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Proc. n.º 855/96
1ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. O presente recurso vem interposto, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que deu parcial provimento ao recurso interposto por A..., da decisão de 1ª instância que lhe havia indeferido o pedido de apoio judiciário, concedendo este apoio 'com exclusão do custo das certidões ou fotocópias (dos autos) já requeridas ou que venha a requerer'. Na motivação do recurso para a Relação, o recorrente, depois de referir que os artigos 1º e 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 387-
-B/87, de 29 de Dezembro são concretização do artigo 20º, n.º 1 da Constituição, salientou que:
'não devem ser excluídas do conceito amplo de custas, em matéria criminal, quaisquer despesas de gastos com papel (cópias) que corram ou possam correr pelo arguido, se se entender que dizem respeito ao cômputo da taxa de justiça'. E que:
'a não ser assim, tanto o artigo 20º, n.º 1 , da C.R.P., norma de aplicação directa (art.º 18º, n.ºs 1 e 2, da C.R.P.), como os artigos 1º, n.º 1, e 3º, n.º
2, do DL 387-B/87, de 29/12, implicariam uma extensão interpretativa do artigo
15º, do mesmo diploma, no sentido de serem também abrangidas, no APOIO JUDICIÁRIO, tais despesas ou semelhante, posto interessarem à leal defesa do ARGUIDO.' Nas conclusões desta motivação de recurso o recorrente refere-se novamente à Constituição, sustentando:
'(...) g) De todo o modo, o artigo 15º do D.L. 387-
-B/87, no seguimento do disposto nos artigos 20º, n.º 1, da C.R.P. (e 18º, n.ºs
1 e 2, do mesmo diploma), artigos 1º, n.º 1, e 3º, n.º 2, do D.L. 387-B/87, citado, deve ser interpretado, ao contrário do que foi no despacho recorrido, como conteúdo esse conceito amplo de custas e não se reconduzindo à norma do artigo 194º. N.º 1, a) do Código das Custas Judiciais; h) Assim, a decisão recorrida violou as disposições legais já citadas; i) Que devem ser interpretadas no sentido proposto nestas conclusões;
(...)'
2. No requerimento de interposição de recurso, pode ler-se
'considera o Recorrente que o Acórdão em crise violou a norma do art.º 20º, n.º
1, da C.R.P., norma de aplicação directa (art. 18º, n.ºs 1 e 2, da C.R.P.), a qual, ao contrário, conjugada com os artigos 1º, n.º 1, e 3º, n.º 2, do DL
387-B/87, de 29/12, implicaria uma extensão interpretativa do art.º 15º, do mesmo diploma, no sentido de serem também abrangidas, no APOIO JUDICIÁRIO, quaisquer despesas de gastos com papel (cópias) que corram ou possam correr pelo Arguido. A inconstitucionalidade desta leitura dos textos legais citados fora já suscitada na MOTIVAÇÃO do RECURSO da decisão de 1ª instância, conforme se vê, nomeadamente, da conclusão g).' Nas suas alegações no Tribunal Constitucional, por sua vez, salientou o recorrente,
'Pretende-se, naturalmente, fazer a demonstração de que a douta decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente o recurso, está ferida de inconstitucionalidade, violando, nomeadamente, o disposto nos artigos 20º, n.º
1, e 18º, n.ºs 1 e 2, ambos da Constituição da República. No n.º 9 destas alegações, o recorrente defendeu que
'Sendo o falado n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República de aplicação directa, pouco ou nada releva investigar se as leis ordinárias que dispõem sobre os conceitos, alcance e âmbito do apoio judiciário e das custas, nomeadamente D-L n.º 387-
-B/87, de 29/12, e Código das custas Judiciais, abrangem, ou não, a obtenção gratuita de cópias ou certidões dos autos ou de partes deles. É que qualquer leitura desses textos legais contrária àquele dispositivo constitucional terá que haver-se por sua violação, o que a tornará (à leitura), ferida de inconstitucionalidade.' E as alegações concluem:
'(...) f) Assim, a decisão sob recurso está ferida de inconstitucionalidade, pois que viola o normativo transcrito na antecedente alínea d); g) E os textos ordinários, que regulamentam as questões do apoio judiciário e das custas, nomeadamente, o D-L n.º 387-B/87 e o Código das Custas Judiciais, não comportam leituras contrárias àquele mesmo normativo, pois que tais leituras, elas mesmas, são inconstitucionais; h) Haverá, então, que dar provimento ao recurso, reputando-se por inconstitucional a decisão que excluiu do apoio judiciário concedido ao recorrente o custo das cópias (certidão) que requereu, isentando-o do pagamento da reclamada quantia de 400.00$00.'
3. Nas contra-alegações do Ministério Público, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu assim:
'Não deve conhecer-se do objecto do recurso, por o recorrente imputar a inconstitucionalidade à decisão judicial em si mesma e não a qualquer norma jurídica.'
4. Notificado para responder à questão prévia relativa ao não conhecimento do recurso, veio o recorrente responder, reconhecendo que deveria ter sido mais preciso e rigoroso nas expressões que usou para concretizar o objecto do recurso. Salientou, todavia, que, em face dos textos anteriores e do requerimento de interposição do recurso,
'é patente que o que o recorrente pretende é impugnar a decisão sob recurso, por entender que ela assenta na interpretação contrária ao artigo 20º, n.º 1 da Constituição da República de diversas normas do D-L n.º 387-B/87, de 29/12.' Conclui, assim, que
'haverá que fazer uma leitura conjugada do requerimento de interposição do recurso, da alegação e suas conclusões, particularmente da conclusão g), e daí concluir que o recorrente pretende a revogação da decisão recorrida pela circunstância de ela assentar numa leitura inconstitucional do artigo 15º do D-L n.º 387-B/87, de 29/11, assim violando o disposto no n.º 1 do artigo 20º da Constituição da República que, conformemente ao dispositivo do n.º 1 do artigo
18º da mesma lei fundamental, é de aplicação directa.'
5. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos:
6. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Constituem requisitos específicos de admissibilidade deste tipo de recurso:
· a suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa;
· a aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como critério de decisão do caso; e
· o esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente. A primeira questão a dilucidar há-de ser, no caso, a de saber se durante o processo foi suscitada validamente uma questão de constitucionalidade, e se tal questão de constitucionalidade foi suscitada a propósito de normas (ou de uma interpretação destas) ou foi imputada à própria decisão judicial. Entendeu o Ex.mº Procurador Geral Adjunto em funções neste Tribunal que o recorrente imputou 'sempre a inconstitucionalidade à própria decisão e não a qualquer norma'. Respondeu o recorrente defendendo que de 'uma leitura conjugada do requerimento de interposição do recurso, da alegação e suas conclusões' se concluiria que 'o recorrente pretende a revogação da decisão recorrida por ela assentar numa leitura inconstitucional do artigo 15º do D-L n.º 387-B/87, de 29/11.' Ora, o que desde logo resulta de tal resposta é a sua inutilidade no que toca à exigência de suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo. Isto, porquanto a tramitação do recurso de constitucionalidade é, sem dúvida, ocasião para delimitar o objecto do recurso, mas não já para suscitar validamente uma questão de constitucionalidade normativa, em termos de o tribunal recorrido sobre ela se pronunciar.
À questão prévia suscitada pelo Ministério Público haveria, pois, que responder-se demonstrando que a suscitação da inconstitucionalidade normativa em causa ocorrera 'durante o processo', isto é, antes de interposto o recurso de constitucionalidade.
É que suscitar uma inconstitucionalidade (normativa) durante o processo não é - como, aliás, unanimemente se entende - fazê-lo antes de terminado o processo, mas sim num momento em que a questão da constitucionalidade ainda possa ser conhecida, em termos de sobre ela o tribunal a quo se vir a pronunciar. Como se decidiu no Acórdão nº 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão',
'antes de esgotado o 'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela (ver também o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Como também se salientou nos Acórdãos citados, apenas em circunstâncias excepcionais, anómalas (cfr., v.g., os Acórdãos deste Tribunal n.ºs. 94/88,
51/90, e 61/92, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de
1988, 12 de Julho de 1990 e 18 de Agosto de 1992, respectivamente) se admite diferir para o momento da interposição do recurso de constitucionalidade a definição da questão de constitucionalidade que se quer ver apreciada. Pressuposto do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - e, portanto, condição da sua admissão neste Tribunal –
é, pois, que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada perante o tribunal a quo antes de este ter esgotado o seu poder jurisdicional para a apreciar. Assim, para averiguar se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo foi cumprida, não pode ser considerada a alegação de inconstitucionalidade de uma norma constante do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Esta suscitação de inconstitucionalidade já não se afigura atempada.
7. Ora, será que, no presente caso, foi devidamente suscitada, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro impugnadas no recurso para o Tribunal Constitucional, designadamente do artigo 15º desse diploma, interpretado no sentido de não serem abrangidas no apoio judiciário quaisquer despesas de gastos com papel ou cópias em que o arguido tenha que incorrer? Sustenta o recorrente - no requerimento de interposição de recurso, primeiro, e na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, depois - que a inconstitucionalidade da referida interpretação normativa foi 'suscitada na MOTIVAÇÃO de RECURSO da decisão de 1ª Instância, conforme se vê, nomeadamente, da conclusão g).'. Não se pode, todavia, concordar com esta afirmação, como logo resulta da leitura da referida motivação de recurso e da aludida conclusão, supra transcrita.
É que não é verdade que reclamar uma interpretação 'no seguimento do disposto' na Constituição seja o mesmo que pretender que toda e qualquer interpretação que não venha no 'seguimento do disposto' na Constituição seja inconstitucional. O que resulta da motivação de recurso do recorrente, apresentada ao Tribunal da Relação, é que este invocava, como argumento favorável à interpretação que propugnava para o artigo 15º do Decreto-Lei n.º 387/87, além de outras disposições do mesmo diploma, também o 'disposto nos artigos 20º, n.º 1, da C.R.P. (e 18º, n.ºs 1 e 2 [...])'. Todavia, defender uma certa interpretação como mais constitucionalmente conforme – ou mais próxima da Constituição – não implica imputar inconstitucionalidade a uma outra interpretação, ainda que, porventura, menos próxima da letra ou do espírito dos imperativos constitucionais. E fazê-lo – impugnar a constitucionalidade de tal interpretação
– era ónus do recorrente, porquanto assim não fazendo não poderia assegurar que o Tribunal de recurso haveria de se pronunciar, expressa ou implicitamente, sobre uma questão de constitucionalidade, de forma a preencher o requisito do recurso de constitucionalidade intentado ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Não se pode, pois, afirmar que a questão de constitucionalidade da norma posta em causa, com a interpretação agora impugnada, tenha sido suscitada 'durante o processo', perante o tribunal recorrido em termos de este a dever apreciar e de poder delimitar o sentido dessa norma cuja inconstitucionalidade é questionado. Pode, aliás, considerar-se sintomático desta omissão que não se faça qualquer referência à questão de constitucionalidade na parte decisória do acórdão da Relação de Lisboa recorrido.
É duvidoso que, se o Tribunal da Relação tivesse abordado a questão, estivesse preenchido tal requisito, já que o Tribunal Constitucional não iria conhecer de uma questão nova (cfr. o Acórdão n.º 102/95, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Junho de 1995). Tal não ocorreu, porém, só à não suscitação adequada da inconstitucionalidade pelo recorrente podendo imputar-
-se tal falta de pronúncia sobre a questão de constitucionalidade normativa que agora se pretende suscitar perante o Tribunal Constitucional.
8. A mais de a questão de constitucionalidade não ter sido claramente formulada quando teria de o ser, isto é, durante o processo, não deixa o Ministério Público de ter razão quando refere que a inconstitucionalidade suscitada perante este Tribunal, quer no requerimento de interposição do recurso, quer nas alegações, foi imputada 'à decisão judicial em si mesma e não a qualquer norma jurídica'. Ora, como se afirmava no Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989):
'[...]este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.'
(ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 178/95 - publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos) Ou, como se pode ler no Acórdão n.º 269/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994):
'Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (..) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.'. Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do Direito - concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais - mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996).
É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. Esta tem, porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação, e não de uma decisão judicial – o que no caso sub iudicio não se verificou. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não tomar conhecimento do recurso e condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida