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Proc. nº 157/89
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Judicial da comarca de Trancoso, C..., intentou
acção declarativa com processo sumário contra A ...., peticionando a sua
condenação no pagamento da quantia de 694.343$00, acrescida de juros
compensatórios à taxa legal desde 1 de Abril de 1986 e até integral pagamento,
nas custas do processo e demais encargos legais.
Para tanto foi alegado que, em acidente de viação ocorrido no dia 25
de Outubro de 1985, na Estrada Nacional Trancoso - Vila Franca das Neves, se
verificou uma colisão entre a viatura pesada de mercadorias, de matrícula
..-..-.., pertencente à Autora, e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula
..-..-.., pertencente a J..., da qual resultaram os danos originadores do
pedido, danos esses devidos a facto imputável ao condutor do segundo veículo que
havia transferido a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros
para a Ré, na qualidade de companhia seguradora.
Por sentença de 19 de Maio de 1987, foi a acção julgada improcedente
e a Ré absolvida do pedido.
Para tanto, suportou-se na fundamentação seguinte:
'Sendo, os enumerados, os factos a merecerem consideração e uma vez que o
processo retém a validade declarada no saneador a questão nuclear ora a
desejar-se ver dirimida, ante aqueles, resume-se a saber se e na afirmativa em
que medida, deve a Ré ser condenada a indemnizar a A.
Surpreendendo-se dos apurados factos no processo tão-só que o TR e o HS
embateram, urge, de pronto, a conclusão de haverem ficado inaveriguadas as
circunstâncias em que esse embate concretamente ocorreu.
Outrossim, pertencendo o TR à A. e sendo o mesmo conduzido por empregado
desta, visto ter correntemente a direcção efectiva do veículo proprietário e
coisa alguma advir dos articulados no sentido de o TR, no momento da produção do
sinistro, não se encontrar ao serviço da A., temos que o dito empregado conduzia
aquele por conta desta.
Entretanto, o HS, à data do evento, pertencia ao L... e sob condução deste
circulava.
Daí, não provando a autora, que não houve culpa por parte do seu condutor
João Sousa e estabelecendo a primeira parte do nº 3 do artº 503 do C.Civil uma
presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, temos que o
segurado da Ré emerge irresponsável e, reflexamente, esta para com os
comprovados danos sobrevindos à A. na sequência do acidente dos autos (cf;
v.gr.assento do STJ, de 14/4/83; BMJ, 326-302 e acs. do STJ 17/12/85 e 6/5/86,
respectivamente BMJ, 352-329 e 357-385; RC, 6/5/86; C.J., XI, t3, p43, e RP;
2/10/86; C.J. XI, t4, p231 e segts).
Como assim, haverá a acção de improceder'.
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2 - Desta decisão levou a Autora recurso ao Tribunal da Relação de
Coimbra, suscitando na respectiva alegação as questões de inconstitucionalidade
do artigo 503º, nº 3, do Código Civil, do instituto dos Assentos e do artigo 2º
do mesmo Código e dos Assentos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de
1983 e de 29 de Janeiro de 1980.
Por acórdão de 26 de Abril de 1988, desatenderam-se as questões de
inconstitucionalidade, negando-se, consequentemente, provimento ao recurso e
confirmando-se a sentença por impugnada.
A Autora, reiterando o quadro alegatório anterior, levou então
recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 5 de Abril de 1989,
negou a revista confirmando a decisão recorrida.
Este aresto, no que aqui importa reter, ateve-se à seguinte linha
argumentativa:
'A ideia mestra que presidiu à redacção dada ao preceito daquele artº 115º,
nº 5, pela Lei nº 1/82, de 30 de Setembro (1ª Revisão Constitucional) foi, assim
e precisamente, a de evitar ou impedir a intromissão abusiva da Administração na
função de legislar e não de fazer interpretação autêntica da lei.
Além de que se afigura ter sido esse o pensamento que estava no espírito dos
Constituintes que levaram aquela 1ª Revisão Constitucional.
Basta para tanto atentar no que dispõe no artº 122º, nº 1, alínea g), da Lei
Fundamental, onde se estatui que `são publicadas no jornal oficial, Diário da
República: ... g) As decisões do Tribunal Constitucional, bem como as dos outros
tribunais a que a lei confira força obrigatória geral...'
Na alusão que aí se faz às decisões `de outros tribunais a que a lei confira
força obrigatória geral' não podem deixar de abranger-se os ``assentos'' do
Supremo Tribunal de Justiça.
A constitucionalidade dos assentos afigura-se, por isso, irrecusável, pelo
que desde já se julga improcedente a conclusão da alínea c), da alegação do
recorrente.
.............................................................
Na verdade, para os efeitos que se consideram - definição da
responsabilidade civil do comissário na condução de veículo automóvel, em
paralelismo com a do condutor por conta própria - não há qualquer privilégio em
relação ao segundo, já que se não trata de situações `substancialmente' iguais e
só estas é que exigem um tratamento igual.
É que a condução realizada pelo condutor por conta de outrém, na
generalidade dos casos, designadamente naqueles em que o condutor conduz,
`habitualmente' um veículo de que não é dono, se apresenta `particularmente
perigosa', revestindo características especiais a que a lei não podia ficar
indiferente.
Em princípio, essa condução não oferece as melhores garantias de `boa
vigilância' da viatura e `regular manutenção do seu funcionamento', que existem
na condução por conta própria.
Por um lado, o dono do veículo, que o não conduz, não sente em si mesmo o
risco do seu mau funcionamento, nem se apercebe directamente das `falhas' da
viatura.
Ao invés, o seu condutor, não sente directamente no património, o risco das
avarias ou inutilização da viatura que conduz, pelo que descura a reparação das
deficiências que ela, porventura, apresente.
............................................................. .
De qualquer forma, não sendo as situações em confronto - a da
responsabilidade civil do condutor por conta de outrém e a do condutor por conta
própria - substancialmente iguais, não pode dizer-se, como pretende a
recorrente, que a norma em exame (a daquele artº 503º, nº 3, 1ª parte, na
interpretação que lhe foi dada pelo Assento de 14 de Abril de 1983) ofende o
art. 13º da Lei Fundamental e nessa medida seja materialmente
inconstitucional'.
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3 - Sempre inconformada, trouxe então a Autora os autos em recurso
de constitucionalidade a este Tribunal.
Nas alegações depois oferecidas, deixou o seguinte quadro de
conclusões:
1ª - Os assentos do S.T.J., como forma de interpretação ou integração das
normas legais com força obrigatória geral são inconstitucionais, quer orgânica,
quer materialmente, por contrariar a opção da Constituição da República
Portuguesa no tocante à divisão dos poderes, a qual atribui o poder de legislar
e de interpretar e integrar as leis, sob a forma geral e abstracta, à Assembleia
da República e ao Conselho de Ministros - artº 164º e 203º, exorbitando o
S.T.J., ao emitir assentos com força obrigatória geral, a competência dos
tribunais, contida nos artºs 205º e 206º.
Por isso, o artº 2º do Código Civil deve ser declarado inconstitucional, por
força do disposto no artº 293º e nº 5 do artº 115º da Constituição da República
Portuguesa.
2ª A alínea g) do nº 1 do artº 122º da Constituição da República, ao prever a
publicação de decisões com força obrigatória geral de tribunais que não o
Tribunal Constitucional, apenas explicita a harmonia com uma proposta de
aditamento ao artº 206º da Constituição no sentido de ali consagrar a doutrina
do artº 2º do Código Civil, mas que não foi consagrada.
3ª Admitindo, por hipótese, os assentos do S.T.J., o assento de 14/4/83, na
sua doutrina e interpretação, viola o princípio da igualdade, consignado no artº
13º da Constituição da República, sendo materialmente inconstitucional.
4ª Admitindo, por hipótese, o assento de 14/4/83 e que a sua interpretação da
1ª parte do nº 3 do artº 503º do Código Civil está conforme com a vontade do
legislador, deve essa norma ser declarada inconstitucional, por contrariar
claramente o princípio da igualdade do artº 13º da Constituição da República.
5ª Como consequência das conclusões anteriores, deve ser revogado o douto
Acórdão recorrido, sendo substituído por outro que condene a Recorrida a pagar à
Recorrente 50% dos valores indemnizatórios, ou seja, 234.671$50, acrescida dos
juros moratórios à taxa legal desde 1 de abril de 1986, como foi pedido'.
A ré e recorrida A ... absteve-se de produzir contra alegação.
Entretanto, por força da alteração da composição do elenco dos
Juízes do Tribunal Constitucional, ocorrida em Agosto de 1989, o processo foi
submetido a nova distribuição.
Já depois de corridos os vistos, ficaram os autos a aguardar o
julgamento do Proc. nº 474/88, a efectuar com a intervenção do plenário do
Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 79º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro - quando necessário para
evitar divergências jurisprudenciais ou quando se justifique em razão da
natureza da questão a decidir -, processo este cujo objecto respeitava também à
questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil e do
instituto dos assentos.
Tirado naquele processo o respectivo acórdão - Acórdão nº 810/93 -
seguiram os autos para julgamento, tendo-se verificado, por vencimento, mudança
de relator.
Cabe agora apreciar e decidir.
A recorrente veio submeter à sindicância deste Tribunal duas
distintas questões.
Na linha da sua precedência lógica, começar-se-á por apreciar a
questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil e do
instituto dos Assentos, passando-se depois ao conhecimento da
inconstitucionalidade do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril
de 1983.
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II - A norma do artigo 2º do Código Civil
e o instituto dos Assentos
No acórdão nº 810/83, Diário da República, II série, de 2 de Março
de 1993, este Tribunal julgou inconstitucional 'a norma do artigo 2º do Código
Civil na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com
força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da
Constituição'.
Esta decisão, proferida no quadro processual já referenciado com
intervenção do plenário do Tribunal, deverá agora ser respeitada, acolhendo-se
assim, por inteiro, a fundamentação que a suporta.
E porque o acórdão recorrido, em que se fez aplicação da doutrina de
um assento, promana do próprio Supremo Tribunal de Justiça, o julgamento de
inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, há-de implicar o
provimento do recurso e a consequente reapreciação daquela decisão.
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III - A norma do artigo 503º, nº 3, do Código civil e o
Assento do Supremo Tribunal de Justiça de
14 de Abril de 1983
1 - A circunstância de se haver concluido pela inconstitucionalidade
da norma do artigo 2º do Código Civil, não invalida que deva também conhecer-se
da questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 503º, nº 3, do mesmo
Código na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 14 de Abril de 1983.
É que, já para além da específica vinculação derivada do instituto
dos assentos, importa averiguar se o sentido material ali conferido aquela norma
dispõe de legitimidade constitucional.
Vejamos então.
O artigo 503º do Código Civil contém a seguinte formulação:
Artigo 503º
(Acidentes, causados por terceiros)
1 - Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação
terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de
comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo,
mesmo que este não se encontre em circulação.
2 - As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 489º.
3 - Aquele que conduzir o veículo por conta de outrém responde pelos danos
que causar, salvo se provar que não houve culpa de sua parte; se, porém, o
conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos
do nº 1.
Deste preceito resulta assim que, nos acidentes causados por
veículos de circulação terrestre, sendo estes conduzidos por conta de outrém, há
que contar, ao lado da responsabilidade do detentor do veículo - que é uma
responsabilidade objectiva pelos danos provenientes dos riscos próprios do
veículo (cfr. nº 1) - com a responsabilidade do próprio condutor, que, contudo,
não responde, se provar que não teve culpa no acidente.
Contudo, em caso de culpa do condutor - seja porque se fez prova
nesse sentido, seja porque não conseguiu ilidir a presunção legal estabelecida
no nº 3 -, pelos danos causados ao terceiro lesado, responderão,
subsidiariamente, o próprio condutor e o detentor do veículo (cfr. Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 1977, publicado no Boletim do
Ministério da Justiça, nº 271, pp. 229 e ss.).
O âmbito da presunção de culpa constante do nº 3 do artigo 503º foi
durante algum tempo objecto de debate doutrinal e jurisprudencial em termos de
se saber de tal presunção vigorava apenas no domínio da responsabilidade
objectiva do dono ou utilizador do veículo e nas relações entre este e o
condutor (comissário) ou se abrangia também as relações entre o condutor por
conta de outrém e o lesado, cobrindo assim toda a área da responsabilidade civil
proveniente dos acidentes de viação.
Inicialmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
orientou-se no sentido de que o preceito em causa estabelecia uma presunção de
culpa do condutor por conta de outrem, sendo tal presunção aplicável nas
relações entre ele e o lesado (cfr. para além do citado acórdão de 24 de
Novembro de 1977, os Acórdãos de 28 de Maio de 1974, de 22 de Junho de 1975, de
3 de Fevereiro de 1976, de 4 de Maio de 1976, de 25 de Janeiro de 1978 e de 17
de Maio de 1978, publicados no Boletim do Ministério da Justiça,
respectivamente, nºs 237, p. 231, 249, p. 480, 254, p. 180, 257, p. 121, 273, p.
260 e 277, p. 253).
Mas, uma evolução entretanto verificada, levou aquele Alto Tribunal,
em alguns arestos, a restringir o âmbito daquela presunção de culpa limitando-o
ao domínio das relações internas dos vários responsáveis pelo risco (cfr. os
Acórdãos de 19 de Outubro de 1978, 19 de Dezembro de 1979 e 31 de Dezembro de
1980, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, nºs 272,
p. 319, 292, p. 361 e 293, p. 346).
O conflito jurisprudencial assim instalado, veio a ser dirimido pelo
Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 1983, publicado no
Diário da República, I série, de 28 de Junho de 1983, (Suplemento), no qual,
aderindo-se ao sentido mais amplo do conceito, foi estabelecida a seguinte
doutrina normativa:
'A primeira parte do nº 3 do artigo 503º do Código Civil estabelece uma
presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que
causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares
do direito a indemnização'.
Deste modo, o artigo 503º, nº 3, do Código Civil, quanto aos danos
causados pelo condutor do veículo por conta de outrem, na decorrência da
sobreposição interpretativa do assento, estabeleceu uma verdadeira presunção de
culpa, abrangida na ressalva do nº 1 do artigo 487º do Código Civil - presunção
de culpa que se aplica às relações entre o lesado e o condutor, que não apenas à
hipótese da responsabilidade do dono do veículo, nas relações deste com o
condutor-comissário (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I,
Coimbra, p. 618).
E, sendo a presunção de culpa estabelecida no artigo 503º, nº 3,
aplicável nas relações entre o lesado e o condutor do veículo por conta de
outrem, a indemnização que àquele seja devida não está sujeita aos limites
máximos da responsabilidade civil objectiva, constantes do artigo 508º do mesmo
Código.
Contudo, já deverá entender-se que a indemnização devida pelo
comissário pode ser limitada nos termos do artigo 494º, também do Código Civil
(cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, cit. pp. 619 e 647 e Parecer nº
22, Janeiro de 1984, pp. 6 e ss.).
Estabelece-se assim quanto ao regime do ónus da prova, uma diferente
formulação: quando o veículo é conduzido pelo comissário, ocorrendo acidente que
cause dano a terceiro, presume-se que a culpa lhe pertence; ao contrário, sendo
o veículo conduzido pelo próprio dono, é ao lesado, requerente da indemnização,
que compete, nos termos do artigo 487º, nº 1, fazer prova de que aquele cabe a
culpa do acidente.
Será que este regime, no ponto em que opera uma inversão do ónus da
prova relativamente à culpa, desfavorecendo o comissário (condutor por conta de
outrem) dispõe de credencial constitucional?
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2 - No entendimento da recorrente, 'ao optar pela corrente
jurisprudencial que defendia que a 1ª parte do nº 3 do artigo 503º do Código
Civil estabelece a presunção de culpa do condutor por conta de outrem perante
terceiros, e não apenas nas relações internas entre comitente e comissário o
assento de 14 de Abril de 1983 manifesta-se inconstitucional na sua doutrina e
mérito', pois que, 'além de ferir a lógica e a sistemática do Código Civil,
afronta o princípio da igualdade'.
Será efectivamente assim?
Como tem sido assinalado na jurisprudência uniforme e reiterada do
Tribunal Constitucional o princípio da igualdade reconduz-se a uma proibição de
arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer
justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos,
constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações
manifestamente desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de
conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da
igualdade como princípio negativo de controle.
A vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não
elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos
limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as
relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto
proibição de arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade
legislativa são afrontados por ausência de adequado suporte material para a
medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente
fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da
justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão
constitucionalmente imprópria (cfr. sobre a matéria, por todos, os acórdãos do
Tribunal Constitucional nºs 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República,
II série, de respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988 e I
série, de respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
1993, pp. 127 e ss; Jorge Miranda, 'O regime dos direitos, liberdades e
Garantias, Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 50 e ss. e Manual de
Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória
Ferreira Pinto, Princípio da Igualdade - Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de
Sentido?,, Separata do B.M.J. nº 358, Lisboa, 1987; Lívio Paladin, Il princípio
costituzionale d'eguaglianza, Milão, 1965).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a
caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do
princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento
material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o
sistema jurídico.
No caso em apreço, e tal como já foi decidido por este Tribunal
(cfr. os acórdãos nºs 262/92 e 149/93, Diário da República, II série,
respectivamente, de 12 de Setembro de 1992 e 10 de Abril de 1993, cuja
fundamentação se tem acompanhado) deve dizer-se que a distinção estabelecida
pela norma sub judicio em desfavor do comissário-condutor não se apresenta como
arbitrária, irrazoável ou desprovida de fundamento material.
Justificando no plano jurídico-material a solução que ali se contém,
Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, citado, pp. 619 e ss., escreveu assim:
'Os comissários ou condutores do veículo por conta de outrem são, na
generalidade dos casos, os camionistas das empresas, os chauffeurs particulares
contratados, os motoristas de táxis pertencentes a outra pessoa.
Há na condução por conta de outrem um perigo sério de afrouxamento na
vigilância do veículo, que a lei não pode subestimar: o dono do veículo (muitas
vezes, uma empresa cuja personalidade se dilui pelos gestores) não sente as
deficiências dele, porque o não conduz; o condutor nem sempre se apresta a
repará-las com a diligência requerida, porque o carro não é seu, porque outros
trabalham com ele e o podem fazer, porque não quer perder dias de trabalho ou
por qualquer outra de várias razões possíveis. E há um outro perigo não menos
grave em que confluem a cada passo a actuação do comitente e a do comissário,
que é o da fadiga deste (causa de inúmeros acidentes), proveniente das horas
extraordinárias de serviço; o comitente, para não admitir mais pessoal nos seus
quadros; o comissário, para melhorar a sua remuneração.
Além disso, os condutores, por conta de outrém são por via de regra
condutores profissionais; pessoas de quem fundadamente se deve exigir (de acordo
com o padrão aceite para a definição da negligência em geral) perícia especial
na condução e que mais facilmente podem ilidir a presunção de culpa com que a
lei os onera, quando nenhuma culpa tenha realmente havido da sua parte na
verificação do acidente.
Por último, a presunção de culpa deliberadamente sacada sobre o condutor por
conta de outrem (comissário), aliada à responsabilidade solidária que recai
sobre o comitente (dono ou detentor do veículo), só pode estimular a realização
do seguro da responsabilidade civil em termos que cubram todo o montante da
indemnização a que possam estar sujeitos.
O condutor por conta própria não é abrangido pela presunção de culpa
estabelecida no nº 3 do artigo 503º; em contrapartida, encontra-se sujeito ao
regime da responsabilidade objectiva traçada no nº 1 do artigo 503º e no artigo
505º.
Goza, é certo, do benefício dos limites máximos fixados no artigo 508º para
a responsabilidade sem culpa, cujo montante deve obviamente ser actualizado, de
iure condendo, em função da desvalorização da moeda.
Mas, em compensação, não tem a cobri-lo, perante o lesado, como o
comissário, a responsabilidade solidária do comitente, cujo crédito de regresso
será muitas vezes praticamente incobrável'.
Estas razões, por si só, representam argumento bastante para
entender que a distinção contida no artigo 503º do Código Civil radica em
situações materiais específicas dos destinatários da norma em causa que
constituem fundamento material bastante para a diversidade de tratamento entre
condutores que ali se acolhe, razões essas que, na actualidade, hão-de ser
avaliadas no contexto de uma lógica de distribuição de encargos própria de um
sistema de seguro obrigatório.
E, não sendo arbitrária nem irrazoável a distinção estabelecida no
artigo 503º, nº 3 do Código Civil, na interpretação que lhe deu o Assento do
Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Abril de 1983, há-de dizer-se inexistir
ali violação do princípio da igualdade.
*///*
IV - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 503º, nº 3 do Código Civil,
na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº
1/83, de 14 de Abril de 1983.
b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em
que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória
geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da Constituição;
c) Conceder, em parte, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser
reapreciada à luz do presente julgamento sobre a questão de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Julho de 1995
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Vitor Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves (vencida nos termos da declaração de voto junta ao acórdão nº 439/94)
José Manuel Cardoso da Costa