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Processo n.º 338/94 Plenário Relator: Conselheiro Alves Correia
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 - Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 281.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea f), da Constituição e 51.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto (diploma que define o regime jurídico da extradição).
O pedido alicerça-se nos seguintes fundamentos:
«a) Com o Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, Portugal passou a dispor de um diploma regularador de todo o tipo de situações de extradição para e de qualquer país, tendo a aplicação de tal diploma sido tornada extensiva ao território de Macau. O diploma em causa admitia a extradição passiva de criminosos, mesmo quando a lei do Estado requisitante previa a pena de morte ou de prisão perpétua, desde que esse Estado oferecesse a garantia de que essas penas não eram efectivamente aplicadas;
b) Com a entrada em vigor, em 1976, da nova Constituição da República foi elevado à dignidade constitucional um novo conjunto de direitos fundamentais. Era esse o corolário lógico do Estado de direito democrático tornado possível pela Revolução de 25 de Abril de 1974. O instituto da extradição não podia, por isso, estar ausente do novo normativo constitucional, que ficou consagrado no artigo 23.º
Esta matéria recebeu então amplo consenso, por configurar a materialização de um pensamento penalista de profundas tradições na sociedade e no direito portugueses que recusa a aplicação da pena capital. As sucessivas revisões da Constituição de 1976 mantiveram inalterado, como era previsível, o total consenso em torno desta matéria. O actual artigo 33.º, n.º 3, estabelece taxativamente que 'não há extradição por crimes a que corresponda a pena de morte segundo o direito do Estado requisitante'.
A partir de então é clara a impossibilidade de extradição quando pelo direito do Estado requisitante seja aplicável a pena de morte. Este tem sido, aliás, o entendimento de todos os autores que se têm pronunciado sobre esta matéria;
c) Posteriormente à Constituição de 1976, Portugal ratificou a Convenção Europeia sobre Extradição, datada de 13 de Dezembro de 1957. Essa Convenção reconhecia apenas como casos de recusa obrigatória de extradição os crimes de natureza política, religiosa ou rácica, figurando, assim, entre os casos de recusa facultativa aqueles em que o crime possa ser punido com a pena capital. Perante a situação em que a ratificação vinculava a um articulado que colidia com o texto constitucional, que define uma recusa obrigatória de extradição para os crimes puníveis com a pena de morte, Portugal usou, à semelhança de outros países, a faculdade concedida pelo artigo 26.º da Convenção, formulando uma ressalva ao seu artigo 11.º, invocando para tal o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição Portuguesa.
Na sequência dessa ratificação, foi publicado em Portugal o Decreto-Lei n.º
43/91, de 22 de Janeiro, sobre a cooperação judiciária internacional em matéria penal. No preâmbulo desse diploma o legislador afirma claramente que 'a lei vigente sobre extradição foi entretanto inconstitucionalizada em certos pontos essenciais pela Constituição da República, entrada em vigor posteriormente à sua introdução na ordem jurídica interna';
d) Assim, o procedimento imediato deveria ter sido a extensão a Macau da nova legislação da República, removendo a aplicabilidade nesse território sob administração portuguesa do Decreto-Lei n.º 437/75, inconstitucionalizado desde a aprovação do texto constitucional. Tal não foi feito, sendo necessário corrigir essa lacuna em sede própria. Entretanto, porém, e porque o referido diploma legal de 1975 tem vindo recentemente a ser aplicado em Macau, torna-se necessário requerer a fiscalização sucessiva da constitucionalidade do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º
437/75, que continua a regular, naquele território, o instituto da extradição.»
2 - Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos dos artigos
54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, não foi apresentada qualquer resposta dentro do prazo legal.
3 - Posteriormente, veio o Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional requerer a este Tribunal, com base no disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição.
Como fundamento do seu pedido invoca o Procurador-Geral Adjunto a circunstância de aquela norma ter sido julgada inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição, através dos Acórdãos n.ºs 417/95 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 266, de 17 de Novembro de 1995), 430/95 e
449/95 (ambos inéditos). No requerimento dirigido a este Tribunal - que vem instruído com cópia dos três arestos citados - sublinha aquele representante do Ministério Público que há interesse relevante de ordem prática no conhecimento do pedido, já que tal norma permanece em vigor, circunscrita embora ao território de Macau.
4 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar sobre o pedido do Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional, respondeu ele, requerendo, nos termos do disposto no artigo 64.º da Lei do Tribunal Constitucional, a incorporação do pedido no processo n.º 338/94, pendente neste Tribunal.
5 - O requerimento do Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional, com o objecto e os fundamentos acima assinalados, bem como a resposta que sobre ele recaiu do Primeiro-Ministro, passaram a integrar os autos do processo de fiscalização abstracta n.º 719/95 do Tribunal Constitucional.
Neste processo n.º 719/95, lavrou o Presidente do Tribunal Constitucional o seguinte despacho:
«Na precedente resposta, adverte o Sr. Primeiro-Ministro para o facto de se achar pendente neste Tribunal o processo n.º 338/94, versando sobre a mesma norma a que respeitam os presentes autos, requerendo, em consequência, a incorporação deles nesse outro processo.
É de facto assim, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 64.º da Lei do Tribunal Constitucional, determino tal incorporação. E isto, porque também não vejo obstáculo a tanto na circunstância de ora se estar perante um pedido de declaração de inconstitucionalidade, formulado ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º daquela lei: se, a tal respeito, algo pode extrair-se desta última disposição, será, se bem julgo, antes o contrário.»
6 - Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir a questão de constitucionalidade colocada a este Tribunal nos requerimentos do grupo de deputados à Assembleia da República e do Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional.
II – Fundamentos
7 - O actual ordenamento jurídico do território de Macau é constituído por normas com origem e âmbito de aplicação diversos.
Quanto à sua origem, podemos distinguir entre normas que provêm dos órgãos de governo próprio do território de Macau, nos termos dos artigos 5.º e 16.º, n.º
1, alínea c), do Estatuto Orgânico de Macau (aprovado pela Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.ºs
53/79, de 14 de Setembro, 13/90, de 10 de Maio, e 23-A/96, de 29 de Julho), normas que dimanam dos órgãos de soberania da República Portuguesa e normas que têm a sua origem na comunidade internacional («rectius», nas relações entre os seus sujeitos) - cf. o artigo 3.º, n.ºs 2 e 3, do Estatuto Orgânico de Macau.
No que toca ao seu âmbito de aplicação, é possível distinguir entre normas vigentes apenas no território de Macau - as que têm origem neste, as que, emanando dos órgãos de soberania da República Portuguesa, se destinavam a vigorar só no território de Macau (ou só no território de Macau e noutros territórios do antigo ultramar português) e aquelas que, tendo sido elaboradas para produzir efeitos no território português e no território de Macau, deixaram de vigorar naquele, mas não neste - e normas simultaneamente vigentes em Portugal e em Macau.
A norma questionada no caso sub judicio - a norma constante do artigo 4.º, n.º
1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição [de facto, apesar de o pedido de declaração de inconstitucionalidade subscrito pelo grupo de deputados à Assembleia da República não distinguir entre os vários números e alíneas do artigo 4.º daquele diploma legal e parecer, por isso, ser dirigido a todas as normas constantes deste preceito, depreende-se da sua fundamentação que está apenas em causa a norma da alínea a) do seu n.º 1 e tão-só na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição] - tem a sua fonte num acto legislativo de um órgão de soberania da República Portuguesa, mas tem o seu
âmbito de aplicação circunscrito ao território de Macau. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto - que foi tornado extensivo ao ordenamento jurídico do território de Macau pelo Despacho Normativo n.º 218/77, da Presidência do Conselho de Ministros, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 201, de 11 de Novembro de 1977, e, em consequência, publicado no Boletim Oficial de Macau, n.º 47, de 19 de Novembro de 1977 -, foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 43/91, de 22 de Janeiro (cf. o artigo 155.º), mas este diploma condensador do regime da cooperação judiciária internacional em matéria penal não foi mandado aplicar ao território de Macau, nem foi publicado no seu Boletim Oficial (cf. os artigos 72.º e 73.º do Estatuto Orgânico de Macau).
Os pedidos de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, que este Tribunal tem agora entre mãos têm, assim, como objecto - objecto que, como se viu, é comum aos dois pedidos - uma norma que, embora não editada pelos
órgãos legislativos do território de Macau, é exclusiva do ordenamento jurídico de Macau. Não pode, por isso, o Tribunal Constitucional deixar de abordar, preliminarmente, a questão de saber se os requerentes têm legitimidade para apresentar os mencionados pedidos de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, o que passa por esclarecer se as faculdades de desencadear perante este Tribunal um controlo normativo abstracto sucessivo da constitucionalidade, previstas no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição e, bem assim, nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, abrangem as normas do ordenamento jurídico de Macau produzidas por um órgão de soberania da República Portuguesa, mas vigentes exclusivamente naquele território «sob administração portuguesa». Vejamos, então, analisando a referida questão, primeiro no que respeita ao grupo de deputados requerente e, seguidamente, no tocante ao autor do segundo pedido.
8 - No seu Acórdão n.º 292/91 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º
250, de 30 de Outubro de 1991), o Tribunal Constitucional decidiu, embora com alguns votos de vencido, que no controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade das normas editadas pelos órgãos legislativos do território de Macau não vigora o disposto no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (posição concordante com a solução adoptada pelo Tribunal Constitucional pode ver-se em J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, «A fiscalização da constitucionalidade das normas de Macau», in Revista do Ministério Público, ano 12.º, n.º 48, pp.
9-40).
A solução adoptada no Acórdão n.º 292/91 escora-se em dois argumentos: o do
«dualismo constitucional» (na expressão de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 14) dos ordenamentos jurídicos de Portugal e do território de Macau e o da existência, no Estatuto Orgânico de Macau, de normas específicas sobre o controlo abstracto da constitucionalidade dos diplomas emanados dos
órgãos legislativos do território de Macau.
No que concerne ao primeiro argumento, realça-se naquele aresto que, «de acordo com a Constituição vigente (artigos 5.º, a silentio, e 292.º, n.º 1) - e de acordo agora, também, com a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 38-A/87, de 14 de Dezembro (n.º 1) -, Macau não é território português: é unicamente território
«sob administração portuguesa», regendo-se por «estatuto adequado à sua situação especial» (artigo 292.º, n.º 1, cit.).
Significa isto - como o Tribunal já teve ocasião de dizer, segundo a lição da doutrina -, que, salvo quando ela própria o diga, «a Constituição não rege directa e automaticamente para o território de Macau e que este tem a sua
'Constituição', verdadeiramente no respectivo Estatuto»: só, pois, onde o Estatuto «devolva», explícita ou implicitamente, para a Constituição da República a mesma se aplicará a Macau (v., por último, o Acórdão n.º 245/90, no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Janeiro de 1991, e, antes, o Acórdão n.º 284/89, no Diário da República, 2.ª série, 12 de Junho de 1989, e, na doutrina, Afonso R. Queiró, Lições de Direito Administrativo, 1976, pp. 382 e segs.).
Há-de ser, pois, no Estatuto Orgânico de Macau que, em primeira linha, terá de procurar-se o regime não apenas de produção de normas jurídicas no próprio território mas igualmente do seu controlo: só, subsidiariamente, e por devolução
(explícita ou implícita) do Estatuto, a Constituição da República intervirá na regulamentação de tal matéria.
No que tange ao segundo argumento, salienta-se no acórdão que vem sendo referido que o Estatuto Orgânico de Macau configura um sistema «cruzado» de fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas emanadas dos órgãos legislativos do território de Macau, nele se prevendo a competência do Governador e da Assembleia Legislativa para promover a apreciação pelo Tribunal Constitucional da inconstitucionalidade e da ilegalidade de quaisquer normas dimanadas, respectivamente, da segunda e do primeiro [cf. os artigos 11.º, n.º 1, alínea e), e 30.º, n.º 1, alínea a), daquele Estatuto] e, bem assim, a submissão ao Tribunal Constitucional seja dos decretos-leis do Governador a que a Assembleia Legislativa recusar a ratificação, seja das leis reaprovadas por esta última após o Governador haver recusado a sua promulgação, nos casos em que tais recusas se fundem, inter alia, em «ofensa de regra constitucional» (cf. os artigos 15.º, n.º 2, e 40.º, n.º 3, do referido Estatuto).
«Tudo isto leva a concluir», lê-se no referido aresto, que o legislador do Estatuto de Macau não só encarou ex professo a questão do controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade das normas editadas pelos órgãos legislativas desse território mas estabeleceu para esse controlo um regime e um esquema específicos. De tal modo que, atento o que começou por pôr-se em relevo [...], não tem cabimento fazer apelo, nessa matéria, ao disposto no n.º 2 do artigo
281.º da Constituição da República. Por outras palavras: o alcance das citadas normas do Estatuto de Macau não é o de fazer acrescer à lista das entidades enumeradas nesse preceito constitucional duas outras - o Governador e a Assembleia Legislativa de Macau - com legitimidade para requererem a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade (e legalidade) de normas emitidas no respectivo território; é antes, como se acabou de dizer o de estabelecer a possibilidade de tal fiscalização e definir quem está legitimado para promovê-la.»
Exposta a doutrina que emana do Acórdão deste Tribunal n.º 292/91, cabe perguntar se a mesma solução deve ser aplicada, ou não, em relação a normas que, embora não editadas pelos órgãos legislativos de Macau, são exclusivas do ordenamento jurídico deste território, seja porque foram criadas só para ele, seja porque foram criadas só para o (todo ou parte do) antigo ultramar, seja porque, como no caso sub judicio, deixaram de vigorar em Portugal, mas não em Macau.
Ora, em resposta a este quesito, entende o Tribunal que, no domínio da fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de normas do ordemamento jurídico de Macau, quando se trate de normas provindas de órgãos legislativos da República Portuguesa, mas vigentes exclusivamente no território de Macau, não deve ser aplicada a doutrina que emana do Acórdão n.º 292/91, pelo que as entidades referidas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição têm legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a declaração, com força obrigatória geral, da sua inconstitucionalidade. Vejamos sucintamente porquê.
8.1 - Poderá afirmar-se, prima facie, que a «estraneidade do território de Macau em relação ao Estado Português» (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 13), bem como a circunstância de a Constituição da República Portuguesa só ser aplicável em Macau naquilo em que o Estatuto reenvie para ela, conduzirão
à solução oposta à que vem de ser referida, isto é, à da negação da legitimidade do grupo de deputados à Assembleia da República para requerer a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade da norma acima identificada. Na verdade, não se encontra no Estatuto Orgânico de Macau qualquer norma que confira a órgão do Estado Português a faculdade de desencadear junto do Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de normas jurídicas vigentes exclusivamente em Macau.
A este poderá ainda acrescentar-se um argumento de identidade de razão: as mesmas razões que justificam que as entidades da ordem jurídica portuguesa não devam ter a iniciativa de sindicar, sob o ponto de vista constitucional, a vigência de normas aprovadas pelos órgãos próprios de Macau justificam que não a tenham, também, em relação a normas não aprovadas pelos órgãos próprios daquele território, mas só aí vigentes.
8.2 - Crê-se, no entanto, que a linha argumentativa acabada de indicar não tem um valor decisivo. Deve, ao invés, entender-se que a inexistência no Estatuto Orgânico de Macau de normas específicas sobre o controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade de normas editadas pelos órgãos de soberania da República Portuguesa, mas vigentes exclusivamente em Macau - de facto, o sistema específico de controlo abstracto da constitucionalidade previsto naquele Estatuto vale exclusivamente para as normas emitidas no território de Macau -, não permite afastar a legitimidade das entidades indicadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição para requererem o controlo abstracto da constitucionalidade de normas originárias da ordem jurídica portuguesa, mas (já) só vigentes em Macau - entidades a quem a lei fundamental atribuiu, pela via da faculdade prevista no n.º 2 do seu artigo 281.º, um poder de vigilância sobre o cumprimento por parte dos órgãos da República Portuguesa, no exercício da sua competência normativa, das regras e princípios constitucionais. A esta razão acresce uma outra: não seria lógico que as normas do ordenamento jurídico de Macau produzidas pelos órgãos próprios deste território estivessem sujeitas a controlo abstracto da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, ainda que a requerimento apenas do Governador e da Assembleia Legislativa, nos termos acima assinalados, e não estivessem abrangidas pelo mesmo tipo de controlo as normas oriundas dos órgãos de soberania da República Portuguesa, mas vigentes exclusivamente em Macau. Dado que os órgãos de governo próprio de Macau não têm poder para requerer a apreciação pelo Tribunal Constitucional da constitucionalidade de normas da República Portuguesa vigentes exclusivamente naquele território, a negação de legitimidade às entidades referenciadas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição para solicitar a fiscalização abstracta sucessiva daquelas normas teria como consequência a subtracção destas àquele tipo de controlo da constitucionalidade. Não faria, de facto, sentido que, por exemplo, uma lei aprovada pela Assembleia da República, tendo em conta os condicionalismos e os interesses específicos de Macau e para vigorar exclusivamente neste território, ficasse imune ao controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional.
A logicidade do sistema apenas é garantida se se entender que as normas emanadas dos órgãos de soberania da República Portuguesa vigentes em Portugal e em Macau ou apenas neste território «sob administração portuguesa» estão sujeitas a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, a requerimento das entidades enumeradas nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
A «harmonia» e o «equilíbrio interno» do sistema de controlo abstracto da constitucionalidade das normas do ordenamento jurídico de Macau impõem, assim, a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, no caso de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de normas vigentes unicamente em Macau, mas aprovadas pelos órgãos de soberania da República Portuguesa [neste mesmo sentido, veja-se a opinião de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. ob. cit., p. 31), os quais afirmam que «a fiscalização das normas da República respeitantes a Macau não tem qualquer particularidade prevista no Estatuto, seguindo portanto o regime comum estabelecido na Constituição»].
Eis, pois, as razões que levam a concluir pela legitimidade do grupo de deputados à Assembleia da República para apresentar o pedido acima referido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
9 - As razões em que se funda a conclusão a que se chegou no número anterior, caracterizada pela sujeição das normas emanadas dos órgãos de soberania da República Portuguesa vigentes apenas no território de Macau à fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade prevista no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, são igualmente válidas para fundamentar o entendimento de que as mesmas normas são susceptíveis também de controlo abstracto sucessivo da constitucionalidade, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito da lei fundamental, desde que, como é óbvio, se verifique o pressuposto aí previsto.
Mas, ao invés do que sucede com o n.º 2 do artigo 281.º, o artigo 281.º, n.º 3, da lei fundamental não elenca as entidades que desfrutam da legitimidade para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de qualquer norma, quando tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Significa isto que aquele preceito constitucional remeteu para o legislador a faculdade de definir as entidades com legitimidade para solicitar ao Tribunal Constitucional o controlo da constitucionalidade consagrado no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição - tarefa que ele cumpriu ao editar o artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, indicando-se neste preceito como tendo legitimidade para requerer a apreciação e a declaração da inconstitucionalidade referida ao n.º 3 do artigo 281.º da Constituição o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, tem de concluir-se pela legitimidade do Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional para apresentar o pedido a que um pouco acima se aludiu.
Entende, por isso, este Tribunal que também o Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional goza de legitimidade para solicitar, ao abrigo dos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, na dimensão acima identificada.
10 - À argumentação que vem de ser referida acrescentam ainda alguns, entre os quais o relator, uma outra, que radica na íntima ligação da modalidade de fiscalização abstracta consagrada no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição à fiscalização concreta da constitucionalidade. Vejamos quais são os contornos dessa argumentação.
10.1 - O Tribunal Constitucional vem considerando, em jurisprudência uniforme e constante, que tem competência para apreciar a constitucionalidade das normas aplicadas ou desaplicadas, com fundamento em inconstitucionalidade, pelos tribunais de Macau, quer se trate de normas provenientes dos órgãos próprios do território (cf., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 284/89, 332/90, 157/92, 75/95 e
38/96, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Junho de 1989, 19 de Março de 1991, 2 de Setembro de 1992, 12 de Junho de 1995 e 17 de Maio de
1996, respectivamente), quer de normas provenientes dos órgãos de soberania da República Portuguesa vigentes unicamente no ordenamento jurídico de Macau (cf., inter alia, os Acórdãos n.ºs 245/90, 123/92 e 417/95, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Janeiro de 1991, 18 de Agosto de 1992 e 17 de Novembro de 1995, respectivamente). Na sua função de controlo da constitucionalidade de normas jurídicas do ordenamento jurídico de Macau, vem adoptando o Tribunal Constitucional, como parâmetros de controlo, quer as normas e princípios da Constituição da República Portuguesa vigentes em Macau, por
«devolução», explícita ou implícita, do respectivo Estatuto Orgânico (é o que sucede, por exemplo, com o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, constante da lei fundamental da República Portuguesa, que é directamente aplicável ao território de Macau, por força do disposto no artigo
2.º do mencionado Estatuto), quer as normas e princípios do Estatuto Orgânico de Macau - o qual constitui a verdadeira «Constituição» deste território.
O Tribunal Constitucional fundamenta a sua competência para exercer o controlo concreto da constitucionalidade das normas do ordenamento jurídico de Macau desde logo no artigo 1.º da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos do qual este órgão «exerce a sua jurisdição no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa» - disposição esta que, segundo A. M. Barbosa de Melo e J. M. Cardoso da Costa, «Projecto de lei sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LX, e em separata, nota ao referido artigo 1.º, visa precisamente a situação de Macau -, bem como nos artigos 11.º e 34.º da Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, aprovada pela Lei n.º 112/91, de 29 de Agosto, alterada pela Lei n.º 4-A/93, de 26 de Fevereiro [o primeiro refere que «o Tribunal Superior de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais de Macau, sem prejuízo da competência do Supremo Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Administrativo e o do Tribunal Constitucional em matéria de recursos» e o segundo estabelece que «as competências que, nos termos da presente lei, se mantêm no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal de Contas caberão ao Tribunal Superior de Justiça de Macau a partir do momento em que, nos termos do artigo 75.º do Estatuto Orgânico de Macau (artigo 72.º, na versão decorrente da Lei n.º
23-A/96, de 29 de Julho), os tribunais do território forem investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição»], e, por último, na circunstância de o Presidente da República ainda não ter exercido a faculdade conferida pelo artigo
72.º do Estatuto Orgânico de Macau, determinando o momento a partir do qual os tribunais de Macau serão investidos na plenitude e exclusividade da jurisdição.
É a esta luz que há-de entender-se o artigo 41.º, n.º 1, do Estatuto Orgânico de Macau, o qual determina que, nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais (de Macau) aplicar normas que infrinjam as regras constitucionais ou estatutárias ou os princípios nelas consignados.
10.2 - O pedido formulado a este Tribunal pelo Procurador-Geral Adjunto, embora não se enquadre num processo de fiscalização concreta, mas antes num processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, tem como pressuposto a existência de três decisões do Tribunal Constitucional de julgamento de inconstitucionalidade de uma norma jurídica.
Apesar de a reanálise a que o Tribunal Constitucional procede da norma julgada anteriormente inconstitucional em três casos concretos se situar num plano diverso do controlo concreto da constitucionalidade, em termos de ser possível alcançar uma solução diversa da adoptada nas decisões concretas (cf., sobre este ponto, o Acórdão n.º 1/92, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º
43, de 20 de Fevereiro de 1992), o certo é que as três decisões de julgamento de inconstitucionalidade determinam o objecto do «processo de repetição do julgado», não podendo neste ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma diferente da que foi julgada inconstitucional nos três casos concretos.
Tudo isto significa que o vulgarmente designado «processo de generalização» da inconstitucionalidade apresenta uma ligação estreita ao processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, atendendo não só ao seu pressuposto específico, antes referido, como ainda às entidades que, de modo exclusivo, têm legitimidade para desencadear aquele tipo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade (ou qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou o representante do Ministério Público junto deste órgão jurisdicional - cf. o artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional).
Assim sendo, a legitimidade do Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional para desencadear, de harmonia com os artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, um processo de fiscalização abstracta da constitucionalidade tendo por objecto normas do ordenamento jurídico de Macau, tenham estas ou não origem nos órgãos próprios deste território, há-de considerar-se como que um prolongamento ou uma decorrência natural da admissibilidade da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas do ordenamento jurídico de Macau pelo Tribunal Constitucional (cf. J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pp. 37 e 38), admitida, como se viu, implicitamente, no Estatuto Orgânico de Macau e, explicitamente, na Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau - admissibilidade essa que não foi posta em causa pelas recentes alterações ao Estatuto Orgânico de Macau, operadas pela Lei n.º 23-A/96, de 29 de Julho, sobretudo pelo novo artigo 2.º, que veio reconhecer ao território de Macau também «autonomia judiciária», e pelo artigo 31.º, n.º 3, alínea j), que passou a considerar da competência concorrencial da Assembleia Legislativa e do Governador legislar sobre as «bases do sistema judiciário de Macau».
11 - A mesma conclusão que aqui se adopta - a da legitimidade do Procurador-Geral Adjunto para requerer a este Tribunal a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto - é, igualmente, compatível com a perspectiva de quem, discordando da solução alcançada no citado Acórdão deste Tribunal n.º 292/91, entenda que as normas do ordenamento jurídico de Macau, provenham eles dos órgãos de soberania da República Portuguesa ou dos
órgãos do território de Macau, estão sujeitas a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, não apenas nos termos do n.º 3 do artigo 281.º, mas ainda de harmonia com o disposto no n.º 2 do mesmo preceito da Constituição.
12 - Adquirida a conclusão da legitimidade dos requerentes e verificada, pelos fundamentos acima assinalados, a identidade do objecto dos dois pedidos, passemos, então, à sua apreciação in meritis.
12.1 - Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75:
«1 - A extradição pode ser negada quando:
a) O crime for punível no Estado requerente com a pena de morte ou com prisão perpétua e não houver garantia da sua substituição;
b) ...»
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 33.º da Constituição estabelece:
«3 - Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante.»A questão da compatibilidade da norma legal que vem de ser transcrita com este preceito constitucional foi analisada, pela primeira vez, no Acórdão deste Tribunal n.º 417/95 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 266, de 17 de Novembro de 1995) - aresto tirado em plenário do Tribunal Constitucional, embora respeitante a um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, com base em recurso interposto para este Tribunal do Acórdão do plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau de 14 de Abril de 1994 -, tendo-se aí concluído, com dois votos de vencido, que a norma constante do artigo 4.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º
437/75, de 16 de Agosto, na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição, é inconstitucional, por violação do artigo 33.º, n.º 3, da Constituição.
A solução a que se chegou naquele aresto foi adoptada posteriormente em vários acórdãos das duas secções deste Tribunal, entre os quais os indicados pelo Procurador-Geral Adjunto no seu requerimento (Acórdãos n.ºs 430/95 e 449/95), todos tirados com base em recursos de decisões do Tribunal Superior de Justiça de Macau (registe-se que a solução do Acórdão n.º 417/95 suscitou o aplauso de J. J. Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 128.º, n.º 3857, pp. 248-251, tendo, porém, sido criticada por Carlos Fernandes, in A Extradição e o Respectivo Sistema Português, Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional, Lisboa, 1996).
12.2 - É a solução, bem como o essencial da fundamentação constantes do Acórdão n.º 417/95, que aqui se adoptam.
Escreveu-se, em determinado passo, no referido aresto:
«[...] o legislador constitucional foi mais longe do que o legislador ordinário de 1975, pois que não estabeleceu qualquer condicionalismo, no sentido de condição legal, que tornasse possível a extradição para países onde existisse a possibilidade de aplicação de pena de morte, que, depois de ser aplicada, viesse a ser substituída por uma pena de outro tipo. Nem no plano literal, nem no plano teleológico, se pode extrair do texto constitucional a permissão de tal condicionalismo.
Deste modo, o texto da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º deverá agora ser perspectivado à luz da Constituição (no entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira 'a proibição da extradição em caso de haver possibilidade de aplicação da pena de morte está ligada à protecção absoluta, conferida ao direito à vida'
- loc. cit., pp. 210-211).
Na verdade, tem o Tribunal Constitucional afirmado por diversas vezes que, quando esteja em causa a inconstitucionalidade material de uma norma, o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada, donde resulta que, no caso concreto, tendo a aplicação da norma da alínea a) ocorrido depois da entrada em vigor da Constituição de 1976, com as alterações introduzidas pela revisão de
1989, é a este texto que temos de nos ater (cf. Acórdãos n.ºs 408/89 e 446/91, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente, de 31 de Janeiro de 1990 e de 2 de Abril de 1992).
A protecção constitucional significa averiguar em concreto da compatibilidade da extradição com os princípios que a enformam, tendo em atenção, especialmente, a Constituição, a infracção, e a pena, seja no plano substantivo, seja no plano processual, à luz do ordenamento interno dos dois Estados interessados na extradição.
[...] O legislador constitucional quis de forma enfática afirmar que, desde que ao crime corresponda pena de morte segundo a lei incriminadora do Estado requerente, a extradição está peremptoriamente proibida. Por conseguinte, à luz do artigo 33.º, n.º 3, a extradição só é consentida quando, segundo o direito interno do Estado requerente, a pena susceptível de, em concreto, ser aplicada ou já aplicada ao caso não seja a pena de morte.
Na verdade, só então não corre perigo o direito à vida do extraditando. Ora, o direito à vida é, justamente, o que se pretende tutelar com aquela proibição de extradição, cujo fundamento último é, como se viu já, a dignidade da pessoa humana em que assenta o Estado de direito democrático e que impõe se proíba a pena de morte.
A expressão 'segundo o direito do Estado requisitante' usada no n.º 3 do artigo
33.º, tem, pois, de entender-se como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos - e só eles - que se inscrevam vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada (pense-se, como mera hipótese académica, em preceitos legais do tipo do artigo 16.º, n.os 3 e 4, do nosso Código de Processo Penal vigente, concedendo ao Ministério Público a iniciativa, vinculativa para o juiz, e processualmente irreversível, de
'entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo').»
Com a sua jurisprudência, vasada no Acórdão n.º 417/95 e noutros que lhe seguiram o rasto, pretendeu o Tribunal Constitucional significar que o artigo
33.º, n.º 3, da Constituição proíbe a extradição por crimes cuja punição com pena de morte seja juridicamente possível, de acordo com o ordenamento penal e processual penal do Estado requisitante, sendo, por isso, incompatível com quaisquer garantias de não aplicação ou de substituição da pena capital prestadas pelo Estado requerente, que não se traduzam numa impossibilidade jurídica da sua aplicação.
Lançando mão da terminologia utilizada no Acórdão n.º 474/95 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 266, de 17 de Novembro de 1995), pode afirmar-se que a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75 é inconstitucional na medida em que permite a extradição por casos em que a aplicação da pena de morte é legalmente possível, embora não previsível, designadamente em função das garantias transmitidas pelo Estado requerente, não sendo, porém, inconstitucional na medida em que permite a extradição, se for juridicamente certa a não aplicação dessa pena, não obstante ela ser, em abstracto, aplicável ao caso.
A norma questionada pelos requerentes deve, assim, nos termos acabados de assinalar, ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral.
III – Decisão
13 - Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 33.º, n.º 3, da Constituição, da norma constante do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto (em vigor no território de Macau), na parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da sua substituição, se esta garantia, de acordo com o ordenamento penal e processual penal do Estado requerente, não for juridicamente vinculante para os respectivos tribunais.
Lisboa, 12 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José de Sousa Brito Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Antero Alves Monteiro Dinis Messias Bento Bravo Serra (vencido, de harmonia com a declaração de voto junta) Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junta) José Manuel Moreira Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Uma vez mais se reafirma na presente declaração, e no fundamental, a corte de razões que foram expostas na declaração apendiculada ao Acórdão deste Tribunal n.º 417/95, publicado na 2.ª série do Diário da República, de 17 de Novembro de
1995. Disse-se aí, no que ora releva:
«Não interessa discutir a asserção, constante do acórdão de que a presente declaração faz parte integrante, segundo a qual, por força do disposto no n.º 3 do artigo 33.º da Constituição, não é consentida a extradição quando, 'segundo o direito do Estado requisitante', a pena susceptível de em concreto ser aplicada revestir a espécie de pena capital.
Efectivamente, uma tal estatuição constante do nosso diploma básico decorre da consagração constitucional fundamental segundo a qual '[a]vida humana é inviolável' (n.º 1 do artigo 24.º), isto é, decorre da consagração da defesa do valor positivo da vida, e não já do comando (ínsito no n.º 2 do citado artigo
24.º) de que '[e]m caso algum haverá pena de morte', ou seja, do comando que visa a defesa do valor negativo da proibição da pena de sorte, pois que, na minha óptica, esta última prescrição dirige-se ao ordenamento jurídico nacional, não podendo, como é evidente, ser imposto aos ordenamentos estrangeiros ou servir como 'forma de pressão' (no sentido de recusa de formas de cooperação judiciária) para que estes deixem de conter na respectiva previsão a pena capital.
Mas, se assim é, ou seja, se a proibição da extradição se funda no asseguramento da inviolabilidade da vida humana, ou, como se disse, na defesa do valor positivo da vida, então, se o Estado requisitante dessa forma de cooperação judiciária assegurar a Portugal, como Estado requisitado, que a vida do extraditado não será violada por intermédio da aplicação da pena de morte, já será, na nossa perspectiva, possível, sem ofensa da proibição constante do n.º 3 do artigo 33.º, o deferimento da extradição. Ora, é justamente aqui que, primordialmente, nos afastamos do discurso utilizado no vertente aresto quanto à interpretação demasiado restritiva que nele se faz e segundo a qual a 'expressão 'segundo o direito do Estado requisitante', usada no n.º 3 do artigo 33.º tem [...] de entender-se como sendo o direito internamente vinculante desse Estado, constituído, tão-só, pelo respectivo corpo de normas penais, de que conste a possibilidade abstracta da pena de morte, e por quaisquer mecanismos - e só eles - que se inscrevem vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que decorrentes do direito constitucional ou do direito jurisprudencial do Estado requisitante, dos quais resulte que a pena de morte não será devida no caso concreto, porque nunca poderá ser aplicada', e ainda quando ali se afirma que a garantia oferecida pela República Popular da China - cuja consistência se não questiona e que se aceita vincular internacionalmente aquele Estado, sendo essa garantia 'subsumível à previsão do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), na parte em que prevê a possibilidade de a extradição ser concedida, havendo garantia da substituição da pena de morte' -
'apesar de ser juridicamente vinculante no plano' internacional, não é direito do Estado requisitante [...], já que não pode ter-se como juridicamente vinculante para o juiz interno'.
Com efeito, admitido como está pelo próprio aresto, que a garantia é juridicamente vinculante no plano internacional, não faz sentido que ela se não reflicta no plano interno, apresentando, pois, aí, idêntica força vinculante, quanto mais não seja por via do princípio da boa fé que estrutura a validade internacional dos compromissos assumidos por Estados soberanos.
Aliás, a nosso ver, o acórdão a que se encontra apendiculada a presente declaração, mesmo delimitando, pela interpretação restritiva que faz, o que para ele deve ser entendido como 'direito interno do Estado requisitante', não logra demonstrar que, atento o ordenamento jurídico do Estado em questão, o compromisso in casu deparado não constitui ou, se se quiser, não faz ou vai fazer, em concreto, parte do respectivo 'direito interno' no sentido (para o acórdão o único que deverá ser perspectivado como correcto) de integrar um mecanismo que se inscreva 'vinculativamente no direito e processo criminais, ainda que' decorrente 'do direito constitucional ou do direito jurisprudencial' desse Estado.
Em face do exposto, entendemos que uma norma como a ora sub judicio, entendida no sentido de que é vedada a extradição quando o direito do Estado requisitante puna o crime com pena capital, salvo se este se comprometer, ainda que por mero acto unilateral, a não aplicar em concreto tal pena, não padece de inconstitucionalidade, uma vez que, assegurado que seja esse compromisso, salvaguardada está a defesa do aludido interesse positivo de defesa da vida, valor subjacente à injunção constante do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição.»
No vertente aresto, e relativamente à solução a que se chegou naquele acórdão e, bem assim, nos Acórdãos n.os 430/95 e 449/95, vem, em direitas contas, explicitar-se que aquilo que o Tribunal, maioritariamente, entende, é que a locução «segundo o direito do Estado requisitante», utilizada no n.º 3 do artigo
33.º da Constituição, tem o significado de ser juridicamente possível, segundo o ordenamento normativo desse Estado, a aplicação da pena capital. E, sendo assim
- prossegue a explicação -, isso há-de conduzir a que, se o Estado requisitante não der garantias de que é juridicamente impossível a aplicação de tal pena, a lei fundamental portuguesa veda o deferimento da extradição. Em consequência da interpretação constitucional levada a cabo pela posição que neste acórdão fez vencimento, quaisquer garantias que se não fundem no ordenamento jurídico interno do Estado requisitante e em face do qual, tendo em conta os mecanismos nele consagrados, se tornou irremissível e irretratavelmente impossível a aplicação da pena de morte, a extradição não é permitida, ainda que outras garantias sejam dadas e das quais, num juízo de normalidade e aparência, resulte que não é previsível a aplicação no caso, daquela espécie de pena.
Ora, é justamente neste ponto concernente à interpretação da norma constitucional tal como foi efectuada no presente acórdão, que se diverge da solução a que ele chegou. Na verdade, reconhece-se que a maioria do Tribunal não põe em causa as relações que defluem da ordem pública internacional, do relevo do direito internacional público, dos esquemas jurídico-políticos internacionais e, maxime e muito menos, perspectiva a questão num ângulo de desconfiança relativamente a Estados que prevêem no seu ordenamento jurídico-penal a pena de morte. Tudo se resume, enfim, a uma interpretação da norma constante do n.º 3 do artigo 33.º do diploma básico.
E é essa interpretação que se não perfilha.
E não se perfilha tendo em atenção as razões aduzidas na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 417/95, por isso que se entende que o legislador constituinte, ao editar a norma do n.º 3 do mencionado artigo 33.º, não podia olvidar os princípios fundamentais que regem o direito internacional e a respectiva ordem pública.
Ora, se é certo que tais princípios inequivocamente apontam para que os Estados devem respeitar os compromissos internacionalmente assumidos, está-se em crer que o legislador constituinte, ciente dessa realidade, ao redigir a norma ínsita no n.º 3 do artigo 33.º da lei fundamental, se quis reportar, não à punibilidade em abstracto, mas sim àqueles casos em que o Estado requisitante - que pede a cooperação judiciária do Estado Português - por qualquer das formas aceites pelo direito internacional, se compromete a não aplicar, em concreto, a pena de morte.
Mas, ainda que se entenda que a interpretação constitucional levada a efeito pela maioria que fez vencimento no presente acórdão (a saber e repetindo: que a extradição não é autorizada se o ordenamento jurídico interno do Estado requisitante não tornar juridicamente impossível a aplicação, em concreto, da pena capital) é a mais defensável, o que se pergunta é se um compromisso internacionalmente assumido por esse Estado e no sentido que, no caso, não será aplicada essa sorte de pena, não constitui por si algo que vai, perante os cânones do direito internacional e a ordem pública internacional, enformar o direito interno do mesmo Estado e, assim, passar a deter idêntica força vinculativa à de ordenamento que, igualmente no caso, tornasse juridicamente impossível a aplicação da mencionada pena (ou, se se quiser, não vai operar como uma modificação casual do direito interno em termos de, quanto a ele, haver uma impossibilidade jurídica de aplicação da pena de morte).
E, se resposta afirmativa fosse dada a esta questão - o que se entende -, então haveria que concluir que o aresto de que esta declaração faz parte encerraria, em si, uma contradição.
É que, a seguir-se a interpretação do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição tal como a maioria entendeu, então daí resulta que seria necessário, para que fosse concedida a extradição pedida a Portugal por um Estado relativamente a um agente de um ilícito para o qual, em abstracto, está cominada a pena de morte, que, para além de qualquer garantia internacionalmente vinculante, os respectivos ordenamentos jurídico-penal e (ou) jurídico-processual penal contivesse a previsão de uma «norma de recepção» dos compromissos internacionais, norma que, está-se em crer e, por isso, nos arriscamos a dizer, não existe em nenhum ordenamento.
Daí que se tenha perfilhado a óptica de harmonia com a qual não enferma de inconstitucionalidade a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que foi declarada padecer de um tal vício. Bravo Serra Vítor Nunes de Almeida