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Proc. 536/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. T. S., identificada nos autos, interpôs, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, recurso de anulação do despacho da Direcção dos Serviços da Caixa Geral de Aposentações que lhe indeferiu um pedido de atribuição de pensão de aposentação.
O fundamento invocado pela Caixa Geral de Aposentações para o indeferimento da pretensão da recorrente foi o de que, não sendo ela, à data do pedido, nacional portuguesa, não teria direito a pensão de aposentação atribuída pelo Estado português. O requisito da nacionalidade portuguesa seria, no entendimento da Caixa Geral de Aposentações, essencial à atribuição da pensão, de acordo com o disposto no artigo 82 º, nº 1, alínea d), do Estatuto da Aposentação e no artigo 13º da Constituição.
Na perspectiva da recorrente, este despacho enferma de vício de violação de lei, porquanto o Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro, e demais legislação complementar, aplicável ao caso em análise, não faz depender a atribuição da pensão de aposentação do vínculo de nacionalidade portuguesa. Do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 362/78 extraem-se três requisitos para a atribuição do referido direito:
tratar-se de um funcionário ou agente da Administração das ex-províncias ultramarinas (a recorrente era Professora no Posto Escolar de S. João de Santarém, em Guadalupe - S. Tomé e Princípe);
que tenha prestado pelo menos cinco anos de serviço (prestou serviço entre 1968 e 1975);
que tenha efectuado descontos para efeitos de aposentação (fê-lo efectivamente).
Ora, reunindo a recorrente essas condições, a interpretação que a Caixa Geral de Aposentações faz da disposição citada contraria o princípio da igualdade, bem como o direito à segurança social, ambos com assento constitucional (artigos 13º e 63º da Constituição). Razão por que, na sua
óptica, deveria ser anulado o despacho recorrido.
Em alegações, a recorrente aditou ainda um outro argumento para reforçar a sua posição: a violação do direito à segurança social, assegurado pela Constituição Portuguesa e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Em contra-alegações, a Caixa Geral de Aposentações afirmou que, a vingar a tese da recorrente, afrontar-se-ia o princípio da igualdade:
'3. Na verdade, quanto aos aspectos que não se encontram directamente regulados no Dec. Lei nº 362/78, aplicam-se as regras gerais da aposentação de funcionários públicos, incluindo o disposto no art. 82º do Estatuto da Aposentação, sob pena de ofensa do princípio da igualdade, consagrado no art.
13º da CRP, quanto ao universo daqueles destinatários.
4. Efectivamente, este requisito genérico da posse da nacionalidade portuguesa, para efeitos de concessão de pensão de aposentação, constitui um pressuposto da disposição da alínea d) do nº 1 do art. 82º do Estatuto da Aposentação, da qual resulta que a situação de aposentação se extingue, entre outros, no caso de perda da nacionalidade portuguesa, quando esta for exigida para o exercício do cargo pelo qual o interessado foi aposentado.
5. Na verdade, embora o Estatuto da Aposentação não contenha qualquer disposição em que se estabeleça, expressamente, a exigência da nacionalidade portuguesa como requisito da concessão da aposentação, ficaria sem sentido a referida disposição da alínea d) do nº 1 do art. 82º se não existisse tal exigência, na medida em que seria absurdo que a perda da nacionalidade determinasse a extinção da pensão e a falta da nacionalidade, no momento da aposentação, não impedisse a atribuição da pensão.'
2. O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa anulou o acto recorrido, inserindo-se, de resto, numa corrente jurisprudencial amplamente confirmada ao longo dos anos.
3. A Caixa Geral de Aposentações recorreu então para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas suas conclusões, defendeu que:
'10ª. [...] se também é certo que um dos requisitos exigidos para ingressar no quadro geral de adidos foi a posse da nacionalidade portuguesa, a verdade é que, por várias razões, muitos dos funcionários e agentes da ex-administração ultramarina que mantiveram a nacionalidade portuguesa não conseguiram ingressar nesse quadro. Designadamente por se terem mantido ao serviço nos novos Estados e não terem ingressado dentro do prazo estabelecido no artigo 21º do D.L. nº
293/76, de 24 de Abril, prorrogado pelo D.L. nº 355/77, de 31 de Agosto, ou por se terem refugiado noutros países estrangeiros e aí terem permanecido.
11ª. Mas, sobretudo porque o Estado português, por forma a enquadrar a situação daqueles funcionários e agentes que não mantiveram a nacionalidade portuguesa apesar de terem exercido funções na antiga administração ultramarina, entendeu privilegiar a via da conclusão de acordos bilaterais, pelo que a adopção posterior de um normativo que pretendesse genericamente regular esta situação não faria sentindo (cf. Decreto nº 550-N/76, de 12 de Julho ? que aprovou o acordo entre Portugal e S. Tomé e Príncipe e Decreto-Lei nº 524-M/76, de 5 de Julho ? que aprovou o acordo entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde sobre funcionários públicos).
12ª. Ora, o caso dos Autos reporta-se, exactamente, a uma cidadã santomense, pelo que, sendo a recorrente de S. Tomé e Príncipe, a sua situação é abrangida pelo art. 1º do Acordo assinado em 23 de Março de 1976 entre a República Portuguesa e a República de S. Tomé e Príncipe sobre Funcionários Públicos, aprovado pelo Decreto nº 550-N/76, de 12 de Julho, nos termos do qual a responsabilidade pela aposentação de funcionários públicos que prestaram serviço em S. Tomé e Príncipe, caberá ao Estado Português, relativamente aos funcionários que conservem a nacionalidade portuguesa; ao Estado de S. Tomé e Príncipe, relativamente aos cidadãos santomenses.
13ª. Assim, na interpretação que lhe foi dada pela douta Sentença recorrida, o art. 1º do DL 362/78 é inconstitucional, por violar os arts 8º, 13º e 15º da CRP, pelo que jamais poderia ser concedida a aposentação com base em tal normativo'.
4. Por acórdão de 1 de Julho de 1997, o Supremo Tribunal Administrativo reiterou a fundamentação da sentença recorrida, quanto à excepcionalidade do regime instituído pelo Decreto-Lei nº 362/78 e, por conseguinte, quanto à desnecessidade de fazer prova da nacionalidade portuguesa para obter a pensão de reforma. A ratio do Decreto-Lei nº 362/78 seria precisamente a de conferir protecção às situações de perda de nacionalidade por parte de cidadãos das ex--colónias que, por esse facto, veriam afastado o seu direito a auferir uma pensão de aposentação por parte do Estado português. Não há, pois, qualquer violação do princípio da igualdade. Relativamente à questão da compatibilidade entre as normas do Acordo celebrado entre Portugal e S. Tomé e Príncipe e o Decreto-Lei nº 362/78, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se nos seguintes termos:
'Como último argumento em defesa da sua tese, sendo a recorrente cidadã santomense, está abrangida pelo acordo celebrado entre Portugal e a República de S. Tomé, aprovado para vigorar na ordem jurídica portuguesa pelo Decreto nº
550-N/76, de 12 de Julho [por lapso, no texto identificado como Decreto-Lei], sobre funcionários públicos, nos termos do qual os encargos resultantes da aposentação dos funcionários públicos que prestaram serviço em S. Tomé, serão suportados pelo Estado Português, relativamente a funcionários que conservem a nacionalidade portuguesa e pelo Estado de S. Tomé e Príncipe, relativamente aos que hajam adquirido a nacionalidade santomense, daqui concluindo que, estando a situação regulada por acordo bilateral, não faria sentido a adopção de um normativo que pretendesse genericamente regular a mesma situação. Assim, o artigo 1º do DL 362/78 violaria ainda o artº 8º da Constituição. Mas também esta argumentação não procede.
É que a regulamentação do DL 362/78, nomeadamente o seu artº 1º, enquanto estende a todos os funcionários das ex-colónias o regime de aposentação nele consignado, independentemente da sua actual nacionalidade, não desvincula, como diz a ora recorrida, o Estado Português de qualquer compromisso assumido em relação à Outra Parte o Acordo recebido na Ordem Interna pelo Dec. nº 550-N/76. Como se diz no Ac. de 11.07.96, rec. 40095 [...] «embora, sendo certo que o direito internacional convencional, desde que regularmente aprovado e ratificado, conforme o caso, e publicado no DR, passa a constituir direito interno (artº 8º, nº 2 da CRP), duvidosa é já a questão de saber se estas normas ocupam uma posição paritária com a lei ordinária interna ou têm valor superior, diferendum que a Constituição não resolve (Cfr. CRP Anot. por Gomes Canotilho e Vital Moreira, pág. 84 e 33.)». No caso em apreço, a regulamentação introduzida pelo DL 362/78 e legislação complementar, na medida em que seja incompatível com a regulamentação do Decreto nº 550-N/76, «quis pôr em crise aquela convenção, pretendeu retirar-lhe toda a força vinculativa interna e externa.» Deste modo, quer se confira identidade de valor àqueles diplomas, ou hegemonia ao direito internacional convencional, há que reconhecer, no primeiro caso, a revogação do acordo por incompatibilidade com o DL 362/78 (artº 7º, nº 2 do C. Civil) e no segundo, a cessação da sua vigência por desvinculação externa da república de S. Tomé e Príncipe, ao assumir o Estado português todas as obrigações.'
O Supremo Tribunal Administrativo decidiu, assim, no sentido da improcedência do recurso.
5. A Caixa Geral de Aposentações, inconformada, interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b) e i), in fine, do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade do artigo 1º do Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro, por alegada desconformidade com os artigos 8º, nº 2, 13º e 15º, nº 2, todos da Constituição. II
6. O presente recurso vem assim interposto tanto com fundamento na alínea b) como com fundamento na alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7. O recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea i), da Lei do Tribunal Constitucional é o recurso que cabe de decisões que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional e de decisões que apliquem norma em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional sobre a compatibilidade de tal norma com uma convenção internacional.
Ora, o acórdão recorrido (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Julho de 1997) não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional, assim como não fez aplicação de uma norma em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional sobre a compatibilidade dessa norma com uma convenção internacional.
Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo fez aplicação da norma contida no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro, no sentido de não exigir a nacionalidade portuguesa para a concessão de pensão, revogando a sentença recorrida e anulando o despacho da Caixa Geral de Aposentações, que indeferiu o pedido de pensão de aposentação apresentado por T. S.. Não recusou a aplicação de qualquer norma, nem aplicou norma em sentido diferente do adoptado pelo Tribunal Constitucional.
Não sendo o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Julho de 1997 uma decisão recorrível nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea i), da Lei do Tribunal Constitucional, há que concluir que o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto de tal recurso.
8. A recorrente fundamenta ainda o seu recurso na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando que a norma contida no artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro, é inconstitucional, por violação do preceituado nos artigos 8º, nº 2, 13º, e 15º, nº 2, da Constituição.
8.1. Relativamente à violação do artigo 8º, nº 2, da Constituição, após a entrada em vigor da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, que aditou a alínea i) ao nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, superou-se a divergência entre a 1ª e a 2ª secções sobre a competência do Tribunal Constitucional para apreciar a conformidade ao direito internacional convencional de direito interno constante de acto legislativo (cfr. acórdão nº 405/93, in Diário da República, II, de 19 de Janeiro de 1994, p. 510 ss).
Com efeito, a actual redacção da Lei do Tribunal Constitucional estatui que a questão relacionada com a violação de uma convenção internacional por uma norma de direito interno é sindicável pelo Tribunal Constitucional em determinados casos a que se refere a alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, excluindo os casos a que se refere a alínea b) do mesmo artigo. Ora, como se referiu, o caso dos autos não só não consubstancia uma dessas situações, como também está subtraído à previsão da alínea b) do artigo 70º.
O Tribunal Constitucional não apreciará, portanto, a questão de inconstitucionalidade do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 362/78, de 28 de Novembro, por violação do artigo 8º, nº 2, da Constituição.
8.2. Cabe agora averiguar da conformidade do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 362/78 com os artigos 13º e 15º, nº 2, da Constituição. O Tribunal Constitucional tem mantido, neste ponto, uma jurisprudência constante, desde o acórdão nº 354/97 (in Diário da República, II, de 18 de Junho de 1997, p. 6985 ss).
Quanto ao confronto com o artigo 15º, nº 2, da Constituição, o argumento invocado pela Caixa não pode proceder, uma vez que, e como foi ressalvado no acórdão recorrido, à data do seu ingresso na função pública, o funcionário tinha nacionalidade portuguesa ? o que o vinculava desde logo a contribuir para a Caixa Geral de Aposentações. Não há pois, aqui, qualquer absurdo, como pretende a Caixa Geral de Aposentações. Antes pelo contrário: absurdo seria que um trabalhador que toda a vida descontou tendo em vista a obtenção de uma pensão de reforma visse esse direito coarctado no final da sua prestação de trabalho.
No que diz respeito à invocada violação do princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional respondeu de forma inequívoca à ora recorrente no mencionado acórdão nº 354/97. Os trabalhadores das ex-colónias e daí naturais que exerceram cargos na Administração Ultramarina só puderam conservar a nacionalidade portuguesa em determinados casos, ao passo que os cidadãos portugueses que aí tenham exercido funções só por vontade própria (por renúncia) perderam a sua nacionalidade portuguesa. O que os coloca em situações diametralmente opostas.
Como se escreveu no citado acórdão nº 354/97:
'Em direitas contas, o que o legislador fez foi abrir aos servidores da Administração Pública dos ex-territórios portugueses do ultramar que reuniam as condições para a aposentação mas que, por força das circunstâncias em que ocorreu o processo de descolonização, se viram privados do direito à respectiva pensão e forçados a sair das suas terras e vir para Portugal, a possibilidade de a receber. E com isso, o que se procurou foi colocá-los em situação idêntica à daqueles que, tendo exercido funções semelhantes às suas, a mudança histórica não privou desse direito.
É uma medida fundada em razões de justiça. Não uma decisão arbitrária, nem discriminatória. Por isso mesmo, ela não pode violar a igualdade.'
O Tribunal Constitucional pronunciou-se assim no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 362/78, de
28 de Novembro. Esta jurisprudência foi reiterada, entre outros, nos acórdãos nºs 392/97 (in Diário da República, II, de 14 de Outubro de 1997, p. 12606 ss), nº 405/97, nº 48/98, nº 55/98 e nº 159/98 (ainda inéditos). A essa jurisprudência se adere inteiramente.
III
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea i) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional; b) Não apreciar a questão relacionada com a pretensa inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação do artigo 8º, nº 2, da Constituição; c) Não julgar inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
362/78, de 28 de Novembro, por considerar não haver violação dos artigos 13º e
15º, nº 2, da Constituição; d) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Artur Mauricio Luis Nunes de Almeida