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Processo nº 502/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No 2º Juizo Criminal de Lisboa, por sentença de 22 de Junho de 1995, foi o arguido A. condenado como autor material de um crime previsto e punido pelos artigos 2º, nº 1 e 4º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril, além do mais, na pena de quatro meses de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa diária de 600$00, o que perfaz a multa de 72.000$00, em alternativa oitenta dias de prisão, e na sanção acessória de sete meses de inibição de conduzir.
Não conformado com o assim decidido levou o arguido recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa, havendo rematado a respectiva motivação com as conclusões seguintes:
'1ª - Foram dadas como provadas duas taxas de alcoolémia ao arguido,
3,20 gr/l com base num alcoolímetro que não tinha sido aprovado, não tinha sido aferido e serve apenas como elemento de despistagem e não de prova e a 3,23 gr/l sem que houvessem elementos no processo que permitissem concluir que a colheita analisada fosse do sangue do arguido.
2ª Com a entrada em vigor do novo C.E. foi descriminalizada a lei do alcóol prevista no D.L. 124/90, o que deveria ter sido apreciado na douta sentença, por a nova lei ser mais favorável ao arguido.
3ª A lei que puna a conduta do arguido só pode ser aplicada para o futuro e a lei anterior já não pode ser invocada por imperativo do disposto nos arts. 2º e 3º nº 1 do D.L. 433/82 de 27 de Outubro e art. 2º nº 2 do C.P., pelo que o arguido deveria ser absolvido.
4ª A interpretação feita na douta sentença não teve em conta todos os meios de prova constantes dos autos, nomeadamente o parecer do Instituto Português da Qualidade, não garantiu os direitos de defesa do arguido, aplicou um diploma revogado e não aplicou a lei mais favorável ao arguido, o que é inconstitucional e que para todos os efeitos legais se invoca.
5ª Com a entrada em vigor do Novo C.E. foram despenalizadas milhares de infracções ao C.E. de 1954 e à lei do alcóol, pelo que a condenação do arguido constitui uma discriminação, o que também é inconstitucional.
6ª Com o devido respeito pela opinião em contrário foram infringidas as disposições dos arts. 13º, 29º nº 4 e 32º da C.R.P., arts. 2º e
3º do D.L. 433/83 e art. 2º nº 2 do C.P., 379º al. a) do C.P.P..'
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2 - O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 27 de Março de 1996, condenou o arguido na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de cinco meses, confirmando no mais a decisão recorrida.
Ainda inconformado, trouxe o arguido deste acórdão, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso ao Tribunal Constitucional.
Nas alegações que depois ofereceu formulou o seguinte quadro conclusivo:
'1ª Com a entrada em vigor do novo C.E. foi descriminalizada a lei do alcóol prevista no D.L. 124/90, o que deveria ter sido apreciado na douta sentença, por a nova lei ser mais favorável ao arguido.
2ª A lei que puna a conduta do arguido só pode ser aplicada para o futuro e a lei anterior já não pode ser invocada por imperativo do disposto nos arts. 2º e 3º nº 1 do D.L. 433/82 de 27 de Outubro e art. 2º nº 2 do C.P., pelo que o arguido deveria ser absolvido.
3ª Tendo o Dec. Lei 124/90 sido revogado, o Douto Acórdão ao punir o arguido nos termos do art. 69º do novo Código Penal, aplicou essa disposição o que contraria o disposto no art. 5º nº 2 al. a) do C.P.P. e 29º nº 4 da C.R.P. ou, por isso também é inconstitucional e para todos os efeitos se alega.
4ª O Douto Acórdão recorrido ao não apreciar a conclusão 4ª, como se referiu em 20. e se dá como reproduzido também infringiu o disposto no art.
32º da C.R.P..
5ª Com efeito, o Acórdão recorrido no seu conjunto fez uma interpretação errada dos arts. 13º, 20º, 27º, 29º nº 4 e 32º da C.R.P., por ter limitado o acesso ao direito de defesa do arguido, o que para todos os efeitos se alega.
6ª Com o devido respeito pela opinião em contrário, foram infringidas as disposições dos arts. 13º, 20º, 27º, 29º nº 4 e 32º da C.R.P., 2º e 3º do Dec. Lei 433/83 e 5º nº 2 al. a) do C.P.P..'
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, contralegando, veio suscitar a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso com base na consideração de que, circunscrevendo-se o seu âmbito 'às normas dos artigos 13º, 20º, 29º, nº 4 e 32º, da Constituição da República Portuguesa, não deve dele conhecer-se, por tais normas constitucionais serem insusceptíveis de fiscalização de constitucionalidade'.
O arguido foi notificado para responder à questão assim suscitada, não produzindo qualquer resposta.
Cabe agora apreciar e decidir.
E decidir, desde logo, a questão prévia do não conhecimento do recurso.
*///* II - A questão prévia
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28//82, (Lei do Tribunal Constitucional) cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A admissibilidade deste tipo de recurso - aquele a que o recorrente lançou mão - acha-se condicionada, além do mais, pela confluência de dois pressupostos essenciais: a) a inconstitucionalidade da norma deverá ter sido suscitada durante o processo pelo próprio recorrente; b) tal norma haverá de ser utilizada na decisão impugnada como seu suporte normativo.
O legislador constituinte elegeu como conceito identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade (cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem nesta sede, na qual se incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de sindicância.
Com efeito, como vem sendo reiteradamente definido pela jurisprudência deste Tribunal, os recursos de constitucionalidade, sendo embora interpostos de decisões dos outros tribunais (decisões de provimento ou de rejeição) não visam impugnar a inconstitucionalidade de tais decisões, mas antes o juízo que nelas se contenha sobre a inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade de normas com interesse para o julgamento da causa (cfr. por todos, os Acórdãos nºs 128/84 e 274/88, Diário da República, II série, de, respectivamente, 12 de Março de 1985 e 18 de Fevereiro de 1989).
E assim sendo, impende sobre os recorrentes o ónus de suscitar, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade das normas convocadas e aplicadas pela decisão da causa, havendo de fazê-lo de modo directo, explícito e perceptível através da indicação das disposições legais sobre que se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade, em ordem a que os tribunais aquando do respectivo julgamento sejam confrontados com a matéria da inconstitucionalidade e sobre ela possam proferir decisão de provimento ou de rejeição.
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2 - Ora, à luz das considerações antecedentes há-de dizer-se que o recorrente não suscitou de modo adequado e operativo a questão de constitucionalidade de qualquer norma, em termos de agora se poder abrir a via da sindicância constitucional.
Como bem se extrai da peça processual que aqui mais importa destacar - a motivação do recurso para o Tribunal da Relação (fls. 123 e ss.) - a linha discursiva da defesa foi orientada no sentido de questionar a própria decisão condenatória e não já a ilegitimidade constitucional de qualquer das normas que lhe serviram de fundamento e suporte legal.
Com efeito, quando ali se refere, nomeadamente, que a sentença 'ao basear-se nas disposições do D.L. 124/90, fez uma interpretação errada da lei, por ter aplicado uma norma criminal mais desfavorável ao arguido, o que contraria o disposto no art. 2º, nº 4 do C.P. e 29º, nº 4 da C.R.P.' ou, quando, na conclusão 4ª, se aduz que 'a interpretação feita na douta sentença não teve em conta todos os meios de prova constantes dos autos, nomeadamente o parecer do Instituto Português de Qualidade, não garantiu os direitos de defesa do arguido, aplicou um diploma revogada e não aplicou a lei mais favorável ao arguido, o que é inconstitucional e para todos os efeitos legais se invoca', não se questiona explicitamente a inconstitucionalidade de norma ou normas aplicadas na decisão, mas, e ao contrário, pretende-se por em causa o bem fundado do próprio conteúdo decisório e da fundamentação que o suportou.
Este entendimento das coisas é depois sufragado nas conclusões 5ª e 6ª da mesma motivação, nas quais se considera que 'com a entrada em vigor do novo C.E. foram despenalizadas milhares de infracções ao C.E. de
1954 e à lei do alcóol, pelo que a condenação do arguido constitui uma discriminação, o que também é inconstitucional', indicando-se a seguir como
'disposições infringidas' - pela decisão - as dos artigos 13º, 29º, nº 4 e 32º da Constituição, 2º e 3º do Decreto-Lei nº 433//82, de 27 de Outubro, 2º, nº 2 do Código Penal e 379º, alínea a) do Código de Proceso Penal.
Todo este entendimento argumentativo, que, tanto quanto pode inferir-se da lógica que o inspira e das disposições a que se faz apelo, parte da consideração de que da conjugação do artigo 2º do Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio com o artigo 87º, nº 2, do Código da Estrada, resultaram revogados os artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril (tese esta contrariada, aliás, pela jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional - cfr. por todos, os Acórdãos nºs 609/95 e 146/96, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 19 de Março e 7 de Maio de 1996), não se dirige contra a eventual inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica, mas sim contra os juízos de valor materiais e legais que serviram de fundamento à decisão condenatória da primeira instância, corroborados depois no acórdão recorrido. E assim sendo, não se tendo por verificado um dos pressupostos essenciais à admissibilidade do recurso - adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade de uma norma jurídica aplicada pela decisão recorrida -, não pode dele tomar-se conhecimento.
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III - A decisão
Nesta conformidade, embora por diferentes razões das que foram invocadas pelo senhor Procurador-Geral Adjunto, concede-se atendimento à questão prévia e, em consequência, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5
(cinco) Ucs.
Lisboa, 4 de Dezembro de 1996 Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida