Imprimir acórdão
Processo nº 496/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa uma acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B., e C., pedindo a declaração de ilicitude do seu despedimento, com a consequente condenação das RR. a pagarem-lhe as remunerações, as diferenças salariais e os subsídios de alimentação.
Como nem as RR, nem o seu mandatário, compareceram na audiência de discussão de discussão e julgamento, foi proferida sentença a condená-las no pagamento da quantia de 1.340.000$00 ao Autor.
As RR recorreram da sentença para a Relação, tendo o juiz admitido o recurso como agravo. Além disso, invocaram justo impedimento
(quanto a elas próprias e ao seu advogado) de comparecerem na audiência a que faltaram. E, como o juiz entendeu não se verificar tal justo impedimento, agravaram do respectivo despacho.
A Relação, por acórdão de 15 de Novembro de 1995, negou provimento a ambos os agravos, depois de concluir que, contrariamente ao alegado pelas RR. no recurso interposto da sentença condenatória, o artigo 89º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho, não é inconstitucional.
2. É deste acórdão da Relação (de 15 de Novembro de
1995) que vem o presente recurso, interposto pelas RR. ao abrigo da alínea b) do nº 1, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do mencionado artigo 89º, nº 3, 'na interpretação que lhe foi dada pelo douto aresto em análise, por violação dos arts. 32º/5 e 20º/1 da Constituição'.
Neste Tribunal, apenas alegaram as recorrentes, que, para o que aqui importa, formularam as seguintes conclusões:
5ª. O princípio do contraditório consagrado no art. 32º/5 da CRP representa uma das garantias de defesa integrantes do princípio do Estado de Direito democrático, comum a qualquer tipo de processo [...];
6ª. O artigo 89º/3 do CPT, na interpretação que lhe foi dada pelo douto aresto recorrido, inviabiliza o direito das RR de intervir no processo e de se pronunciarem e contradizerem todos os elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, inviabilizando o 'direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo' [...];
7ª. A norma do art. 89º/3 do CPT, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido de fls. 169 e segs. dos autos é materialmente inconstitucional, por violação do art. 32º/5 da CRP [...];
8ª. A garantia da via judiciária consagrada no art. 20º/1 impõe-se, como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a todas as entidades públicas e privadas [...] e, naturalmente, também aos tribunais, sujeitos à Constituição e à lei [...];
9ª. O art. 89º/3 do CPT, na interpretação que lhe foi dada pelo douto aresto recorrido, inviabiliza o direito de acesso aos tribunais, que compreende inquestionavelmente o direito de assegurar efectivos meios de defesa [...];
10º. A interpretação do art. 89º/3 do CPT constante do douto aresto em análise derrogou ainda o direito à tutela judicial efectiva das ora recorrentes, pelo que também por este motivo foi claramente violado o art. 20º/1 da CRP [...];
11ª. A norma do art. 89º/3 do CPT, na interpretação dada pelo acórdão recorrido de fls. 169 e segs. dos autos é materialmente inconstitucional, por violação do art. 20º./1 da CRP [...].
3. Entretanto, pelo Acórdão nº 1106/96, deferiu-se o pedido formulado pelas recorrentes nas alegações relativamente ao efeito do recurso, ao qual se fixou efeito suspensivo (na Relação, tinha-se-lhe fixado efeito meramente devolutivo).
4. Dispensados os vistos, cumpre decidir se o artigo
89º, nº.3, do Código de Processo do Trabalho, tal como foi interpretado pelo acórdão recorrido, é (ou não) inconstitucional.
II. Fundamentos:
5. Identificação da norma sub iudicio:
O artigo 89º do Código de Processo do Trabalho trata das consequências resultantes da não comparência das partes na audiência de discussão e julgamento em processo sumário laboral: o nº 1 preceitua que 'o autor e o réu devem comparecer pessoalmente no dia marcado para o julgamento'; o nº.2 rege para a falta do autor; o nº.4, para a falta de ambas as partes; o nº.5 prescreve que 'o disposto nos números anteriores não impede a conciliação por intermédio dos mandatários judiciais munidos dos necessários poderes'; e o nº.3,
único que aqui está sub iudicio, regula as consequências da falta injustificada do réu.
Reza como segue o nº.3 do dito artigo 89º:
3. Se o réu faltar, não justificar a falta e não se fizer representar por mandatário judicial, é condenado no pedido, excepto se tiver provado por documento suficiente que a obrigação não existe; se apenas se fizer representar por mandatário judicial, consideram-se provados os factos alegados pelo autor que forem pessoais do réu.
A jurisprudência tem entendido que a justificação desta falta do réu tem de 'ser feita antes da audiência ou logo que esta seja aberta, não podendo ser relegada para momento ou oportunidade posterior' [cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Abril de 1981 (Boletim do Ministério da Justiça, nº 306, página 223), tirado ainda no domínio do Código do Processo de Trabalho de 1963; e, mais recentemente, o acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Março de 1991 (Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, tomo II, pagina 360)].
Era, de resto, desse modo que ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, vol.VI, Coimbra, 1953, página 496) interpretava o artigo 800º, 1º trecho, do Código de Processo Civil de 1939, onde se estabelecia disciplina semelhante a esta para a falta do réu à audiência de julgamento no processo sumaríssimo. Escrevia ele:
A justificação tem de ser feita ou antes da audiência ou logo que essa seja aberta.
No processo sumário laboral, a falta à audiência de julgamento, sem justificação imediata, do réu que contestou a acção, mas se não fez representar naquela por mandatário judicial, implica, pois, a condenação dele no pedido. A menos, claro é, que ele tenha provado, por documento suficiente, que a obrigação não existe.
Trata-se de uma solução paralela à consagrada no artigo
796º, nº.1, do Código de Processo Civil para o processo sumaríssimo - solução que, como se viu, vem já do artigo 800º do Código de Processo Civil de 1939
(cf., sobre isto, ALBERTO DOS REIS, ob. cit., página 494, MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, página 356; e JACINTO RODRIGUES BASTOS, Código de Processo Civil Anotado, vol.III, Lisboa, 1972, página 469).
A razão de ser desta cominação para a falta do réu à audiência de julgamento, sem justificação imediata - a saber: a condenação do réu no pedido, exactamente como se ele não tivesse contestado, salvo, obviamente, se, nos autos, existir documento formalmente bastante para provar a inexistência da obrigação - dá-a ALBERTO DOS REIS (ob. cit., página 495), ao escrever:
Um dos traços característicos do processo sumaríssimo [...] é a necessidade da presença das partes na audiência de discussão e julgamento. Exigiu-se esta presença para o juiz poder ouvir as partes sobre os pontos em litígio e formar a sua convicção sobre o que as partes digam. [...]. No processo sumaríssimo, a moralidade e a concentração são elevadas ao máximo. Tudo se deve liquidar e resolver na audiência de discussão e julgamento. E como a instrução da causa é muito mais resumida do que no processo ordinário e sumário, e por outro lado o juiz só na audiência de discussão e julgamento pode tomar contacto directo com as partes, entendeu o legislador que não devia prescindir da comparência destas, por si ou por procurador. A estas razões [...] pode acrescentar-se uma outra, que dimana do artigo 800º do Código; a lei quer que as partes estejam presentes para poder o juiz fazer a tentativa de conciliação.
A norma que, então, aqui tem que ser apreciada sub specie constitutionis pode assim ser enunciada: o réu contestante que, tendo sido devidamente notificado para comparecer, falta à audiência de julgamento em processo sumário laboral e não justifica logo a falta, nem se faz representar por mandatário judicial, será condenado no pedido, salvo se tiver provado, por documento suficiente, que a obrigação não existe.
6. A questão de constitucionalidade:
6. 1. Introdução:
A questão da constitucionalidade da norma que acaba de enunciar-se e que é a que a decisão recorrida aplicou, por assim ter interpretado o artigo 89º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho, já foi analisada por este Tribunal, no Acórdão nº 223/95, publicado no Diário da República, II série, de 27 de Junho de 1995. Aí se concluiu pela sua não inconstitucionalidade, como já se havia feito anteriormente, no Acórdão nº
264/94, publicado no Diário da República, II série, de 19 de Julho de 1994.
Entendeu-se naquele Acórdão nº 223/95 que tal norma não viola a garantia de protecção jurídica e da via judiciária, consagrada no artigo
20º da Constituição - recte, o direito de acesso aos tribunais ou direito ao tribunal e o princípio da igualdade de armas, nem o artigo 208º, nº.1, da Constituição, segundo o qual 'as decisões judiciais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'.
No acórdão nº 264/94, tinha-se também concluído que tal norma não viola o direito de acesso aos tribunais, nem o direito de defesa.
Não havendo razões para alterar esta jurisprudência, para cujos fundamentos aqui se remete, também agora se conclui no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa.
Há, no entanto, que analisar mais detidamente os fundamentos de inconstitucionalidade invocados pelas recorrentes que, naqueles arestos, foram tratados com menor detença ou que se não consideraram expressamente.
6. 2. A norma sub iudicio e o princípio do contraditório.
O princípio do contraditório (audiatur et altera pars), enquanto princípio rector do processo civil - que é um processo com estrutura polémica ou dialéctica, revestindo a forma de um debate ou discussão entre as partes - exige que se dê a cada uma delas a possibilidade de 'deduzir as suas razões (de facto e de direito)', de 'oferecer as suas provas', de 'controlar as provas do adversário' e de 'discretear sobre o valor e resultados de umas e outras' (cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., página 364).
Tal princípio só está constitucionalmente consagrado, de forma expressa, para o processo criminal (cf. artigo 32º, nº.5, da Constituição). Ele vale, no entanto, também para o processo civil (processo civil laboral incluído), como exigência que é do princípio do Estado de Direito.
De facto, também este processo tem que ser um due process of law, um processo equitativo e leal. E isso exige, não apenas um juiz independente e imparcial - um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência - como também que as partes sejam colocadas 'em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida' (cf. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., página 365).
Cada uma das partes há-de, pois, poder expor as suas razões perante o tribunal. E deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária.
Não se vê que este princípio seja afrontado pela norma aqui sub iudicio.
Na verdade, o réu pôde contestar a acção - e, consequentemente, expor as suas razões e contradizer as do autor; e pôde, bem assim, oferecer documentos, indicar testemunhas e requerer 'quaisquer outras diligências de prova' (cf. artigo 86º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho).
É certo que, não comparecendo na audiência de discussão e julgamento, nem justificando logo a falta, nem ao menos se fazendo aí representar por mandatário judicial, não pode o réu fazer ouvir nela as testemunhas que tiver indicado, nem contradizer as que houverem sido oferecidas pelo autor que não serão igualmente inquiridas (cf. o nº 3 do artigo 89º aqui em análise).
Isto, porém, não afecta o contraditório: desde logo, porque as partes continuam em perfeita paridade de condições.
Claro é que - como se sublinhou no citado acórdão nº
223/95 - 'o funcionamento da cominação que se contém na norma aqui em análise
(cominação plena) conduz a que a causa seja julgada com base numa presunção: presume-se, iuris et de iure, que o réu confessou o pedido que o autor formulou na petição inicial (ficta confessio). E isso é susceptível de conduzir a que a sentença, no caso, não faça justiça, assente como é numa verdade formal, que não na verdade material, como é sempre desejável que aconteça. Ou seja: pode, então, acontecer que a sentença seja menos acertada, dando razão à máxima de LOISEL: de brief juge, folle sentence'.
Simplesmente, tal sucede porque o réu, apesar de devidamente notificado para comparecer pessoalmente na audiência de discussão e julgamento (cf. citado artigo 98º, nº.1), a ela não comparece, nem justifica a falta, nem tão-pouco se faz representar por mandatário judicial.
'Ora - disse-se no referido acórdão nº 223/95 -, neste quadro de factos, não é irrazoável que o legislador presuma que o réu confessa, com o seu desinteresse, o pedido do autor', por isso que a cominação não seja
'produto de uma decisão legislativa arbitrária ou caprichosa'.
É que o direito de acesso aos tribunais concretiza-se também - nos dizeres de J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 163) - 'através do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas', ou seja, pela
'obtenção do órgão judicial competente [de] uma decisão dentro dos prazos legais preestabelecidos, ou, no caso de esses prazos não estarem fixados na lei, de um lapso de tempo temporal proporcional e adequado à complexidade do processo'.
A prontidão na administração da justiça é, de facto, fundamental para que o direito à tutela judicial tenha efectiva realização. E isso exige celeridade processual, com observância dos prazos, tanto pelo juiz, como pelas partes.
Pois, no caso, a lei prescreve que, 'findos os articulados, será marcado dia para julgamento, que deverá efectuar-se dentro dos dez dias seguintes' (cf. artigo 88º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho). Sendo o último articulado a contestação (ou a resposta do autor, no caso de o réu ter deduzido alguma excepção ou formulado pedido reconvencional e de o autor ter respondido: cf. o artigo 87º, nº 1, com referência aos artigos 57º e 58º), o réu tem que contar com o julgamento para dentro de dez dias.
É verdade que o réu pode ter faltado e não ter justificado a falta, nem se ter feito representar, por virtude da ocorrência de um 'evento normalmente imprevisível, estranho à sua vontade', que o tenha impossibilitado, 'por si ou por seu mandatário', de justificar a falta de comparência à audiência de julgamento - ou seja: pode ter havido justo impedimento (cf. artigo 146º do Código de Processo Civil).
Dir-se-á, então: o artigo 89º, nº. 3, aqui sub iudicio, tal como tem sido interpretado, não previne o caso de ter havido justo impedimento, pois que se exige que a justificação da falta seja feita 'ou antes da audiência ou logo que ela seja aberta'.
Simplesmente, como se advertiu no citado Acórdão nº
223/95, 'a circunstância de a falta do réu ter que ser justificada 'ou antes da audiência ou logo que ela seja aberta' não impede o funcionamento do justo impedimento, em termos de, provando o réu a sua existência, a cominação ficar paralisada'.
No caso, as recorrentes (rés na acção) vieram, de facto, invocar justo impedimento. Aconteceu, no entanto, que não conseguiram fazer prova da sua existência. Isso, porém, nada tem a ver com a questão da constitucionalidade da norma aqui sob julgamento.
6. 3. A norma sub iudicio e o princípio da defesa:
Sustentam as recorrentes que esta norma 'inviabiliza o direito de acesso aos tribunais, que compreende inquestionavelmente o direito de assegurar efectivos meios de defesa'.
É manifesto que não têm razão: o princípio da defesa, enquanto princípio conformador do processo civil, não exclui que o legislador lance mão de cominações.
Na verdade - como se sublinhou no citado Acórdão nº
223/95 -, 'a existência de cominações em processo civil - recte, da cominação que se traduz em impor ao réu a sua condenação no pedido, quando ele falta à audiência de discussão e julgamento, para a qual foi devidamente notificado, sem que justifique logo a falta, nem se faça representar por mandatário judicial - não faz com que o julgamento (a sentença de condenação que o juiz então profere) deixe de ser independente e imparcial, nem conduz a que o conflito que opõe as partes fique por solucionar, nem tão-pouco que a decisão proferida seja desconforme com a lei'.
No processo civil (recte, no processo civil laboral), o princípio da defesa, enquanto exigência do princípio do Estado de Direito, significa que cada uma das partes deve poder aduzir as suas razões, oferecer as provas que tiver e pronunciar-se sobre o que a outra parte alegar, designadamente, contraditando a prova que ela apresentar.
Fazer apelo ao princípio da defesa é, então, em direitas contas, afirmar a essencialidade do princípio do contraditório, no processo civil.
Mas então, as razões por que atrás se concluiu que a norma aqui em apreciação não viola o princípio do contraditório conduzem também a não considerar violado o princípio da defesa.
Como se escreveu no citado Acórdão nº 264/94, 'o quadro normativo em apreço assegura de forma adequada - tendo nomeadamente em conta a peculiar configuração dos interesses próprios do processo laboral - uma tutela judicial efectiva, não podendo falar-se a seu respeito de proibição da indefesa, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito
(cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pp. 163 e 164)'.
'Com efeito - acrescentou-se nesse aresto -, não existe nesta situação processual uma qualquer limitação do direito de defesa (e do acesso aos tribunais) em termos de dela resultarem, causal e adequadamente, prejuízos efectivos para os interesses das partes'.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Novembro 1996 Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida