Imprimir acórdão
Processo n.º 860/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O objeto do recurso – que incide sobre a decisão de 15 de novembro de 2011, proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – traduz-se na apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), quando interpretada conjugadamente com os artigos 425.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, todos do Código de Processo Penal, no sentido adotado na decisão recorrida porquanto afirma que “sendo o acórdão da Relação irrecorrível, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 400º do CPP, não é a invocação de uma eventual nulidade que transforma esse mesmo acórdão em decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça”.
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência dum objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos se tais pressupostos estão presentes no caso concreto.
(…) Comecemos por analisar a natureza do objeto do recurso.
O controlo de constitucionalidade cometido a este Tribunal apenas pode incidir sobre normas ou interpretações normativas, enquanto regras abstratamente enunciadas e vocacionadas para uma aplicação genérica, sendo que recai sobre o recorrente o ónus de enunciar a concreta norma ou interpretação normativa, cuja sindicância pretende, de forma clara e inequívoca, identificando certeiramente o preceito ou conjugação de preceitos, em que tal critério normativo assenta, de forma a que seja reconhecível no mesmo um mínimo de correspondência à literalidade dos preceitos em causa.
Ora, no presente caso, resulta do requerimento de interposição de recurso que o recorrente não enuncia uma verdadeira questão normativa extraível da conjugação dos preceitos indicados.
Na verdade, limita-se a selecionar uma afirmação da decisão recorrida – decisão essa expressamente assente no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal – e a reportá-la a mais dois preceitos do mesmo diploma, pretendendo que a mesma assuma a dimensão de critério normativo extraível da conjugação de tais disposições legais.
Contudo, verifica-se que tal forma de enunciação do objeto de recurso não se revela idónea a dissimular a falta de correspondência entre a questão colocada e a literalidade dos preceitos que alegadamente lhe servem de suporte.
A esse propósito, pode ler-se no acórdão n.º 367/94 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) :
'Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão?só uma interpretação que do mesmo se faça.
Como toda a interpretação tem que ter 'na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso' (cf. artigo 9º, nº 2 do Código Civil), ao questionar?se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do texto do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição.”
Nestes termos, não tendo o recorrente logrado identificar certeiramente um critério normativo, reconhecível na literalidade dos preceitos legais que indicou – e cuja aplicação, relativamente a dois deles, é, aliás, expressamente afastada pela decisão recorrida – não pode o recurso interposto ser admitido.
(…) Sempre se dirá que a questão de constitucionalidade previamente suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal a quo, não coincide, sequer, desde logo quanto ao arco normativo de suporte selecionado, com o objeto de recurso.
De facto, na reclamação apresentada, a questão de constitucionalidade é formulada nos seguintes moldes:
“(…) a entender-se que da decisão recorrida não cabe o recurso, então tal entendimento das normas dos artigos 425º, n.º 4 e 379º, n.º 1, alínea c) do CPP violaria, de forma indiscutível, o disposto nos artigos 18º, 20º, 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que estabelecem o princípio constitucional de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa do arguido.”
O tribunal recorrido, relativamente a tal questão, refere:
“O reclamante alega ainda que o entendimento das normas dos arts. 425.º, n.º 4 e 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, para o caso de entender que da decisão recorrida não cabe recurso, violaria os arts. 18.º, 20.º, 32.º e 205.º da Constituição e o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Não há, porém, que conhecer da inconstitucionalidade imputada a estas normas, face ao âmbito da reclamação prevista no art. 405.º do CPP, uma vez que não foram aplicadas nem no despacho reclamado nem na decisão da reclamação.”
Ora, baseando-se a interposição do presente recurso na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a sua admissibilidade estaria ainda dependente do cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (ex vi artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
O cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão da constitucionalidade, que constitui objeto do recurso, seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria. Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação da referida questão – que terá de coincidir com a que, ulteriormente, venha a ser enunciada como objeto do recurso de constitucionalidade – e uma fundamentação, minimamente concludente, com indicação precisa do preceito ou bloco normativo cuja legitimidade constitucional se pretende questionar ou interpretação ou dimensão normativa de tal preceito ou bloco que se reputa violador da Constituição.
No presente caso, desde logo, o recorrente erigiu como suporte da questão de constitucionalidade, que apresentou junto do tribunal a quo, dois preceitos legais, cuja aplicabilidade a decisão recorrida expressamente afastou.
Não existe coincidência entre os preceitos, em que assenta a questão de constitucionalidade suscitada previamente perante o tribunal a quo, o preceito que constitui a ratio decidendi da decisão recorrida e o arco normativo, selecionado pelo recorrente, como suporte da questão enunciada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Em consonância com tudo quanto fica exposto, fica prejudicado o conhecimento do objeto do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. O reclamante reitera que “pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 400º, n.º 1, al. f), quando interpretada conjuntamente com os artigos 379º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 ex vi 425º, n.º 4 do C.P.P.”, mais esclarecendo que a questão colocada se prende com a “existência de uma restrição do direito de recorrer dos acórdãos nulos quando está em causa um acórdão que confirmou a decisão de primeira instância que aplicou pena de prisão não superior a oito anos, isto é, o direito de arguição de nulidades de uma decisão judicial.”
Defende que a questão enunciada tem uma natureza normativa, extraível da conjugação das disposições legais indicadas – de que resulta “a admissibilidade de interposição de recurso com fundamento na nulidade da decisão proferida pelo tribunal da relação” – sendo que o facto de a decisão recorrida ter afastado tal critério normativo não prejudica a admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, refere o reclamante que a circunstância de a decisão recorrida não aplicar dois dos preceitos indicados “não significa que não seja oportuna a sua invocação, caso contrário não se estaria a admitir a sindicância da matéria de direito considerada nas decisões judiciais e, consequentemente, violar-se-ia o artigo 32º, n.º 1 da C.R.P..”
Nestes termos, conclui o reclamante que deve a presente reclamação ser atendida, admitindo-se o recurso interposto.
5. O Ministério Público, em resposta, manifesta a sua concordância com a decisão sumária proferida.
Alega que o reclamante não integrou o preceito utilizado como fundamento jurídico da decisão recorrida – o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal – no conjunto normativo, cuja inconstitucionalidade suscitou previamente junto do tribunal recorrido, não tendo, em consonância, a questão sido conhecida na decisão recorrida.
Refere ainda que igualmente assiste razão à decisão reclamada, na parte em que conclui que o recorrente não logrou identificar certeiramente um critério normativo, reconhecível na literalidade dos preceitos legais que indicou, e cuja aplicação, relativamente a dois deles, é, aliás, expressamente afastada pela decisão recorrida.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Na verdade, a reclamação deduzida parece partir de um equívoco do reclamante, assente na expectativa de que o presente recurso é adequado a sanar “incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto” ou a permitir “a sindicância da matéria de direito considerada nas decisões judiciais”, sendo por isso possível aferir da conformidade constitucional de determinado “critério normativo”, reputado como correto para a solução do caso concreto, na perspetiva do recorrente, apesar da sua não “consonância com o disposto na decisão recorrida que o afastou perentoriamente.”
Esquece o reclamante que o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional. A este propósito, cumpre relembrar as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que se transcrevem:
“ (…) sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)”
Assim, não tendo o reclamante logrado enunciar um verdadeiro critério normativo, com um mínimo de correspondência ao teor literal dos preceitos legais que indicou, ficou prejudicada a admissibilidade do recurso, que sempre estaria comprometida pelo incumprimento do ónus de suscitação prévia da questão, de modo adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Como se refere na decisão reclamada, o reclamante não conseguiu, desde logo, fazer coincidir – como se impunha – a indicação dos “preceitos, em que assenta a questão de constitucionalidade suscitada previamente perante o tribunal a quo, o preceito que constitui a ratio decidendi da decisão recorrida e o arco normativo” utilizado “como suporte da questão enunciada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.”
Pelo exposto, sendo certo que a decisão reclamada merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 15 de fevereiro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 28 de março de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.