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Processo nº 666/95
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. foi condenada, pelo tribunal colectivo da 8º Vara Criminal da Comarca de Lisboa, por acórdão de 6 de Abril de 1985, como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Inconformada, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e, na respectiva motivação, suscitou a questão de constitucionalidade das normas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 32º da Constituição da República (CR) e 127º do mesmo Código, em seu entender lesante dos nºs. 1 e 5 do mesmo artigo
32º.
O STJ, por acórdão de 11 de Outubro de 1995, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, após ter, além do mais, julgado insubsistentes as invocadas questões de constitucionalidade.
2.- Recorreu, então, a arguida para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sustentado a inconstitucionalidade daquelas normas. As duas primeiras, uma vez que se restringe o duplo grau de jurisdição sobre os factos hipóteses contempladas nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º, assim se violando o disposto nos artigos 12º, 13º, 32º, nºs. 1 e 5, e 212º, nº 5, do CR;
a última porquanto não estabelece os limites legais sobre que deve incidir a apreciação da prova, desse modo se violando o citado artigo 32º.
Admitido o recurso, alegaram a recorrente e o Ministério Público.
A primeira conclui assim as suas alegações:
'1.- O artº 410º não permite o reexame da matéria de facto;
2.- As alíneas do nº 2 do artº 410º, circunscreve(m) a reapreciação de facto ao 'texto da decisão recorrida';
3.- Não sendo os factos quesitados, não permitem que se descubra o vício mesmo quando a decisão em si enferma de irregularidades na ponderação da prova recolhida em audiência;
4.- Quando a matéria de direito se não apresenta como controversa o cidadão recorrente encontra-se limitado na sua legítima expectativa de ver o seu caso reexaminado sob o aspecto fáctico;
5.- As disposições combinadas dos artºs. 432º, al. c), 433º,
410º, nºs. 2 e 3 do C.P.P. estão feridas de inconstitucionalidade por violação do duplo grau de jurisdição ex vi artº 32º, nº 1 da C.R.P., artº 11º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, recebido e elevado a princípio constitucional pelo artº 16º, nº 2 da C.R.P. e do artº 14º, nº 5 do Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos de 16 de Dezembro de 1966, aprovado pela Lei nº 29/78 de 12 de Junho e artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovado pela Lei 65/78 de 13 de Outubro.
6.- Assim sendo, devem as normas referentes aos artºs. 410º e
433º do Cód. Proc. Penal serem declaradas inconstitucionais.
7.- No caso concreto o Tribunal absteve-se de ponderar as circunstâncias exteriores e adversas de carácter familiar, nomeadamente,
8.- filhos e nora toxicodependentes e donos da droga.
9.- Considerando unicamente o padrão de mãe média - normal face à patologia da toxicodependência dos filhos e não o caso concreto daquela mãe ponderando os interesses e a união da família.
10.- O Tribunal apreciou segundo o que lhe parece que logicamente deveria se ser o comportamento de um mãe abstendo-se da realidade factual.
11.- O artº 127º do C.P.P. ao não estabelecer um limite para a
'livre convicção' e ao socorrer-se do conceito, vago e abstracto, de 'regras de experiência', encontra-se ferido de inconstitucionalidade material evidente, por violação do disposto no artº 32º nºs. 1 e 5 da C.R.P. e por permitir, na ausência de outro preceito normativo análogo, a aplicação subsidiária do artº
396º do Código Civil.'
Por sua vez, contra-alegando, conclui o Senhor Procurador-Geral Adjunto:
'1º- O sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo penal em vigor, emergentes do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal, não violam quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.
2º- A norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, ao mandar valorar a generalidade dos meios de prova produzidos em processo penal segundo as regras de experiência e a livre apreciação do julgador, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
3º- Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
Constituem objecto do recurso duas questões de constitucionalidade.
A primeira respeita aos poderes cognitivos do STJ como tribunal de recurso em processo penal e prende-se com as normas dos artigos
410º e 433º do CPP, tendo sido já objecto de numerosa jurisprudência deste Tribunal que, de forma reiterada se bem que não unânime, tem-se pronunciado no sentido da sua não inconstitucionalidade.
A segunda defende a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 127º do CPP, enquanto consagradora do princípio da livre apreciação da prova pelo julgador.
Passaremos a abordar uma e outra das questões suscitadas.
1.1.- As normas dos artigos 433º e 410º, nºs. 1 e 2, estão entre si numa relação de interdependência.
Diz-nos o artigo 433º, a propósito dos poderes de cognição do STJ nos recursos para esse Tribunal interpostos:
'Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.'
E dispõe o artigo 410º relativo aos fundamentos do recurso em processo penal, no âmbito da sua tramitação unitária:
'1- Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2- Mesmo que nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3- O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.'
1.2.- Decorre dos preceitos transcritos que o STJ, enquanto tribunal de recurso, só conhece, em regra, matéria de direito, restringindo-se os seus poderes de cognição, em matéria de facto, a verificar, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, se há suficiência ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, se existe contradição insanável da fundamentação ou se foi cometido erro notório na apreciação da prova.
Acresce ainda, no elenco dos fundamentos de recurso para o STJ, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Configura-se, assim, o recurso penal interposto para o STJ do acórdão final do tribunal colectivo, como um recurso de revista ampliada, em que o Supremo é chamado a reapreciar a decisão da 1ª instância apenas no que à matéria de direito respeita, por via de regra, se bem que possa intervir quanto à matéria de facto nos casos contemplados nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º.
Ora, a problemática da constitucionalidade que a recorrente suscita tem, como já se observou, merecido a atenção deste Tribunal em termos que, pela sua reiteração e uma vez que se não vislumbram razões válidas para os afastarmos no concreto caso, passaremos a seguir de perto as considerações tecidas, inter alia, no acórdão nº 170/94, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Julho.
1.2.1.- De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 32º da CR, o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
No entanto, entre essas garantias não se consagra expressamente o princípio do duplo grau de jurisdição, como também acontece com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, já o mesmo, no entanto, não sucedendo no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos - aprovado, para ratificação, pela Lei nº
29/78, de 12 de Junho - que consagra, em matéria penal, essa garantia, nos termos seguinte: 'qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei' (cfr. artigo 14º, nº 5).
Não obstante, o Tribunal Constitucional tem entendido, firmemente, que uma das garantias de defesa a que o nº 1 do artigo
32º se refere é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, valendo, em regra, no processo criminal, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.
No domínio da matéria de facto há, porém, razões de practibilidade e outras, decorrentes da exigência da imediação da prova, justificativas de não poder o recurso penal assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito, bastando pensar que, nesse capítulo, uma identidade de regime conduziria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo.
No Acórdão nº 401/91 deste Tribunal (publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992) ao declarar-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, teve-se em conta essa ponderação ao consignar-se expressamente que a inconstitucionalização desse regime não podia ser entendida 'como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência perante as Relações está em conflito com a Constituição'. E acrescentou-se: 'É que, entre o sistema em questão [...], e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Ora, o sistema de revista ampliada instituído pelo CPP de 1987 deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento
(designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto) assim o defendendo do risco de uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o STJ dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de desde logo assinalar-se que o tribunal colectivo, tendo em conta as regras do seu próprio funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento, constitui, ele próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto.
A respeito da garantia resultante da estrutura dos tribunais colectivos, pode dizer-se, com Cunha Rodrigues, que 'assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanta quanta possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança' (cfr. 'Recursos' in - Jornadas de Direito Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pág. 393). Sem esquecer, por outro lado, que sempre o STJ poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento quando apure a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova (cfr., quanto ao reenvio, o disposto nos artigos 426º e 436º do CPP).
Entende-se que este quadro garantístico oferece uma protecção constitucionalmente adequada e defende os cidadãos, tanto quanto é legítimo extrair dos princípios, da prolação de sentenças injustas.
1.2.2.- Poderá alegar-se que o vício relevante para o reenvio do processo, ao ter de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, só muito dificilmente poderá ser despistado pelo STJ, pois que, resumindo-se a fundamentação da sentença, frequentemente, a uma remissão genérica para os diferentes meios de prova, aquele tribunal ver-se-á, na prática, impossibilitado de detectar as insuficiências, contradições ou erros que, em matéria de facto, ali se possam conter.
No caso sub judicio, concretamente, recorre-se a esse tipo de argumentação quando, em síntese, se alude a uma frustração do reexame do caso sob o aspecto fáctico, impedindo a descoberta do vício não obstante a decisão enfermar 'das maiores irregularidades na ponderação da prova' colhida em audiência.
Não releva, na verdade, este tipo de argumentação no recurso de constitucionalidade, mas sempre se dirá que a enumeração feita na decisão do colectivo quanto aos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 374º, nº 2, do CPP, permite ao tribunal de recurso assegurar a avaliação da ratio decidendi em termos que se têm julgado constitucionalmente adequados.
Nem se diga, como a recorrente pretende, que esse sistema permite a condenação 'à convicção', como forma do tribunal de recurso conhecer da verdade material fundado no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Este é, aliás, a última questão de constitucionalidade suscitada, que se articula com o disposto no artigo 127º do CPP.
2.1.- Diz-nos, com efeito, este preceito, sob a epígrafe 'Livre apreciação da prova': 'Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a aprova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'.
Na tese da recorrente, esta norma, ao não estabelecer um limite à 'livre convicção' e ao socorrer-se do conceito, vago e abstracto, de 'regras de experiência', viola o disposto no artigo 32º, nºs. 1 e 5 da CR, permitindo, na ausência de outro preceito normativo análogo, a aplicação subsidiária do artigo 396º do Código Civil.
Resta ponderar se lhe assiste razão, sendo certo que estará, também, em causa, para além do nº 1 do artigo 32º da lei fundamental, o seu nº 5, nos termos do qual o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
2.2.- Não é exacto que a livre apreciação da prova a que se refere a norma do artigo 127º não esteja sujeita a limites, como pretende a recorrente.
Com efeito, o julgador actua segundo pressupostos valorativos tais como, anota Maia Gonçalves, os critérios da experiência comum e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, o que de modo algum significa ausência de limites ou apreciação arbitrária da prova (cfr. Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 7ª edição, 1996, pág. 262).
Ou seja, não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo de valoração do julgador com o mero arbítrio. A 'livre' ou 'íntima' convicção do juiz não poderá ser puramente subjectiva, emotiva e portanto imotivável mas, não deixando de ser pessoal, há-de ser racionalizada, objectiva e motivável, de modo a susceptibilizar controlo (cfr. J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1979, págs. 198 e segs.).
Sendo certo que o sistema vigente repudia o regime de prova vinculada, nem por isso deixa de ser mitigada a livre convicção, de modo a evitar situações de valoração da prova de forma 'caprichosa' ou
'arbitrária' (cfr. Marques Ferreira, 'Meios de Prova' in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pág. 230). O legislador impõe ao julgador, na verdade, que motive as suas decisões em matéria de facto - artigo 374º, nº 2, do CPP - e essa exigência de fundamentação adquire em certas áreas particular especificidade, como no respeitante à apreciação dos factos constantes de documentos autênticos ou autenticados ou a peculiar exigência científica que deve acompanhar a valoração pelo julgador da prova pericial.
A aceitação da tese da recorrente implicaria o esvaziamento da função judicial constitucionalmente assegurada em nome de princípios que, nomeadamente apelando para o contraditório, reduziriam a função de julgar à singela mecânica da subsunção, com uma inerente incompletude.
E sempre, de qualquer modo, a articulação do disposto no artigo 127º com o nº 2 do artigo 410º - observável mercê do artigo 433º - pressupõe um mecanismo adequado de controlo.
Conclui-se, assim, por, também nesta perspectiva, não existir motivo para censurar o decidido, no âmbito jurídico-constitucional.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido no que à matéria de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 19 de Novembro de 1996 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma (vencida em parte quanto às questões de constitucionalidade relacionadas com os artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal nos termos de declaração de voto junta ao Acórdão 828/96). Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa