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Processo nº 235/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que E..., intentou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa - 13º Juízo Cível - contra C..., M... veio nos autos deduzir o incidente de oposição e, simultaneamente, requereu o benefício do apoio judiciário, alegando, para o efeito, a insuficiência de rendimentos para suportar o encargo dos preparos e das custas, tendo em conta o elevado valor da causa (61.721.958$00).
A autora, notificada, contestou o pedido de apoio judiciário, opondo-se à sua concessão, pelo menos na integralidade, e o Senhor Juiz, após ouvir o Ministério Público e exami nar a prova junta e a oficiosamente ordenada, decidiu no sentido do indeferimento do pedido.
Recorreu, então, a interessada, pugnando, nomeadamente, pela audição das testemunhas por si oferecidas e que, não obstante, não chegaram a ser inquiridas.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de Junho de 1994, negou provimento ao recurso, de agravo, e confirmou a decisão impugnada.
Entendeu-se, em síntese, que constituiria acto inútil ouvir as testemunhas oferecidas, cujo depoimento nada adiantaria, uma vez que não foi alegada oportunamente matéria de facto, não competindo ao juiz suprir a deficiência da alegação factual.
Inconformada, recorreu, então, a interessada para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 23 de Março de 1995, não conheceu do objecto do recurso.
Na verdade, se bem que inicialmente admitido, ponderou-se que, não obstante o disposto no artigo 39º do Decreto-Lei nº
387-B/87, de 29 de Dezembro, nos termos do qual cabe sempre agravo, independentemente do valor, das decisões proferidas sobre o apoio judiciário - com efeito suspensivo, quando o recurso foi interposto pelo requerente, com efeito meramente devolutivo nos demais casos - não existe no regime legal vigente um duplo grau de recurso, tão pouco constitucionalmente exigido.
Escreveu-se, designadamente, o seguinte:
'Na verdade, a garantia da via judiciária assegurada pela Constituição da República - artigo 20º, nº 2 - inclui tão só o direito ao recurso das decisões dos tribunais, por forma a que haja um duplo grau de jurisdição - cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional de 30.10.90, no
'Boletim do Ministério da Justiça', nº 400, pág. 212, e G. Canotilho e V. Moreira, 'Constituição da Replica Portuguesa', 2ª edição, vol. I, 1984, nota III ao artigo 20 citado.
E, como ficou referido, tal garantia está assegurada pelo regime legal vigente.
Pode adiantar-se algo mais.
É que, tendo o incidente em causa as características de um processo de jurisdição voluntária, como sustenta Lúcio Vidal em 'A Assistência Judiciária nos Tribunais', págs. 113 e 126, parece natural que as decisões não sejam passíveis de recurso em dois graus, a símile do que se dispõe no Código de Processo Civil - cfr. o artº 1411, nº 2, do respectivo Código.
Quer dizer, a natureza específica do incidente de apoio judiciário não se coaduna 'com a referência ao valor processual da acção em que é suscitado, determinante da alçada, e muito menos com a medida de uma mera sucumbência as mais das vezes difícil de quantificar', não existindo o propósito de tipificar um regime pelo qual se conseguiria discutir o apoio em dois graus de recurso, sem se conhecer do mérito da causa em nenhum - cfr. neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 1991, no B.M.J., nº
410, pág. 715.
E, em linha de orientação idêntica, os acórdãos do S.T.J. proferidos nos recurso nº 83.070, e 85.532, ambos da 2ª Secção.'
Face ao assim decidido, M... recorreu, então, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sublinhando que só agora e por força do acórdão recorrido pode suscitar a questão de inconstitucionalidade, qual seja a de que o artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, na interpretação que da respectiva norma fez aquele aresto, no sentido de não apreciar o recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação, viola o disposto no artigo 20º da Constituição da República (CR).
O recurso foi recebido pelo Conselheiro Relator no Supremo, entendendo, nomeadamente, que 'ocorre a situação anómala de a recorrente não ter tido oportunidade processual para, antes da decisão recorrida, suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma arguida, na interpretação dada pelo Acórdão, a qual constituirá, assim, uma decisão-surpresa'.
Já neste Tribunal Constitucional, alegou, tão só, a recorrente que concluíu nos seguintes termos:
'A norma constante do artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, dispondo que 'das decisões proferidas sobre o apoio judiciário cabe sempre agravo, independentemente do valor...', interpretada, como no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ora recorrido, no sentido de que admite apenas um grau de recurso - isto é, tendo sido aplicada em 1ª instância, com recurso para a Relação, não admite novo recurso, agora para o Supremo, mesmo que o valor do processo seja superior ao da alçada da Relação - viola o disposto nos arts. 13º e 20º da Constituição.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II
1.- A questão prévia da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade.
Constitui pressuposto de admissibilidade do recurso interposto com base na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 que haja sido suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade em causa, entendendo a jurisprudência deste Tribunal, reiterada e uniformemente, que a suscitação durante o processo há-de ser entendida não em sentido formal - que a tornaria possível até à extinção da instância - mas sim em sentido funcional, de modo a que o tribunal recorrido possa ainda conhecer da questão enquanto não esgotado o seu poder jurisdicional o que, em princípio, ocorre com a prolação da sentença, exceptuando-se os casos anómalos ou excepcionais em que o recorrente não teve oportunidade de levantar a questão em momento anterior.
Nesta linha de entendimento igualmente se vem considerando que a aclaração de decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não são, já, por via de regra, momentos idóneos e atempados para o efeito (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 61/92, 152/93, 261/94 e 164/95, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992, 16 de Março de 1993, 26 de Julho de 1994 e 29 de Dezembro de 1995, respectivamente).
Só é dispensável o requisito em apreço nos casos, já aludidos, excepcionais, em que não houve oportunidade de uma suscitação oportuna, como sucederá quando a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida for insólita ou inesperada, a ponto de não ser razoável que o interessado a previsse. Nestes casos, cessam os ónus que recaem sobre as partes de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas no processo e, bem assim, de adoptarem a estratégia processual adequada para prevenirem essa possibilidade (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 61/92 e 370/94, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 7 de Setembro de 1994, respectivamente).
2.- O artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, dispõe:
'Das decisões proferidas sobre apoio judiciário cabe sempre agravo, independentemente do valor, com efeito suspensivo, quando o recurso for interposto pelo requerente, e com efeito meramente devolutivo nos demais casos'.
O Supremo, no acórdão recorrido, interpretou a norma deste preceito em termos de não ser admissível recurso do acórdão da 2ª instância, confirmativo do despacho de indeferimento do apoio judiciário, por inexistir um terceiro grau de jurisdição na matéria. Esta a interpretação, em sua tese, mais convincente seja tendo em conta o anterior regime, seja com o símile da jurisdição voluntária, seja, finalmente (e decisivamente) por inexigência constitucional.
São três, na sua perspectiva, os fundamentos que a corroboram: no domínio da Lei nº 7/70, de 9 de Junho, e do respectivo Regulamento - Decreto nº 562/70, de 18 de Novembro
- textos anteriormente vigentes neste domínio, não havia recurso da decisão da
1ª instância que concedia a então chamada assistência judiciária e da decisão que a negava cabia agravo, em um só grau, com efeito suspensivo (Base VII, nº 4, da Lei), sendo certo que, nos tribunais superiores, competia ao relator decidir sobre o pedido, não havendo recurso mas tão só reclamação para a conferência
(artigo 25º, nº 2 do Regulamento); revestia-se o incidente das características próprias de um processo de jurisdição voluntária, parecendo, assim, natural, dada a similitude, não serem as decisões nele proferidas passíveis de recurso em dois graus, como, de resto, opinavam os comentadores (cfr. Armando Lúcio Vidal, A Assistência Judiciária nos Tribunais, págs. 113 e 126); finalmente, constituía pacífica e impressiva corrente jurisprudencial a que entendia o apoio judiciário não coadunável, na sua natureza específica, com a referência ao valor processual da acção em que é suscitado, determinante da alçada, e muito menos com a medida de uma mera sucumbência as mais das vezes difícil de quantificar, não existindo o propósito de tipificar um regime pelo qual se conseguiria discutir o apoio em dois graus de recurso, sem se conhecer do mérito da causa em nenhum (e, neste sentido, pode apontar-se o acórdão do Supremo de 24 de Outubro de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 410, págs. 715 e segs.).
Coloca-se, deste modo, a questão de saber se a suscitação da inconstitucionalidade de semelhante interpretação foi tempestivamente deduzida, uma vez que a recorrente só se lhe refere, tendo-a por lesante do artigo 20º da Constituição, no próprio requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
O problema não foi, de resto, esquecido pelo Senhor Conselheiro relator que, tendo votado vencido o acórdão, o encara frontalmente no despacho em que admite o recurso, entendendo ocorrer in casu 'a situação anómala de a recorrente não ter tido oportunidade processual para, antes da decisão recorrida, suscitar a questão da inconstitucionalidade da norma arguida, na interpretação dada pelo Acórdão, a qual constituirá, assim, uma decisão-surpresa (já que o recurso havia sido regularmente recebido pela Relação)'.
Importa, assim, emitir um juízo definitivo sobre a matéria, uma vez que este Tribunal não está vinculado àquele entendimento, como resulta do disposto no nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
Interessa, na verdade, questionar se, no concreto caso, tendo em conta a orientação jurisprudencial ilustrada pelos citados acórdãos nºs. 61/92 e 370/94, deveria ter a recorrente adoptado uma estratégia processual que previsse como plausível a interpretação que o Supremo acolheu no acórdão recorrido (mediante, por exemplo, a suscitação do problema da constitucionalidade no requerimento de interposição do recurso do acórdão da Relação, para a eventualidade de não ser admitido).
Ou, se se preferir equacionar a questão noutros termos, independentemente do que se possa entender quanto à bondade dos argumentos utilizados no acórdão e dos considerandos explanados no voto de vencido - na medida em que estranhos à competência deste Tribunal - terá a interpretação da norma pelo Supremo constituído uma decisão-surpresa para a recorrente, que não era razoável esperar?
Se se ponderar a distinta etiologia que assiste à assistência judiciária, por um lado, e ao instituto do apoio judiciário, por outro, de tal modo que aquela não mais seria do que a expressão de medida social concretizada no patrocínio oficioso e no específico regime de custas, enquanto o apoio judiciário, tal como é hoje concebido, se assume como instrumento através do qual se concretiza o princípio do acesso ao direito e à justiça (artigo 20º, nº 1, da CR), permitindo que todos possam defender os seus direitos, sem impedimentos ou dificuldades decorrentes da respectiva condição social ou cultural ou da sua situação económica (artigo 1º do Decreto-Lei nº 387-B/87), então não custa defender que uma interpretação literal da norma do artigo 39º em análise será a que melhor se compagina com a nova filosofia do apoio judiciário (anota Salvador da Costa ser o regime actual, em matéria de recurso, de maior abertura: Apoio Judiciário, Lisboa, 1990, pág. 99) a tal ponto que mesmo o operador jurídico prudente se permitirá desprezar uma linha jurisprudencial assente na concepção de grau único de recurso. Dir-se-á, então, não ser razoável exigir-lhe um juízo de prognose assente na perspectiva de recidiva jurisprudencial nesse sentido.
Vale o exposto por dizer ter sido atempadamente suscitada a questão de constitucionalidade.
O que não significa, no entanto, que seja constitucionalmente exigível um duplo - ou triplo - grau de recurso - ponto que abordaremos a seguir.
3.- A questão de fundo.
Consignou-se oportunamente ter a interessada recorrido do indeferimento do seu pedido de concessão de apoio judiciário, negando a Relação provimento ao recurso pelo que, inconformada, pretendeu a mesma reagir perante o Supremo que, no entanto, não conheceu do objecto do recurso por entender não ser admissível, neste domínio, um segundo grau de recurso, na interpretação que fez do artigo 39º em referência.
Não está agora em causa - é necessário salientar
- o acerto de semelhante decisão numa perspectiva crítica que extravasaria obviamente a competência do Tribunal Constitucional, tão só interessando apurar se essa interpretação se mostra constitucionalmente adequada - o que não sucederá se o duplo grau de recurso for garantido constitucionalmente em situações como a presente.
Nesta matéria, e como se observou no acórdão nº
447/93, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Abril de 1994, 'o Tribunal Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme, que remonta a 1985, e que fora antecedida já por uma orientação idêntica da Comissão Constitucional.
Assim, no domínio do processo criminal, essa jurisprudência reconhece que, por força dos artigos 27º, 28º e 32º, nº 1, da Constituição, se acha constitucionalmente assegurado o duplo grau de recurso quanto às decisões condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a qualquer outros direitos fundamentais (v., por todos, os Acórdãos nºs. 31/87, 178/88, 340/90 e 401/91, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pp. 463 e seguintes, e os outros no Diário da República, 2ª série, nº 277, de 30 de Novembro de 1988, nº 65, de
19 de Março de 1991, e 1ª série-A, nº 6, de 8 de Janeiro de 1992, respectivamente). Mas tal garantia de duplo grau de recurso não abrange outras decisões proferidas em processo penal (o Tribunal tem sustentado em sucessivas decisões que não sofre de inconstitucionalidade o artigo 390º, nº 2 do Código de Processo Penal de 1929).
No domínio dos outros ramos de direito processual, o Tribunal Constitucional tem entendido que o duplo grau de recurso não se acha constitucionalmente garantido, reconhecendo-se ampla liberdade de conformação ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos, nomeadamente em função do valor da causa. Assim, no Acórdão nº 859/86 considerou-se que a Constituição não garantia em todos os casos o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (triplo grau de jurisdição), muito embora o princípio de igualdade vedasse qualquer discriminação no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça em função da natureza sindical de uma associação, face ao regime aplicável às outras associações (in Acórdãos do Tribunal Constitucional
8º vol., pp. 605 e seguintes). E em numerosos arestos posteriores reconheceu-se que o nº 1 do artigo 678º do Código de Processo Civil não está afectado de inconstitucionalidade (v. os Acórdãos nºs. 163/90 e 210/92, in Diário da República, 2ª série, nº 240, de 18 de Outubro de 1991 e nº 211, de 12 de Setembro de 1992).
De um modo geral, pode afirmar-se que, fora do domínio penal, o princípio da efectividade do direito ao recurso, a implicar duplo grau de recurso, não constitui garantia constitucional, tendo apenas, como se observou noutro acórdão deste Tribunal - o nº 310/94, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Agosto de 1994 - 'o alcance de uma proibição ao legislador de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso ou de a inviabilizar na prática'.
Não se vê razão válida para alterar semelhante entendimento.
Por sua vez, de igual modo não se vislumbra em que medida uma norma como a ora questionada viola o princípio constitucional da igualdade. De resto, nas respectivas alegações, também a recorrente não o diz, limitando-se a considerar como lesante daquele princípio a interpretação da norma em referência que a limite a um único grau de recurso.
Ora, o princípio da igualdade não proíbe o legislador de estabelecer regimes diferenciados de recurso, o que impõe é que se dê tratamento igual ao que for necessariamente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Só as diferenciações de tratamento carecidas de fundamento material bastante - logo, arbitrárias ou irrazoáveis - podem ser constitucionalmente censuráveis, por esta via: o princípio da igualdade identifica-se com uma proibição de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas à ordem constitucional de valores, por um lado, e, por outro, à situação fáctica que se pretende regulamentar ou ao problema que se deseja decidir, como se exprimiu este Tribunal, no acórdão nº 535/95, publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 1995, entre outros.
Não se surpreende, no caso concreto, violação a esse princípio.
IV
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, deste modo se confirmando a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 5 de Novembro de 1996 Alberto Tavares da Costa (vencido quanto à questão prévia nos termos da declaração de voto junta)
Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida (vencido quando à questão previa pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Cons. Tavares da Costa). José Manuel Cardoso da Costa (Perfilhando o entendimento do Exmº Conselheiro Relator, quanto à questão prévia).
Declaração de Voto
1.- No projecto de acórdão inicialmente apresentado entendi não se dever conhecer do recurso por lhe faltar um dos pressupostos exigidos para a sua admissibilidade, o da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Não obstante ter sido tese que não logrou maioria nem por isso deixei de manter esse ponto de vista.
Com efeito, o Tribunal tem considerado recairem sobre as partes os ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas susceptíveis de serem aplicadas no processo e, bem assim, de adoptarem a estratégia processual adequada com vista a prevenirem essa possibilidade, só assim não sendo naqueles casos, excepcionais, em que a interpretação dos preceitos acolhidos na decisão recorrida for de tal modo insólita ou inesperada que se tornaria irrazoável exigir aos interessados a sua previsão (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 61/92 e 370/94, publicados no Diário da República, II Série, de
18 de Setembro de 1992 e 7 de Setembro de 1994, respectivamente).
No entanto - e consoante nesse projecto inicial se tentou demonstrar - a interpretação adoptada na decisão recorrida - independentemente de se ajuizar, como é óbvio, da sua bondade - mais não foi do que expressão de uma corrente jurisprudencial bem definida e, a essa data, publicamente conhecida. Ou seja, não constituíu para a recorrente uma
'decisão-surpresa', que não era razoável esperar.
2.-A este respeito, escreveu-se no aludido projecto e transcreve-se agora:
'Desde logo, o regime que o diploma de 1987 substituíu, se bem que orientado por outros parâmetros etiológicos, como vem salientado no voto de vencido lavrado no acórdão recorrido, claramente dispunha não haver recurso da decisão que concedia a então chamada 'assistência judiciária', cabendo agravo da decisão que a negara em um só grau, com efeito suspensivo - nº 4 da Base VII da Lei nº 7/70, de 9 de Junho; nos tribunais superiores, a decisão competia sempre ao relator, não havendo recurso dela mas apenas reclamação para a conferência - nº 2 do artigo 25º do Regulamento da Assistência Judiciária, aprovado pelo artigo 1º do Decreto nº 562/70, de 18 de Novembro.
Dir-se-á que este argumento vale o que vale e bem poderá, a contrario, grangear proventos para a tese contrária: o confronto entre os dois regimes permitiria concluir que a 'lei nova' seria mais favorável ao recurso do que a 'lei antiga' (o regime actual é, em matéria de recurso, de maior abertura, afirma, em anotação ao artigo 39º, Salvador da Costa in Apoio Judiciário, Lisboa, 1990, pág. 99). Mas não poderá, também, deixar de se dizer que o operador jurídico prudente não se permitirá desprezar uma linha jurisprudencial assente numa concepção de grau único de recurso, mesmo perante uma nova lei que, de resto, e como se verá melhor a seguir, não é tão líquida como parece neste domínio.
Com efeito - e esta é uma segunda ordem de razões - é inegável a existência de decisões discordantes nesta matéria, em termos de se poder afirmar não surpreender a interpretação adoptada, a aceitar num quadro de prognose razoável.
Não é só a observação contida no 'visto' de um dos Senhores Conselheiros, em que exprime - e segue - o 'entendimento predominantemente aceite' no Supremo no sentido de, em matéria de apoio judiciário, a lei só garantir um grau de recurso ('visto' de 20 de Fevereiro de 1995, em plena vigência, por conseguinte, do Decreto-Lei nº 387-B/87).
De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 410, págs.
715 e segs., a expressão 'cabe sempre recurso' contida na norma não significa que cabe sempre recurso de agravo até ao tribunal de maior categoria hierárquica que existir, mas sim, e apenas, 'que a circunstância de os valores do incidente ou da acção não atingirem os limites pelos quais se pauta, geralmente, a possibilidade de recurso - a chamada alçada - não é obstáculo para que exista o agravo'.
Nesta orientação, o legislador terá pretendido consignar não ser o incidente de apoio judiciário coadunável com a referência ao valor processual da acção principal, determinante da alçada, 'e muito menos com a medida de uma mera sucumbência as mais das vezes impossível de quantificar, e nunca conseguir um regime pelo qual se conseguia discutir o apoio judiciário em dois graus de recurso, sem se conseguir discutir o fundo da questão, em nenhum', apontando, no mesmo sentido, o acórdão da Relação do Porto de 31 de Maio de 1991, proferido no recurso nº 148/91, 2ª Secção, inédito.'
E ponderou-se, ainda:
'Esta interpretação [...] publicada e muito anterior ao momento adequado da suscitação de constitucionalidade, entronca na corrente jurisprudencial mais significativa como se pode surpreender noutros arestos publicados mais recentemente: acórdãos do mesmo Tribunal de 14 de Dezembro de
1994, 11 de Janeiro de 1995 e 7 de Março de 1995, na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo III, pág.
185, e ano III - tomo I, págs. 181 e 116 e segs., respectivamente.
Em todos estes acórdãos defende-se a tese da sujeição das decisões sobre apoio judiciário e um único grau de jurisdição, independentemente do valor da causa. E vários outros, inéditos, se poderiam citar como os proferidos nos recursos 85532 (relator: Cons. Costa Marques), 83136 (relator: Cons. Ferreira da Silva), 86713 (relator: Cons. Martins da Costa) 86858
(relator: Henriques de Matos) e 86973 (relator: Cons. Santos Monteiro).
E pode, outrossim, surpreender-se outra nuance interpretativa
(nesta leitura 'restritiva') como se retira do acórdão, de 12 de Dezembro de
1991, proferido no recurso nº 81517 (relator: Cons. Sampaio da Silva) em termos assim sumariáveis:
'1.- Dizer, como diz a lei, que 'cabe sempre recurso' é diferente de dizer que cabe sempre recurso de agravo até ao tribunal de maior categoria hierárquica que existir, mas apenas dizer que a circunstância de os valores do incidente ou da acção não atingirem os limites pelos quais se pauta, geralmente, a possibilidade de recurso - a chamada alçada - não é obstáculo para que exista o agravo.'
E, a finalizar, observava-se ainda no aludido projecto:
'O referido artigo 39º deve ser interpretado restritivamente em termos de se estabelecer que o legislador, com as alterações introduzidas, apenas pretendeu estabelecer que em todos os casos haveria sempre recurso de agravo, independentemente do valor da causa - mas não indiscriminadamente até ao Supremo Tribunal de Justiça - assim deixando de vigorar o sistema anterior que previa - mas apenas para as decisões que negassem a assistência - o recurso em um só grau da decisão da primeira instância e já não admitia o recurso, em quaisquer circunstâncias, para o Supremo, da decisão proferida pela Relação
Semelhante decisão encontra apoio noutros arestos: cfr., v.g., os proferidos nos recursos nºs. 81 287 (relator: Cons. Vassanta Tambá) e 83 070
(relator: Cons. Faria e Sousa) em 12 de Novembro de 1991 e 11 de Janeiro de
1993, respectivamente.
Não é esta, obviamente, a tese da recorrente. Ou a do voto de vencido lavrado no acórdão recorrido. Nem tão pouco o do próprio Supremo no acórdão de 13 de Julho de 1992, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 419, págs. 644 e segs., onde se interpreta ampliativamente o dito artigo 39º, considerando que a expressão nele contida não pode ter outro significado que não seja o de o recurso poder ir até ao Supremo, acrescentando-se que a lei, se quisesse limitar o recurso apenas a um grau, 'evidentemente que o teria afirmado de forma expressa'.
Não está em causa, repete-se, valorar as interpretações possíveis e optar por uma delas. Encontramo-nos no domínio dos pressupostos de admissibilidade do recurso pelo que só há que cuidar da verificação dos respectivos pressupostos e não ensaiar, sequer, um juízo de valor, mesmo que implícito, sobre cada uma das possíveis interpretações da norma em exame.
Sempre se dirá, no entanto, a esta luz que, in casu, não se verifica nenhuma interpretação de todo em todo insólita e imprevisível, sobre a qual seria certamente desrazoável exigir-se um juízo de prognose relativo à sua aplicação. Impendia sobre a recorrente o ónus de considerar a interpretação perfilhada pelo Supremo, até porque nem a 'simples surpresa' que esta lhe poderá ter causado, é - como também já se disse neste Tribunal - idónea para configurar uma situação excepcional, justificativa da dispensa do ónus de invocação prévia da questão de inconstitucionalidade (cfr. o acórdão nº 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992).'
3.- Salvo o devido respeito, as considerações expendidas na oportunidade não foram abaladas pela argumentação que veio a obter vencimento, acolhida no acórdão. A exigência de uma prognose assente na lógica do operador jurídico prudente conduzi-lo-ia a não desprezar uma linha jurisprudencial assente no grau único de recurso, mesmo perante a actual legislação e não obstante se tratar de uma expressão essencialmente radicada na jurisprudência.
Alberto Tavares da Costa