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Procº nº 433/96 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Em acção de processo comum perante o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, J... foi julgado pela autoria material de um crime de ofensas corporais simples na pessoa de C...., tendo requerido que lhe fosse 'nomeado defensor o Senhor Solicitador A .... O Juiz da causa indeferiu tal pretensão, com fundamento em que o Solicitador não poderia levantar questões de direito e estas surgiriam inevitavelmente em sede de audiência de julgamento, nomeando advogado para defender oficiosamente o arguido. Porém, em resposta a um pedido de esclarecimento desse despacho por aquele Solicitador, determinou a notificação do arguido para decidir se, 'estando o Sr. Solicitador impedido de suscitar questões de direito úteis à defesa, mesmo assim, pretende que o Sr. Solicitador lhe seja nomeado como defensor'. Perante a resposta afirmativa do arguido, foi-lhe nomeado defensor aquele Solicitador, ficando sem efeito a nomeação de advogado.
2. Tendo o arguido sido condenado em pena de multa, indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e taxa de justiça, veio o seu defensor a interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a absolvição ou a anulação do julgamento por falta de 'fundamentação da confissão do arguido'. Respondendo à motivação então apresentada, o Magistrado do Ministério Público em regime de estágio no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu suscitou, para o que ora importa, a questão prévia da obrigatoriedade da constituição de advogado para recorrer em processo penal. Como defensor de J..., respondeu o mencionado Solicitador, sublinhando a interpretação de que 'os solicitadores, no exercício da sua profissão, com procuração outorgada pelo arguido, quer na qualidade de defensores nomeados, têm legitimidade para interpor recurso em processo penal e, consequentemente, subscreverem as necessárias motivações' e, pela 'jurisprudência das cautelas', impugnando a constitucionalidade das normas dos artigos 61º, alínea d), e 66º, nº 4, do Código de Processo Penal.
3. Por Acórdão de 28 de Fevereiro de 1996, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou não poder o referido Solicitador ser nomeado defensor para intervenção em todo o processo, concluindo que, sendo a assistência de defensor um direito irrenunciável do arguido, a nomeação daquele fora da hipótese e excedendo o âmbito previstos no artigo 330º, nº 1, do Código de Processo Penal configurava a nulidade insanável aí prevista e no artigo 119º, alínea c), do mesmo Código, acarretando a nulidade do julgamento.
Inconformado, veio o recorrente, sempre com patrocínio do 'defensor escolhido pelo arguido, e solicitador c/p.', interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'por inconstitucionalidade na aplicação das normas dos artigos
61º, nº 1,alínea d), e 66º, nº 4, ambos do Código de Processo Penal'. O Desembargador Relator não admitiu, no entanto, o recurso, proferindo um despacho nos seguintes termos:
'O arguido J... vem interpor recurso do acórdão desta Relação para o Tribunal Constitucional.
Uma das pretensões do arguido, com o recurso para esta Relação, era a anulação do julgamento.
Esta pretensão acabou por proceder, embora com fundamento totalmente distinto do por ele invocado.
Ora, os recursos destinam-se a impugnar as decisões e não a respectiva fundamentação.
Tendo o arguido obtido 'ganho de causa', não pode recorrer por falta de interesse em agir.
Aliás e ao contrário, da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional só poderia resultar prejuízo para o J..., pois da sua procedência só uma de duas consequências poderiam posteriormente advir:
a) A eventual procedência da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, impeditiva de este Tribunal conhecer do recurso interposto por impossibilidade legal de o Senhor Solicitador intervir nesta fase, depois de a sua intervenção no processo ter já sido limitada às questões de facto, por decisão expressa e transitada da 1ª instância, sendo o recurso restrito precisamente à matéria de direito;
b) Se se conhecesse do recurso, ele teria de ser objectivamente rejeitado, como se salientou no acórdão que se pretende impugnar.
Ou seja, em qualquer das hipóteses, a consequência indirecta da procedência do recurso no Tribunal Constitucional seria a de tornar definitiva a condenação proferida contra o arguido na 1ª instância. Óbvio, pois, o prejuízo para o J....
De tudo o exposto resulta que o recurso que se pretende interpor não
é admissível por falta de legitimidade.
Quem talvez pudesse ter interposto o recurso seria o próprio Senhor Solicitador cuja intervenção não foi admitida no processo, assim sendo afectado pela decisão, desde que repre sentado por Advogado (art. 83º, nºs. 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional) - cfr. douto Acordão desse Tribunal de 31/1/95, publicado no DR, II, de 19/4/95, pág. 4274.
Aliás, diga-se, tal recurso sempre seria eticamente discutível, pois da procedência dos interesses do Senhor Solicitador resultaria prejuízo manifesto para o J..., como se vê do que acima se referiu. Seria um recurso em que o 'defensor' colocaria os seus próprios interesses acima dos do 'defendido'.
A falta de interesse em agir torna desnecessário o cumprimento do disposto no nº 5 do art. 75º-A (interpretado extensivamente por forma mais favorável ao recorrente) da citada Lei, para aperfeiçoamento do requerimento de interposição, já que os preceitos da Constituição indicados como violados nada têm a ver com a questão que se pretende colocar, o que levaria a ter de considerar-se o recurso 'manifestamente infundado', tal como esse conceito é definido no douto Acórdão do T.C., de 17/10/95, publicado no DR, II, de 13/3/96, pág. 3436, e seria outro fundamento de não admissibilidade do recurso, por força do artº. 76º, nº 2, do mesmo diploma; acrescente-se que o próprio requerimento ou o seu aperfeiçoamento, como é óbvio, já envolve questões de direito que o Senhor Solicitador está, por despacho transitado e é de Lei, impedido de suscitar nos autos;
Como torna inútil qualquer diligência para eventual regularização da nomeação de defensor (o Senhor Solicitador intitula-se no processo 'solicitador com procuração', o que não é verdade) com a qualificação exigida pelo dito artº.83º, nomeação que, aliás, só por si extinguiria, de certo modo, o próprio objecto do recurso para o T.C..
Nestes termos e em obediência ao disposto nos artºs. 72º, nº 1, al.b), do mesmo diploma e 401º, nº 2, do Código de Processo Penal, não admito o recurso interposto pelo arguido para o Tribunal Constitucional, por falta de interesse em agir e, consequentemente, de legitimidade'.
4. Deste despacho, confirmado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Abril de 1996, trouxe o recorrente reclamação para o Tribunal Constitucional, subscrita pelo 'defensor por si escolhido e nomeado nos autos', dizendo, entre o mais, o seguinte:
'[...] O que está em causa não é o exercício da profissão de solicitador, mas sim o de se saber se este pode ou não ser defensor escolhido pelo Réu; e uma vez nomeado, qual o seu âmbito.
Ora, porque o reclamante pretende que o solicitador em causa seja o seu defensor e porque não foi substituído, pois não mandatou advogado, nem escolheu outro, pretende que esse Tribunal Constitucional aprecie da sua legitimidade, quer na intervenção na audiência de discussão e julgamento, quer em subscrever as alegações nas instâncias superiores, como seja no presente caso, na Relação'.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal promoveu que o reclamante fosse notificado para constituir advogado e ratificar o processado - o que veio a acontecer - e, depois de sustentar que o arguido é parte legítima para recorrer sobre a questão de constitucionalidade, pronunciou-se pela rejeição do recurso, por este ser, 'manifestamente infundado', uma vez que 'o único parâmetro de aferição da constitucionalidade das normas em causa é o do artº 32º da Lei Fundamental, afigurando-se perfeitamente descabida a pretendida violação por tais preceitos da lei de processo penal do disposto nos artºs. 207º e 208º da Constituição'. E acrescentou:
'Ora é evidente que nunca poderá atingir o princípio constitucional das garantias de defesa a imposição - como regra, salvo casos de manifesta necessidade ou inviabilidade - de que tal defesa seja assegurada por advogado, de modo a assegurar a plena dignificação e eficácia do patrocínio devido ao arguido, colocando a sua defesa a cargo de técnico dotado de plena capacidade e preparação para pleitear sobre questões de direito, sempre que necessário.
Por outro lado, não vigorando obviamente em processo penal o princípio do dispositivo, é perfeitamente irrelevante esgrimir com a pretensa
'autonomia da vontade' do arguido, que lhe deveria consentir - eventualmente em prejuízo da eficácia e dignidade da sua defesa - o patrocínio mediante qualquer pessoa que o mesmo, considerando 'idónea', designasse para o patrocinar no processo'.
5. Corridos os vistos legais cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
6. A verificação dos requisitos de admissibilidade dos recursos, efectuada no momento da decisão de uma reclamação sobre a sua não aceitação, reporta-se ao momento da apresentação daqueles. A falta de patrocínio por advogado - necessária em sede de reclamação para o Tribunal Constitucional (cfr. o Acórdão nº 17/95, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Abril de 1995) - pode, porém, ser suprida a posteriori, com a ratificação do processado. Tendo tal sido feito no decurso da apreciação da reclamação sub judicio, importa verificar se naquele primeiro momento estavam preenchidos os requisitos de admissibilidade do concreto recurso interposto
(suscitação da inconstitucionalidade de uma norma 'durante o processo', a aplicação dessa norma na decisão recorrida e o prévio esgotamento dos recursos ordinários) e, naturalmente, os requisitos gerais de admissibilidade dos recursos (recorribilidade da decisão impugnada, tempestividade da interposição do recurso e legitimidade do recorrente).
7. Servindo a reclamação para reapreciar uma anterior decisão, parece preferível verificar a sua fundamentação a construir uma outra que, eventualmente, logre o mesmo resultado. Assim, importa antes de mais verificar se, como foi decidido, faltava ao recorrente legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional.
A decisão impugnada determina a anulação do julgamento aí realizado
- tal como pretendido, aliás, pelo recorrente. Tal decisão de anulação
'consome' as diferentes matérias que lhe estavam subjacentes (penal, civil, constitucional, custas), em termos de não ser possível separar a parte recorrida da não recorrida (cfr.o nº 1 do artigo 403º do Código de Processo Penal). Como escreve Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, Lex, 1992, p. 162:
'Seguindo a lição do Prof. Castro Mendes, dir-se-á que a expressão parte vencida deve entender-se no sentido de parte afectada objectivamente pela decisão. Quer dizer, é necessário que a parte haja sido afectada ou prejudicada pela decisão, ou seja, que não haja obtido a decisão mais favorável possível aos seus interesses. E tal afectação deve aferir-se pela parte decisória da decisão e não pelos respectivos fundamentos (se o autor pedir a anulação de um contrato com fundamento em certo vício e vir anulado o mesmo contrato por outro vício, é parte vencedora)'.
Tendo, pois, o julgamento da primeira instância sido anulado pela Relação, o ora reclamante não é vencido, uma vez que foi, justamente, essa anulação que ele pediu que a Relação decretasse.
Falta-lhe, por isso, legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional.
8. É certo que, como do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra resulta uma compressão da área de intervenção do Solicitador nos processos-crime que antes lhe tinha sido reconhecida, pode este considerar-se vencido e, assim, com legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional - legitimidade que ele também teria, de harmonia com o preceituado no nº 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil,aplicável ao recurso de constitucionalidade ex vi do artigo
72º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro). Porém, essa legitimidade apenas valeria para uma intervenção em nome próprio, e não também para recorrer em nome do seu constituinte, como se reconheceu, designadamente, no Acórdão nº 17/95, já citado.
III - Decisão.
8. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide--se indeferir a presente reclamação e condenar o reclamante em custas,fixando-se, para o efeito, a taxa de justiça em cinco Unidades de Conta.
Lisboa, 6 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Bravo Serra Luis Nunes de Almeida Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa