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Proc. nº 556/95
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. participou criminalmente contra o presidente e alguns ou a totalidade dos membros da Câmara Municipal B. e, pelo menos, contra dois funcionários desse Município, invocando a sua qualidade de dono e legítimo possuidor de um prédio misto denominado '------------------', inscrito na matriz rústica das freguesias de --------------------------- daquele concelho, descrito na Conservatória do Registo Predial do --------------- sob o nº ---------, a fls. -------- do Livro ----------, denunciando que, em Março de 1989, ou seja, cerca de dois anos antes da apresentação da participação referida, várias máquinas pertencentes ao Município B. tinham efectuado escavações e terraplanagens nesse prédio, destinadas à construção de uma estrada municipal, sem disporem de autorização do proprietário para o efeito. Em consequência dessa obra, tinham sido destruídos cerca de 1.000 metros quadrados semeados de trigo, tendo da mesma obra resultado alterada de forma profunda a estrutura do solo e de propriedade numa área de dois mil metros quadrados. Em consequência desses factos, o denunciante e a sociedade arrendatária do prédio, C., haviam embargado extrajudicialmente a obra, tendo posteriormente pedido e obtido a ratificação desse embargo por decisão do Tribunal Judicial do --------------. Na participação criminal dirigida ao representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial do --------------, o denunciante considerou que os participados teriam cometido dois crimes, o crime de introdução em lugar vedado ao público e o crime de dano agravado, previstos e punidos pelos arts. 177º, nºs. 1 e 2, e 309º, nº 3, alínea d), respectivamente, disposições essas do Código Penal de 1982. Alegou, por último, que pretendia ser ressarcido dos danos causados, que computou em 1.918.650$00.
O Ministério Público procedeu a inquérito, tendo a final decidido arquivar os autos, nos termos do art. 277º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Notificado do despacho de arquivamento, requereu o denunciante a abertura de instrução, nos termos do art. 287º, nº 1, do Código de Processo Penal.
A instrução findou, realizou-se debate instrutório, vindo a ser proferido despacho de não-pronúncia, por ter sido entendido que não se apurara ter havido, por parte dos arguidos, a consciência e a vontade de praticar os factos objectivos que consubstanciavam os elementos objectivos dos tipos de ilícito denunciado (a fls. 376 a 378 dos autos).
O assistente A. interpôs então recurso do despacho de não-pronúncia para o Tribunal da Relação de Évora, o qual foi admitido.
Por acórdão de 30 de Maio de 1995, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, após ter dado razão ao recorrente quanto à tese por ele sustentada de que os arguidos haviam agido com dolo necessário. Para negar provimento ao recurso, ponderou-se o seguinte nesse acórdão:
' Mesmo com todos os factos provados, o único crime praticado seria, a nosso ver, o do art. 308º do Código Penal.
É quase ridículo defender que a inutilização de 1350 m2 de seara de trigo tem particular importância para o desenvolvimento económico do País, mesmo que esse país seja tão pequeno como Portugal.
Assim, não tem aplicação a al. d) do nº 3 do art. 309º do CP, que qualifica o dano com tal facto agravativo.
Entra aqui a sociedade C. E faz-se luz, na verdade.
É que, sendo o crime eventualmente praticado o do art. 308º estando a herdade arrendada à referida sociedade, pessoa jurídica diferente do participante, não dispõe este de legitimidade para fazer a queixa que fez.
E, nos termos do nº 2, do mencionado preceito, o procedimento pelo crime de dano depende de queixa [...].
Não foi a sociedade arrendatária, a verdadeira ofendida com os actos dos arguidos, que se queixou, mas o recorrente que nem explicou, não se sabe porquê, qual a sua posição nessa sociedade.
Quanto ao crime do art. 177º, entendemos que, mesmo que não se trate de um concurso aparente com o de dano (ne bis in idem), mesmo que considerado crime público, por ter sido praticado por mais de duas pessoas, não se estando perante uma propriedade fechada, com qualquer sinal de privacidade, o crime não existe
[...]
Tratando-se de uma herdade aberta, tal crime não pode ter existido.
3. Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido, embora por razões diversas, ou seja, por falta de legitimidade do MP para promover a acção penal' (a fls. 437-438 dos autos).
2. Notificado deste acórdão, veio o assistente A. dele interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no art. 70º, nº
1, alínea b), invocando o seguinte:
' Em tal recurso, pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade do artigo 111º, nº 1, do Código Penal, aplicável por remissão do artigo 308º, nº 2, do mesmo código, e do artigo 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação que de qualquer dos dois faz o citado acórdão de 30 Maio 95, ao afirmar que apenas o arrendatário, e não o respectivo proprietário, tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano contra a propriedade arrendada.
Tal interpretação viola o direito de acesso ao direito e aos tribunais e o direito de defesa da propriedade privada, um e outro constitucionalmente garantidos (artigos 20º, nº 1, 62º, nº 1) e cuja tradução substantiva e adjectiva se encontra, tanto no art. 111º/1 C.P., como no art. 68º/1 C.P.P., os quais, na interpretação que se julga correcta, garantem o direito de queixa criminal a todos os ofendidos, desde que sejam os «titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».' (a fls. 444-5)
O recurso foi admitido por despacho de fls. 446. Depois de se ponderar que o Tribunal Constitucional não era uma terceira instância, considerou-se que, apesar de não ter sido debatida a questão de constitucionalidade do art. 111º, nº 1, do C.P.P., deveria valorar-se a circunstância de o recorrente não ter tido a possibilidade de discutir essa questão de constitucionalidade, por se ter feito uso dessa norma apenas no acórdão recorrido.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações recorrente e o Ministério Público, entidade recorrida.
Transcrevem-se parcialmente as conclusões formuladas pelo recorrente, o qual pediu que fosse revogado o acórdão recorrido e julgadas inconstitucionais as normas dos arts. 111º, nº 1, do Código Penal de 1982 e o art. 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida na decisão recorrida. Juntou às alegações cópia da publicação no Diário da República (III Série) dos estatutos da sociedade arrendatária do imóvel, C., de onde consta que o recorrente detinha, à data da constituição da sociedade, uma quota de 190.000$00 no capital desta, que se elevava a 400.000$00.
'1. Neste processo, não se têm discutido os factos, dado que os até agora alegados foram por todos aceites, por verdadeiros.
2. O que se discute, entre o Rec. e as autoridades judiciárias (curiosamente, não com os arguidos) é a qualificação dos factos e a interpretação dos factos e dos preceitos legais.
3. O Acórdão da Relação de Évora (AcRE) entende que, no processo, não há crime público ou particular de introdução em lugar vedado ao público e há, quanto muito, dano simples, mas não dano agravado.
4. Para acusar por dano simples, não basta a participação ao Ministério Público
(M P) - que aliás não tem, em tal caso, legitimidade para acusar - é necessária uma queixa e só tem legitimidade para fazê-la a arrendatária (que não a fez) não o proprietário (que a fez).
5. O AcRE diz, em resumo: num caso, há queixa e o queixoso seria legítimo, porque se trataria de crime público: só que não há crime; no outro caso, há crime, mas o queixoso é ilegítimo.
6. Crê-se que o AcRE não tem razão.
7. Quanto ao crime de dano, o AcRE comete um duplo erro de interpretação:
a. atribui à expressão «desenvolvimento económico» um âmbito exclusivamente nacional e não (também) regional ou local (interpretação restritiva que nada autoriza) e
b. assume como condição de emergência de um crime de dano, nomeadamente de um crime de dano agravado, a «importância» ou«dimensão» do dano e não, como devia, o facto de alguém «destruir (no todo ou em parte), danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia», nomeadamente, coisa «com particular importância (ou «que possua significado importante») para o desenvolvimento económico».
8. [...]
9. [...]
10. Quanto ao crime de introdução em lugar vedado ao público, o AcRE decide-se pela sua inexistência, sem discutir um único dos argumentos apresentados e, ainda por cima, caindo em contradição.
11. De facto, sublinhando que estamos, neste caso, perante um crime contra as pessoas, para acentuar a sua conclusão de que deve haver um sinal de
«privatização pessoal», que terá de ser sempre «um obstáculo de natureza física», que justifique a incriminação, o AcRE raciocina ao contrário, visto que
é precisamente a natureza predominantemente pessoal do crime que exige a protecção acrescida de a incriminação dever bastar-se com a violação de uma vedação simplesmente jurídica e não grosseiramente física.
12. Existindo, pois, os dois crimes denunciados pelo Rec., tinha ele toda a legitimidade para os participar ao M.P., como fez. Ainda que, porém, se aceitasse a conclusão do AcRE de que só haveria um crime de dano simples, o Rec. continuaria a ter legitimidade para apresentar queixa, visto que:
a. É sócio de capital maioritário da sociedade arrendatária, como se prova pelo documento junto e como era de resto notório e conhecido de todos os intervenientes, razão por que, provavelmente, ninguém se lembrou de levantar tal problema antes.
b. O proprietário, tal como o arrendatário, possui aquela legitimidade.
13. É que, ao arrendar, o dono do prédio aliena parte do seu direito de propriedade (uso e fruição), mas mantém outra parte (disposição), pelo que mantém sempre uma relação efectiva (e afectiva) com o prédio.
14. No art. 177º do CP/82, protege-se, não apenas a «vida privada», mas também outros valores, como o de se opor a ilegítimas intromissões de estranhos, e não pode haver dúvidas de que este interesse ou direito é partilhado pelo arrendatário e pelo senhorio, já que este mantém com o prédio relações que o justificam.
15. No caso do crime de dano, a legitimidade do proprietário parece impor-se por maioria de razão, já que as acções danosas atingiram bens materiais que lhe pertenciam e pertencem, embora arrendados, como as duas árvores e o cobertor vegetal destruídos e o solo removido e alterado.
16. Dizer que, em tais casos, não existe legitimidade do proprietário para apresentar queixa equivale ao absurdo de admitir que ele deve passivamente aceitar o desinteresse, a negligência, mesmo a ausência ou a má-fé do arrendatário que não apresente queixa ou não o faça a tempo, enquanto ele assiste impassível à danificação ou destruição da sua propriedade.
17. Ao decidir que, pelo menos no crime de dano, o proprietário não tinha legitimidade para apresentar queixa contra os respectivos autores, o AcRE interpreta o art. 111º/1, do CP/82, e o art. 68º/1/a., do CPP, de um modo que viola os seus direitos de acesso aos tribunais e de defesa da propriedade privada, constitucionalmente garantidos, nos artigos 20º, nº 1, e 62º, nº 1' (a fls. 456 a 459 dos autos).
O Ministério Público, por seu turno, propugnou pela improcedência do recurso, concluindo do seguinte modo as suas alegações:
'
1º
O artigo 20º, nº 1, da Constituição não garante um específico direito de acesso aos tribunais comuns em matéria criminal, mas, tão-só, um direito genérico de acesso à via judiciária.
2º
Assim, não viola aquele preceito constitucional a interpretação, feita na decisão recorrida, do artigo 111º, nº 1, do Código Penal, no sentido de que o proprietário, no crime de dano do artigo 308º, do mesmo Código, não é ofendido, e, portanto, não tem legitimidade para apresentar queixa.
3º
Podendo aquele proprietário recorrer aos tribunais competentes em matéria cível para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, tal interpretação também não enferma de inconstitucionalidade por ofensa do artigo 62º, nº 1, da Constituição' (a fls. 476-477 dos autos).
4. Foram corridos os vistos legais.
Importará começar por delimitar o objecto do recurso de constitucionalidade e verificar se estão reunidos os respectivos pressupostos de admissibilidade.
II
5. Nos termos do requerimento de fls. 444-445, atrás transcrito, o ora recorrente interpôs recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, delimitando como seu objecto as questões de constitucionalidade das normas 'do artigo 111º, nº 1, do Código Penal, aplicável por remissão do artigo 308º, nº 2, do mesmo código e do artigo 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação que de qualquer dos dois faz o citado acórdão de 30 Maio 95, ao afirmar que apenas o arrendatário, e não o respectivo proprietário, tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano contra a propriedade arrendada' (sublinhado acrescentado).
Está, assim, em causa, para o recorrente, a questão da invocada inconstitucionalidade das seguintes normas, na interpretação delas perfilhada no acórdão recorrido:
- art. 111º, nº 1, do Código Penal de 1982: 'Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação' (o nº 2 do art. 308º do mesmo diploma estabelece que o procedimento criminal depende de queixa quando haja sido praticado o crime previsto no nº 1 do mesmo artigo, assim caracterizado: 'Quem destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia será punido com prisão até 2 anos ou multa até 90 dias'.)
- art. 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal de 1987:
'Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito: [...] os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos'.
6. Tal como sustenta o Exmº. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, o acórdão recorrido apenas aplicou - e de forma implícita - o disposto no nº 1 do art. 111º do Código Penal de 1982.
De facto, o ora recorrente constituiu-se assistente nos autos (cfr. requerimento a fls. 28 dos autos e guia de pagamento da taxa de justiça correspondente a fls. 70) e nessa qualidade requereu a abertura de instrução a fls. 311. A segunda norma não foi, assim, aplicada ou desaplicada pela decisão recorrida (a fls. 473 dos autos, nas suas alegações, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto louva-se no ensino do Prof. Figueiredo Dias, -Direito Penal Português - As Consequências Juridicas do Crime, págs. 663 e seguintes - sustentando que, embora se verifique 'inteira coincidência entre o titular do direito de queixa e a pessoa que pode constituir-se assistente em processo penal', atento ser o mesmo o critério acolhido nos arts. 111º, nº 1, do Código Penal e na alínea a) do nº 1 do art. 68º do Código de Processo Penal para a definição daquele titular e da pessoa que pode constituir-se assistente, não chega a existir coincidência entre 'os dois círculos de legitimidade', razão por que só o art. 111º, nº 1, do Código Penal será convocável no presente recurso, tratando-se de norma de carácter substantivo, 'na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhes presidem terão ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser').
7. Uma vez que o recorrente impugna a constitucionalidade da norma do art. 111º, nº 1, do Código Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, importa ainda, para delimitar cabalmente o objecto do recurso, ver qual o quadro fáctico que o acórdão recorrido teve em conta, quando apreciou o recurso do despacho de não-pronúncia.
No despacho de não-pronúncia, o juiz de instrução considerou provados os seguintes factos:
'1º O requerente é proprietário da propriedade de «------------------» onde foram efectuadas as escavações e terraplanagens documentados a fls. 30 a 57 dos autos.
2º Tais obras foram realizadas por funcionários da empresa D. e na sequência [de a essa] mesma empresa terem sido adjudicados vários trabalhos por parte da Câmara Municipal B..
3º Tais obras destinavam-se à construção de um caminho municipal identificado com o nº -------------.
4º Em consequência do embargo judicial em 27.03.90 foi declarada a [utilidade] pública e a urgência da expropriação de uma área de 3960 m2 da parcela de terreno sita no local de «----------------» [...]
5º A Câmara Municipal B. foi autorizada a tomar posse administrativa daquela
área por despacho da tutela.
6º De tal despacho foi interposto recurso para o S.T.A., o qual ainda continua a seguir os seus trâmites.
7º A herdade do «----------------» não possui vedação.
8º A construção do caminho foi precedida por um abaixo-assinado solicitando a construção do mesmo' (a fls. 377-378 dos autos).
Do auto de ratificação de embargos de obra nova (fotocopiado a fls.
51, para onde remete o ponto 1º do despacho de não pronúncia), consta que foi verificado que no referido prédio 'foram efectuadas escavações e terraplanagens numa distância de 254m (duzentos e cinquenta e quatro metros de comprimento) por
7,70 m (sete metros e setenta centímetros), ou seja a área de 1955,8 m2. Parte desta área havia sido semeada com uma seara de trigo que, por motivo dos serviços de escavações e terraplanagens, foi danificada, ou melhor, completamente destruída em cerca de 1060 m2 (mil e sessenta metros quadrados) aproximadamente'.
No acórdão recorrido, deu-se por assente que a seara destruída fora semeada pela sociedade arrendatária do prédio, facto alegado pelo ora recorrente na sua participação (a fls. 436 vº). E diz-se à frente que todos aceitam no essencial, no plano fáctico, que houve uma 'entrada de máquinas numa propriedade rústica, por ordem formal da Câmara Municipal B., para abertura de uma estrada municipal, com destruição da parte de uma seara, de duas árvores e remoção de certa cubicagem de terra arável, tudo sem autorização do dono da propriedade' (a fls. 437).
E, passando a qualificar os factos apurados enquanto factos criminosos, a Relação de Évora considerou que o único crime eventualmente praticado seria o do art. 308º do Código Penal, isto é, o crime de dano simples consistente na destruição de uma seara alheia (diz-se no acórdão, em passo transcrito atrás, que seria 'quase ridículo defender que a inutilização de 1350 m2 de seara de trigo tem particular importância para o desenvolvimento económico do País, mesmo que esse país seja tão pequeno como Portugal').
Estes aspectos de apuramento dos factos e de qualificação dos mesmos enquanto condutas criminosas são da exclusiva competência das instâncias judiciais, no caso do Tribunal Criminal recorrido, não podendo o Tribunal Constitucional alterar essas matérias, diferentemente do que pretende o recorrente nas suas alegações neste recurso de constitucionalidade, visto aí sustentar questões atinentes aos elementos dos tipos criminais previstos nos arts. 177º e 309º do Código Penal.
8. Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão da invocada inconstitucionalidade do nº 1 do art. 111º do Código Penal, na interpretação acolhida na decisão recorrida, isto é, no sentido de que o proprietário de um terreno rústico arrendado a terceiro, que nele semeou uma seara, carece de legitimidade para apresentar queixa pelo facto de essa seara ter sido destruída, por não ser o titular do interesse que a lei penal quis proteger com a incriminação.
9. Embora se trate de um recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e embora o ora recorrente não haja suscitado essa questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de proferido o acórdão recorrido, entende-se - tal como o entendeu o Senhor Desembargador relator no despacho de admissão do recurso - que se verifica aqui um dos casos excepcionais em que se dispensa a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade, isto
é, 'uma hipótese de todo excepcional «e certamente anómala» em que o interessado
«não disponha de oportunidade processual para levantar a questão [de inconstitucionalidade] antes de proferida a decisão»' (formulações dos acórdãos nºs. 90/85 e 136/85, reafirmadas no Acórdão nº 94/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, págs. 1089 e segs.).
De facto, o ora recorrente, nas alegações do recurso do despacho de não-pronúncia, limitou-se a sustentar que os arguidos tinham agido com dolo necessário na prática dos crimes previstos e punidos nos arts. 177º e 309º, nº
4, do Código Penal, posição que veio a ser acolhida na Relação de Évora, embora apenas quanto à prática do crime de dano simples, previsto no nº 1 do art. 308º do Código Penal.
Face à surpresa da aplicação do nº 1 do art. 111º do Código Penal, por remissão do nº 2 do art. 308º do mesmo diploma - quando antes estava em causa a interpretação do art. 14º daquele Código Penal - há-de entender-se que não era exigível ao recorrente que suscitasse, em juízo de prognose, a inconstitucionalidade da norma que veio a ser aplicada de forma implícita (visto só se referir o nº 2 do art. 308º do Código Penal) pela decisão recorrida.
10. Estão, assim, reunidos os pressupostos para conhecimento do objecto do recurso.
III
11. Será inconstitucional o art. 111º, nº 1, do Código Penal, na interpretação acolhida no acórdão recorrido e atrás indicada?
Recordar-se-á brevemente que, no acórdão recorrido se considerou como único dano produzido e relevante, do ponto de vista jurídico-criminal, a destruição de parte de uma seara de trigo semeada pelo arrendatário rural.
Ora, face ao direito civil - nomeadamente, face à Lei do Arrendamento Rural, Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro - o arrendatário que semeia uma seara de trigo torna-se proprietário dessa plantação, tendo em regra direito a colher os grãos, que são frutos (art. 212º, nºs. 1 e 2, 1022º e 1031º, b) do Código Civil; arts. 1º, nº 1, 26º e 39º, do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro).
A Relação de Évora considerou que a pessoa ofendida com a destruição dolosa de uma seara de trigo era o arrendatário que a semeou, proprietário dessa plantação periodicamente renovável, sendo ele o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Considerando que, no arrendamento rural, o senhorio ou proprietário havia cedido temporariamente a posse do locado, assegurando ao arrendatário o gozo do prédio rústico para nele fazer a plantação de uma seara de trigo, o Tribunal da Relação perfilhou o entendimento de que o proprietário do prédio não podia ser ofendido pela destruição de plantação alheia, por não ser o portador do bem jurídico violado pela conduta criminosa.
Ora, não se afigura inconstitucional esta interpretação do art.
111º, nº 1, do Código Penal, com referência ao art. 308º do mesmo diploma.
O recorrente entende que se produziram danos em coisa da sua propriedade (destruição de duas árvores; remoção e danificação da folha do solo), mas o acórdão recorrido desconsiderou esses alegados danos - posição que o Tribunal Constitucional não pode sindicar - entendendo que apenas era juridicamente relevante a destruição da seara semeada pela sociedade arrendatária. Ora, o Tribunal Constitucional está vinculado aos factos que a Relação considerou provados e a relevância jurídico-criminal que lhes atribuiu.
Não pode, por isso, dizer-se que a interpretação do art. 111º, nº 1, na dimensão perfilhada no acórdão recorrido, viola o direito constitucional de acesso às instâncias judiciais, previsto no nº 1 do art. 20º da Constituição. Nem tão-pouco viola o direito fundamental da propriedade privada, atento que o arrendatário rural é, em regra, o proprietário da seara que cultiva (abstrai-se da situação de o arrendamento cessar antes da colheita, situação que não foi alegada no caso sub judicio).
12. Há-de, assim, improceder o recurso de constitucionalidade.
IV
13. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso.
Lisboa, 10 de Outubro de 1996
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa