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Processo n.º 789/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Monchique, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 19 de julho de 2011.
2. Para o que agora releva lê-se na decisão recorrida o seguinte:
«Promove o Ministério Público a condenação do arguido A. como civil e solidariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que a sociedade B., sua representada, foi condenada, porquanto esta não dispõe de bens penhoráveis no seu património. Cumpre apreciar e decidir.
Estipula o art. 8º/1 do R.G.I.T., nas suas alíneas a) e b) que “os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
(…)
Haverá, previamente a qualquer decisão, de apreciar a constitucionalidade da aludida norma de responsabilização subsidiária, à luz dos recentes acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional relativamente à reversão efetuada nos processos de contraordenação de natureza fiscal e nas execuções a eles conexas.
A respeito do art. 7º do RJIFNA e, posteriormente do art. 8º do RGIT, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, nos Ac. 481/2010 de 09.12.2010, 26/2011 de 12.01 e 24/2011 de 12.01 e a Decisão sumária 56/2011 de 25.01 pela respetiva inconstitucionalidade “na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal, efetivada através do mecanismo da reversão da execução fiscal”.
Em síntese, vem sendo entendimento do Tribunal Constitucional que a responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores das pessoas coletivas pelas coimas aplicadas a estas entidades, por consubstanciar uma responsabilização pelo pagamento de uma dívida de outrem, estabelecida única e exclusivamente em função do responsável primário, ou seja, da sociedade e desconsiderando, em absoluto, a culpa imputável aos “garantes”, consagra uma efetiva transmissão da responsabilidade contraordenacional e uma pena fixa e, consequentemente, viola os princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Assim decidiu, nomeadamente, o citado Ac. 26/2011, onde se salientou, designadamente que:
(…)
Ora, os argumentos aduzidos a respeito da responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores pelas coimas aplicadas às pessoas coletivas, que se dão por integralmente reproduzidos, saem, necessária e inevitavelmente, reforçados no que concerne à sua responsabilidade perante as multas aplicadas no âmbito de um processo de natureza penal.
Pelo exposto e subscrevendo as considerações explanadas, decide-se não aplicar a norma contida na alínea a) do art. 8º do RGIT ao caso dos autos, com fundamento na respetiva inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e proporcionalidade».
3. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para apreciação da constitucionalidade da norma contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
4. O recorrente e o recorrido foram notificados para produzir alegações.
O Ministério Público alegou, concluindo o seguinte:
«1. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes consagrada no artigo 8º, nº 1, alínea a), do RGIT é de cariz ressarcitório e funda-se numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva.
2. Assim, aquela norma, na parte em que estabelece a responsabilidade subsidiária dos gerentes pelas multas aplicadas a pessoa coletiva em processo crime, pela prática de crime, não é inconstitucional, não violando os princípios da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da intransmissibilidade das penas.
3. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir
II. Fundamentação
1. A norma que é objeto do presente recurso é a da alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, na parte em que estatui que os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis pelas multas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento.
2. A decisão recorrida recusou a aplicação desta norma com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
O Tribunal Constitucional já apreciou, em acórdão tirado em plenário, a questão de saber se é inconstitucional a norma que estabelece a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal (Acórdão n.º 561/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Decidiu não julgar inconstitucional tal norma, adotando o entendimento dos Acórdãos n.ºs 129/2009, 150/2009 e 234/2009 (disponíveis no mesmo sítio), lendo-se no primeiro o seguinte:
«3. O tribunal recorrido considerou, na linha de anterior jurisprudência, que a atribuição de responsabilidade subsidiária a administradores, gerentes e outras pessoas com funções de administração em sociedades, por dívida resultante de não pagamento de coima fiscal em que a pessoa coletiva tenha sido condenada, com a consequente reversão da respetiva execução fiscal, em consequência do que dispõe, nessa matéria o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, é suscetível de violar o princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º,n.º 3, da Constituição da República, e, bem assim, o princípio da presunção de inocência do arguido, que decorre do artigo 32.º, n.º 2, princípios que, nesses termos, entende serem aplicáveis mesmo no domínio do ilícito contraordenacional.
(…)
O que a norma, por conseguinte, prevê é uma forma de responsabilidade civil, que recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que tenha sido condenada a sociedade ou pessoa coletiva, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa.
Note-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de emitir um juízo de não inconstitucionalidade em relação a um idêntico efeito de responsabilidade subsidiária que resulta da norma do artigo 112º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, que igualmente prevê que os direitos e obrigações das sociedades extintas por incorporação ou por fusão se transmitam para a sociedade incorporante ou a nova sociedade.
Esse juízo assentou, no entanto, essencialmente, no entendimento de que, nesses casos, só formalmente se verifica uma transmissão, visto que não há lugar à liquidação ou dissolução das sociedades incorporadas, antes se regista o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta, o que conduz à inaplicabilidade, nessa situação, da proibição da transmissibilidade das penas constante do artigo 30º, n.º 3, ainda que estejam em causa obrigações decorrentes de responsabilidade contraordenacional (cfr. os acórdãos n.ºs 153/04, de 16 de março, 160/04, de 17 de março, 161/04, de 17 de março, 200/04, de 24 de março, e 588/05, de 2 de novembro).
Alguns desses arestos não deixaram, todavia, de enquadrar a questão da intransmissibilidade das penas, em termos que mantêm plena validade para o caso dos autos.
No acórdão n.º 160/04, por exemplo, considerou-se o seguinte:
“A evolução do texto constitucional – que anteriormente previa a insusceptibilidade de transmissão de “penas” [e agora prevê que “A responsabilidade penal é insuscetível de transmissão”] – não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redação), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.
Ora, não obstante a doutrina e a jurisprudência constitucionais irem no sentido da aplicação, no domínio contraordenacional, do essencial dos princípios e normas constitucionais em matéria penal, não deixa de se admitir, como se escreveu no citado acórdão n.º 50/03, a“diferença dos princípios jurídico-constitucionais que regem a legislação penal, por um lado, e aqueles a que se submetem as contraordenações”.Diferença, esta, que cobra expressão, designadamente, na natureza administrativa (e não jurisdicional) da entidade que aplica as sanções contraordenacionais (como se decidiu no acórdão n.º 158/92, publicado no DR, II Série, de 2 de setembro de 1992) e na diferente natureza e regime de um e outro ordenamento sancionatório (cfr. v. g. acórdãos n.ºs 245/00 e 547/01, publicados, respetivamente, no DR, II Série, de 3 de novembro de 2000 e de 9 de novembro de 2001).
Nestes termos, a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstanciado numa acusação ou condenação penal, não tem de implicar, por analogia ou identidade de razão – que não existe – a intransmissibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas sem ressonância ética, de ordenação administrativa.
Nem sequer se pode, pois, a partir da referida norma, obter um padrão constitucional previsto a partir do qual se pudesse censurar o referido entendimento do artigo 112º,alínea a), do Código das Sociedades Comerciais. Não o impõe, também, o artigo 30º da Constituição, referido aos“Limites das penas e medidas de segurança”; não o impõe o artigo 32º, n.º 10, da Constituição, que estende apenas os direitos de audiência e defesa do arguido aos processos de contraordenação e a quaisquer outros processos sancionatórios; e não o impõe a lógica de tutela do arguido que justificou a jurisprudência constitucional em matérias como o princípio da legalidade, ou a aplicação da lei mais favorável (v.g., acórdãos n.ºs 227/92 e 547/01, publicados, respetivamente, no DR, II Série, de 12 de setembro de 1992 e de 15 de julho de 2001).
Mais do que verificar a desconformidade de um certo sentido da norma impugnada em relação ao parâmetro invocado, conclui-se, pois, pela inexistência do pretendido parâmetro, aplicável para o efeito pretendido”.
O referido aresto, embora centrado ainda na sobredita questão da transmissão de responsabilidade por incorporação ou fusão de sociedades, não deixa de fornecer elementos decisivos para a interpretação da norma do artigo 30º, n.º 3, da Constituição, salientando que ela não pode servir de parâmetro uniforme para a responsabilidade penal e a responsabilidade contraordenacional.
Procurando decifrar o sentido e alcance da norma, também Gomes Canotilho e Vital Moreira salientam que a insusceptibilidade da transmissão da responsabilidade penal está associada ao princípio da pessoalidade, daí resultando como principais efeitos:(a) a extinção da pena (qualquer que ela seja) e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros;(c) a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas. O que, em todo o caso, não obsta – como acrescentam os mesmos autores - à transmissibilidade de certos efeitos patrimoniais conexos das penas, como, por exemplo, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, nos termos da lei civil (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 504)).
No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contraordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa coletiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contraordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa coletiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contraordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contraordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de caráter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contraordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido -que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contraordenações».
Em termos conclusivos lê-se no Acórdão n.º 561/2011 que:
«não [se] prevê uma verdadeira transmissão, no sentido de impor a sucessão automática de uma responsabilidade contraordenacional alheia, que passa a ser imputada ao gerente ou administrador. Na verdade, a responsabilidade contraordenacional primária surge na esfera jurídica da pessoa coletiva por ato do seu gerente ou administrador, pois é de entender que os poderes de gerência ou de administração lhes permitem desenvolver a atividade necessária à não ocorrência do ato gerador daquela responsabilidade. Para além disso, para que a responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 7.º-A do RJIFNA possa ser imputada ao gerente ou administrador da pessoa coletiva, são adicionalmente necessários requisitos onde releva (sempre) a conduta do administrador ou gerente, designadamente quanto à decisão de não satisfazer o encargo resultante da aplicação da coima, e quanto à culpa na verificação da insuficiência patrimonial da pessoa coletiva».
Por outro lado, não é desrespeitado o «princípio da adequação, e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, no que toca à medida da coima, já que os montantes cujo pagamento incumbe ao gerente ou administrador correspondem, na exata medida, aos montantes não pagos por culpa destes» (Acórdão n.º 561/2011).
3. Não obstante a norma que é objeto do presente recurso prever a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às multas aplicadas a pessoas coletivas em processo penal, o entendimento que se extrai daqueles acórdãos é transponível para os presentes autos, uma vez que o Tribunal conclui pela «natureza civilística da responsabilidade em causa, ou seja, que se trata de efetivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva. O chamamento do terceiro a responder pela quantia que não foi possível obter mediante execução do património do primitivo devedor resulta de ser imputada a uma sua conduta culposa a não satisfação das “relações de crédito emergentes da aplicação de multas ou coimas” às pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados a que a sanção foi aplicada. Não é a sanção aplicada pelo ilícito contraordenacional [ilícito penal] que se transmite, mas a responsabilidade culposa pela frustração da satisfação do crédito correspondente que se efetiva contra o gerente ou administrador que, incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efetuasse o pagamento da coima [multa] em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva» (Acórdão n.º 150/2009). Pelo que, em aplicação do entendimento que se extrai dos Acórdãos mencionados, há que não julgar inconstitucional a norma que é objeto do presente recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Maio de 2012.- Maria João Antunes – Gil Galvão – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.