
simplificação da actividade jurisdicional que motivaram a injunção, não tenha
sobrecarregado a actividade do juiz com mais esse encargo. Daí, a sua entrega ao
secretário judicial que, exercendo poderes não substancialmente diversos dos já
resultantes do artigo 213º, do Código de Processo Civil, constata a não oposição
à pretensão (o elemento que leva à formação do título executivo), certificando
em conformidade o requerimento de injunção. De forma mais simples ainda, nas
hipóteses, como a dos autos, em que o título se não forma, a intervenção do
funcionário reduz-se, na prática, à distribuição de uma acção sumaríssima e à
conclusão desta ao juiz.
4.1.1. Convém a este respeito esclarecer, na sequência
da observação constante das alegações do Ministério Público (2.5 a fls. 37), que
a injunção instituída pelo Decreto-Lei nº 404/93 apresenta diferenças radicais
relativamente aos institutos que no direito francês e italiano recebem o mesmo
nome (a 'injonction de payer', regulada nos artigos 1405º e 1425º, do Code de
Procédure Civil, e o 'Procedimento d'Ingiunzione' referido nos artigos 633º a
656º, do Codice di Procedura Civile). Com efeito, assumem estes, por comparação
ao direito adjectivo português, natureza de verdadeiras acções declarativas
sumaríssimas, culminando com a prolação de uma decisão judicial (artigos 1419º a
1422º do CPC francês e 640º e 641º, do CPC italiano) à qual se pode conferir,
posteriormente, carácter executivo (artigos 1422º do CPC francês e 647º, do CPC
italiano).
A lei portuguesa, para além da coincidência no nome e em
alguns aspectos de pormenor da tramitação, afastou-se decididamente destes
modelos. Não se tratou entre nós de estabelecer um processo especial contendo
uma tramitação mais simplificada e célere para acções declarativas; tratou-se
antes de eliminar em determinadas situações a própria acção declarativa,
conferindo um acesso directo à acção executiva.
O regime instituído pelo Decreto-Lei 404/93 tem, assim,
mais pontos de contacto com figuras, de introdução mais ou menos recente em
diversos direitos adjectivos civis, em que os poderes de intervenção dos
secretários judiciais em determinados procedimentos relativos a causas mais
simples, são substancialmente ampliados em aspectos que não traduzam o exercício
de competências jurisdicionais. Disto constitui exemplo a chamada 'déclaration
au greffe', introduzido em 1989 no processo civil francês (artigos 847-1 e 2, do
CPC francês; v. Armindo Ribeiro Mendes, Novo Processo Executivo, Sub Judice, nº
5 Jan/Abr de 1993, pág. 29).
Assim caracterizada em traços gerais a figura da
injunção, tal qual o Decreto-Lei nº 404/93 a desenhou, importa, pressupondo os
elementos recolhidos nessa caracterização, encarar as questões de
inconstitucionalidade invocadas no despacho recorrido.
4.2. Haveria, na óptica da decisão de recusa, desde
logo, a edição pelo Governo de um diploma regulando matéria reservada ao
Parlamento, porque relativa à organização e competência dos tribunais (artº
168º, nº 1, alínea q) da Constituição), consubstanciando, portanto, uma situação
de inconstitucionalidade orgânica.
A expressão 'organização dos tribunais' tem que ver
genericamente com aquilo que a Constituição trata sob a designação de
'categorias de tribunais' (artigo 211º; v. também, Secção I do Capítulo II,
artigos 11º e 12º, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - Lei nº 38/87 de 23
de Dezembro, redacção da Lei nº 24/92, de 20 de Agosto), matéria em nada tocada
por qualquer das disposições do Decreto-Lei nº 404/93.
Por sua vez, ao falar em 'competência', na alínea q), do
artigo 168º, nº 1, tem o texto constitucional em vista o sentido que a expressão
tem na doutrina processualista: a '... medida de jurisdição atribuída a cada
tribunal' (Castro Mendes, Direito Processual Civil, I vol, Lisboa 1979, pág.
405), '... as normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do
poder de julgar entre os diferentes tribunais' (Antunes Varela/Miguel
Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra 1985, pág.
195), ideia esta que sai confirmada da leitura das referências à 'competência'
de tribunais, contidas em diversas disposições constitucionais [v. artigos 213º
(quanto aos tribunais judiciais), 214º, nº 3 (quanto aos tribunais
administrativos e fiscais), 215º (quanto aos tribunais militares), 216º, nº 1,
(quanto ao Tribunal de Contas) e 225º (quanto ao Tribunal Constitucional)].
Ora, o Decreto-Lei nº 404/93, designadamente nos artigos
4º e 6º, nº 2, não contém disposição alguma que mexa com os critérios de
distribuição do poder de julgar entre os diversos tribunais, e que como tal,
toque aquilo que este Tribunal vem definindo como 'nível nuclear da matéria
constante da competência dos tribunais referida na alínea q), do nº 1, do artigo
168º, da Constituição' (Acórdão nº 246/92, - Diário da República, II série, de
22 de Outubro de 1992; v. também Acórdãos nºs 241 e 242/92, Diário da República,
II série, de 18 de Novembro de 1992).
A actividade do secretário visa, como já se frisou, a
formação de um título executivo e as consequências dela, forme-se ou não esse
título, sempre obtêm concretização processual através das espécies processuais
normais (execuções sumárias ou acções declarativas sumaríssimas) que, aliás, a
não existir o mecanismo da injunção, sempre corresponderiam como acções
declarativas ao Tribunal que tramita a injunção.
A tudo isto sempre haverá que juntar ser entendimento
deste Tribunal que, 'qualquer que seja o nível ou o grau da competência dos
tribunais reservada à Assembleia da República, seguramente que nele não entram
as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples
carácter processual', pois, 'a regulamentação do «processo» a observar perante
os tribunais - salvo no tocante ao processo criminal e (....) ao processo
perante o Tribunal Constitucional - já não é matéria da reserva legislativa
parlamentar' (Acórdão nº 407/87, Diário da República, II série, de 21 de
Dezembro de 1987; v. também Acórdão nº 85/88, Diário da República, II série, de
22 de Agosto de 1988).
Não se verifica, assim, a apontada inconstitucionalidade
orgânica.
4.3. Resta averiguar se as faculdades conferidas pelo
Decreto-Lei nº 404/93 aos secretários judiciais, traduzem a atribuição aos
mesmos de poderes jurisdicionais, conforme refere o despacho recorrido.
O exercício da função jurisdicional reserva-o a
Constituição, no artigo 205º, aos tribunais e, dentro destes, como referem Gomes
Canotilho e Vital Moreira, aos juízes (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, pág. 792). Isto, porém, não significa que todo o
tipo de actividade desenvolvida por um tribunal, designadamente com incidência
processual, assuma carácter jurisdicional e tenha, em última análise, de
competir a um juiz. A especificidade do exercício da função jurisdicional,
encontra-a este Tribunal na presença do elemento 'composição de conflitos de
interesses (...) de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo
como fim específico a realização do direito e da justiça' (Acórdão nº 182/90,
Diário da República, II série, de 11 de Setembro de 1990).
Tendo presente a caracterização que atrás se fez da
finalidade do processamento da injunção, ressalta que a actividade do secretário
judicial, concretamente nos aspectos aqui em causa (os decorrentes dos artigos
4º e 6º, nº 2, no trecho aplicável), não implica resolução, com recurso a
critérios jurídicos, de quaisquer conflitos de interesses, não divergindo
substancialmente daquela que às secretarias judiciais é atribuída por diversas
disposições do processo.
Como a este propósito refere Armindo Ribeiro Mendes,
existe no processo executivo português um espaço de viabilidade constitucional
de uma mais intensa intervenção material dos funcionários do tribunal (O
Processo Executivo e a Economia, Sub Judice, nº 2, Jan/Abril, 1992, pág. 55) e
foi isso, feito um balanço global do Decreto-Lei nº 404/93, o que o legislador
pretendeu, embora reportando essa intervenção à criação de um pressuposto da
acção executiva.
Improcede, pois, também nesta parte, a argumentação
constante do despacho recorrido.
III
DECISÃO
5. Assim, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se
a decisão recorrida, que deve ser reformulada em consonância com o decidido
sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Junho de 1995
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida