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Proc. nº 448/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. (----------, na língua oficial chinesa) que também utilizava o
nome de -----------, cidadão chinês, foi detido em 15 de Abril de 1994 em Macau,
quando desembarcava no porto deste Território vindo de Hong-Kong, a pedido das
autoridades policiais da República Popular da China, que pretendiam a sua
extradição, para ser julgado por crime de furto de automóveis em grande escala.
Por decisão do Presidente do Tribunal Superior de Justiça de Macau, proferida em
16 de Abril de 1994, foi mantida a detenção do referido cidadão, sem admissão de
caução.
Entretanto a República Popular da China pediu a extradição do detido
para 'investigação e definição da responsabilidade criminal' - ou seja, para
procedimento criminal - com relação à prática, em comparticipação, do furto
habitual de veículos (38 viaturas), crime previsto e punido pelo art. 152º do
Código Penal chinês. O Estado requisitante comprometeu-se a não o extraditar
para terceiro país, nem a condená-lo por outros crimes, além daquele por que era
pedida a extradição. O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês comunicou
ainda à Embaixada de Portugal em Pequim, ao transmitir o pedido de extradição, o
compromisso daquela República de não condenar o extraditando a pena de morte ou
de prisão perpétua.
O extraditando opôs-se ao pedido de extradição, suscitando a questão da
inconstitucionalidade da alínea a) do art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 437/75,
de 16 de Agosto, diploma aplicável no Território em matéria de extradição, por
violação do art. 33º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, aplicável
por força do art. 2º do Estatuto Orgânico de Macau (a fls. 114 e segs. dos
autos).
Por acórdão de 8 de Julho de 1994, foi autorizada a extradição pelo
Tribunal Superior de Justiça de Macau, tendo ocorrido mudança de relator, por
ter ficado vencido o primitivo (a fls. 321 a 349 vº dos autos).
O extraditando recorreu desta decisão para o Tribunal Pleno, nos
termos do art. 14º, nº 1, alínea g), da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto, tendo o
mesmo sido admitido.
Nas respectivas alegações, continuou o recorrente a sustentar a
inconstitucionalidade das normas dos arts. 4º, nº 1, alínea a), e 21º alínea c),
do Decreto-Lei nº 437/75. O Ministério Público propugnou pelo improvimento do
recurso.
Por acórdão de 28 de Setembro de 1994, foi negado provimento a este
recurso, tendo igualmente ocorrido mudança de relator e havendo dois votos de
vencido. Pode ler-se no acórdão recorrido:
'1. Regime legal da extradição em Macau.
No território de Macau, a extradição é regulada pelo Decreto-Lei
nº 437/75, de 16 de Agosto (não tendo entrado em vigor o Decreto-Lei nº 43/91,
de 22 de Janeiro da República) [...].
2. Pena de morte e promessa de substituição.
2.1. Segundo o Estado requerente, o extraditando teria cometido
um crime da previsão do artigo 152º do Código Penal da República Popular da
China, na redacção da 22ª Sessão do Comité Permanente do Congresso Nacional da
R.P. da China, de 8 de Março de 1982 [...].
A 'Decisão do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular
relativa à punição severa de crimes graves de sabotagem económica', aprovada em
8 de Março de 1982, determinou:
'1) Alteração de alguns artigos do Código Penal e normas complementares.
1) Em relação[...] ao crime de furto previsto no artigo 152º [...],
as penas são alteradas ou complementadas como segue:
Quando as circunstâncias forem especialmente graves, será condenado
a pena de prisão superior a 10 anos, pena de prisão perpétua ou pena de morte,
podendo, cumulativamente, ser-lhe aplicada a pena de confisco de bens.'
2.2. O Decreto-Lei nº 437/75 não contém uma proibição absoluta de extradição
quando o crime for punível com a pena de morte, dispondo, apenas, que, nesse
caso e não havendo «garantia da sua substituição», a extradição «pode ser
negada» (artigo 4º, nº 1, alínea a)).
Este preceito foi, no segmento que refere «pode ser negada»
inconstitucionalizado pelo nº 3 do artigo 33º da Constituição da República que
dispõe a não extradição «por crimes a que corresponda pena de morte» segundo o
direito do Estado requisitante.
Mas irreleva a sua análise na situação em apreço dado que não tem
que ser - nem será - aqui aplicado, expressa ou implicitamente, por se aplicar
directamente a norma constitucional.
É que, como se vai demonstrar, aos crimes dos autos não é
aplicável a pena de morte.
Irrelevante, outrossim, a apreciação de constitucionalidade do
artigo 21º, alínea c) do mesmo diploma, norma processual meramente instrutória,
sem quaisquer reflexos nas garantias do requerido, e que deve ser interpretada
no sentido de se lograr o conhecimento do direito do Estado requerente, na
formulação do pedido de extradição [...].
Assumindo a República Popular da China (RPC) a promessa de não
aplicar a pena de morte nem a pena de prisão perpétua a um extraditando
indiciado pela prática de um crime de homicídio voluntário, não há qualquer
obstáculo à sua extradição, por o princípio da legalidade da pena abranger
aquela promessa, o que fez reduzir a reacção criminal ao máximo de 15 anos de
prisão.
Isto é, entende-se não fazer qualquer sentido recusar a entrega
do agente do crime a pretexto de o ilícito ser abstractamente, e apenas no
diploma penal geral, punível com pena de morte quando está, de antemão,
adquirido que tal pena não será aplicada, por o direito do País requerente já
não a admitir naquele caso concreto [...].
Não há, em consequência, que conhecer da bondade Constitucional
do citado artigo 4º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 437/75, uma vez que só se
equacionaria a aplicação ao caso vertente se o direito da R.P. China punisse o
crime com pena de morte.
Mas se, como acontece, «o direito» (a que se reporta a norma do
texto fundamental) não prevê a pena de morte para este caso, aquele artigo 4º,
nº 1, a) deixa de relevar.
E nem se invoque a intempestividade de valoração da promessa pois
que a retroactividade do regime penal incriminador mais favorável é princípio
constitucional e também de ordem pública [...].
3. Conclusões
Resta concluir para afirmar:
a) A proibição de extraditar constante do nº 3 do artigo 33º da Constituição da
República, reporta-se ao direito do Estado requerente que não, apenas, à letra
da lei penal incriminadora.
Ora,
b) A promessa [de] não aplicação de pena de morte satisfaz o imperativo
constitucional citado, por se tratar de um acto jurídico unilateral que é fonte
de direito internacional público, inserindo-se no princípio da legalidade da
pena.
Daí que,
O crime por que se solicita a extradição não é punível com a pena de
morte ou com prisão perpétua, segundo o direito do Estado requisitante.
d) Não há que lançar mão do artigo 4º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 437/75
(inconstitucionalizado no segmento que refere «pode ser negado»), pois que o seu
escopo era facultar a extradição mesmo que o direito do requerente cominasse a
pena de morte para o crime, o que, como se demonstrou, não acontece aqui.
e) Aplicando directamente o artigo 33º da Constituição da República, e afirmado
o primado de direito internacional, a existência de promessa de não aplicação de
pena de morte, viabiliza a extradição por, como acto jurídico unilateral de um
sujeito de Direito Internacional, alterar a norma penal incriminadora em sentido
mais favorável ao acusado e excluir a pena capital do direito aplicável ao caso
«sub judice».
f) A norma adjectiva do artigo 21º, alínea c) do Decreto-Lei nº 437/75,
destina-se apenas a possibilitar a averiguação do direito de Estado requerente'.
(a fls. 389 a 399 dos autos)
Notificado deste acórdão, veio o extraditando dele interpor recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do
art. 70º da respectiva lei orgânica (requerimento de fls. 413-414), indicando
que fora aplicada implicitamente pelo acórdão recorrido a norma do art. 4º, nº
1, alínea a), do Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto, por violação do art.
33º, nº 3, da Constituição. O recurso foi admitido por despacho de fls. 415.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional
Apresentaram alegações o recorrente e o Ministério Público.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1ª. O Acórdão recorrido fez aplicação da norma contida no art.
4º., nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto, ao autorizar a
extradição do recorrente com base na garantia de substituição da pena de morte
oferecida pelo Estado requisitante;
2ª. Tal norma é insusceptível de aplicação por ter sido
inconstitucionalizada pelo art. 33º., nº 3 da Constituição da República
Portuguesa, que não pode ter outra interpretação que não seja a de proibir a
extradição quando o crime imputado ao extraditando for abstractamente punido com
pena de morte;
3ª. A norma adjectiva do art. 21º, alínea c) do Decreto-Lei nº
437/75, deixa de ter aplicação face à inconstitucionalidade da norma substantiva
do art. 4º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma, mostrando-se, assim, tacitamente
derrogada pelo art. 33º, nº 3 da Constituição da República;
4ª. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o art.
290º, nº 2 da C.R.P., na medida em que fez aplicação de direito ordinário
anterior à entrada em vigor do Texto Fundamental contrário à Constituição e aos
princípios nela consignados, assim como o art. 207º da C.R.P. que determina que
nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam a Constituição ou os seus princípios;
5ª Violou, ainda, o art. 206º da C.R.P. que prescreve que os
tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei e o artº 18º da C.R.P.
segundo o qual os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos liberdades
e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas;
6ª Violou, finalmente, o art. 24º, nº 1, da C.R.P. que consagra o
princípio da inviolabilidade da vida humana, assim como o artº. 33º, nº 3 do
Texto Fundamental que proíbe a extradição, quando o crime pelo qual é pedida a
providência for punido pelo direito do Estado requisitante com a pena de morte'.
(a fls. 450-451 dos autos).
O Ministério Público preconizou igualmente a concessão de provimento no
recurso, concluindo do seguinte modo:
'1. O Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto, sendo anterior à
Constituição da República aprovada em Abril de 1976, terá, para manter a sua
validade, de se conformar materialmente com esta ou com os princípios nela
consignados (artigo 293º, nº 1, da versão originária e artigo 290º, nº 2 da
versão actual);
2. A norma constante do artigo 4º, nº 1, alínea a), daquele
diploma, atribuindo carácter facultativo à recusa de extradição no caso de o
crime ser punível no Estado requerente com pena de morte, e admitindo garantias
de substituição desta, é materialmente incompatível, quanto a esse tipo de pena,
com o artigo 23º, nº 3 da versão originária da Constituição (artigo 33º, nº 3 da
versão actual), cujo comando exclui a possibilidade de extradição nesse caso,
mesmo que oferecidas garantias de substituição;
3. Deverá, assim, julgar-se parcialmente inconstitucional e,
consequentemente, caducada, a partir da entrada em vigor da Constituição de
1976, determinando-se a aplicabilidade directa, por respeitar a direitos,
liberdades e garantias, da mencionada norma constitucional (artigo 18º, nº 1 da
Constituição).' (a fls. 482 e 483)
II
4. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade de
fls. 413 e 414, o ora recorrente indica como objecto do recurso 'a norma do art.
4º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto', invocando que a
mesma foi 'aplicada implicitamente no acórdão recorrido'.
Tendo em atenção o disposto no art. 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal
Constitucional, tem de concluir-se que ficou fixado o objecto do recurso, não
podendo o mesmo ser ampliado nas alegações, de forma a abranger outras normas.
É, assim, irrelevante que o recorrente tenha também sustentado, nas suas
alegações, a inconstitucionalidade do art. 21º, alínea c), do Decreto-Lei nº
437/75. Razão tem, pois, o Ministério Público quando sustenta que esta última
norma não pode ter-se por incluída no objecto do recurso (nas contra-alegações,
invoca-se o Acórdão nº 235/90, publicado in Diário da República, II Série, nº
18, de 22 de Janeiro de 1991).
O objecto do recurso confina-se, pois, à primeira daquelas normas.
5. No acórdão recorrido afirma-se que não foi aplicada sequer
implicitamente a norma do art. 4º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 437/75.
A confirmar-se esse entendimento, faltaria um pressuposto processual
indispensável para conhecimento do objecto do recurso.
Todavia, em duas reclamações interpostas ao abrigo do nº 4 do art. 76º da
Lei do Tribunal Constitucional, qualquer das secções deste órgão jurisdicional
decidiu, com trânsito em julgado, em situações inteiramente idênticas, em que
interviera igualmente o Plenário do Tribunal Superior de Justiça de Macau, que a
referida norma havia sido aplicada pelo tribunal recorrido (Acórdãos nºs 481/94
e 637/94, publicados no Diário da República, II S., nºs 288 e 27, de 15 de
Dezembro de 1994 e de 1 de Fevereiro de 1995, respectivamente).
Impõe-se, por isso, reafirmar a mesma solução, remetendo-se para as
fundamentações destes dois acórdãos.
6. Deve, por isso, conhecer-se do objecto do recurso.
Acontece que, entretanto, foi proferido em 4 de Julho de 1995, o Acórdão
nº 417/95, pelo plenário do Tribunal Constitucional, no processo nº 374/94 (em
que é recorrente B. e recorrido o Ministério Público), no qual foi julgada
inconstitucional embora com votos de vencido, a norma da alínea a) do nº 1 do
art. 4º do Decreto-Lei nº 437/75, na parte em que permite a extradição por
crimes puníveis no Estado requerente com a pena de morte, havendo garantia da
sua substituição.
Tal recurso foi julgado com intervenção do plenário, ao abrigo do
disposto no nº 2 do art. 79º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Foi determinada pelo ora relator a junção de cópia desse acórdão aos
presentes autos.
7. Há, assim, que proferir decisão de idêntico teor, em virtude do
julgamento de inconstitucionalidade da identificada norma, remetendo-se
integralmente para a fundamentação daquele Acórdão nº 417/95.
III
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal
Constitucional conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma
da alínea a) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 437/75, de 16 de Agosto, na
parte em que permite a extradição por crimes puníveis no Estado requerente com a
pena de morte, havendo garantia da sua substituição, por violação do art. 33º,
nº 3, da Constituição, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, para ser
reformado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Julho de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida (vencido)
José Manuel Cardoso da Costa