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Proc.Nº 637/95
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - O Ministério Público deduziu acusação contra A. e B. imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, crime este previsto e punido nos artigos 23º e 24º, nº2, alínea c), do Decreto-Lei º 13004, de 12 de Janeiro de 1927, na redacção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro.
Após a pronúncia e designado e iniciado o julgamento, por ter entretanto entrado em vigor o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, foi declarado extinto o procedimento criminal, por se ter perfilhado o entendimento de que a conduta incriminada havia sido descriminalizada por força do referido diploma.
Interposto recurso pelo Ministério Público, a Relação de Lisboa, por acórdão de 24 de Maio de 1994, veio a conceder provimento ao recurso e, em consequência, ordenou a substituição do despacho recorrido por outro que ordenasse o prosseguimento dos autos.
Notificada deste despacho, a arguida B. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), aí invocando a inconstitucionalidade do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral e também a inconstitucionalidade do Assento nº 6/93, em que se fundamentou a decisão, por violação do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa.
O STJ, por acórdão de 19 de Janeiro de 1995, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformada, a arguida notificada desta decisão, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional. Mas, no seu requerimento não cumpriu o artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que o relator o convidou a completar o requerimento. A recorrente veio então esclarecer que ' o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº1, e nº2, do artigo 70º da Lei nº28/82, de 15 de Novembro, e que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada é a do artigo 2º, do Código Civil, e também o Assento nº 6/93, de
7 de Abril, por violação do artigo 115º, da Constituição da República Portuguesa'.
2. - Recebido o processo neste Tribunal, ordenou-se a produção de alegações, tendo a recorrente formulado as seguintes conclusões:
'1 - A norma do artº 2º, do Cód.Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, é inconstitucional, por violar o disposto no artº 115º, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Donde ser inconstitucional, por violação do artº 115º, da Constituição, o Assento nº 6/93, de 7 de Abril.
3 - Assim, as condutas anteriormente previstas e puníveis pelo artº 24º, do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, foram despenalizadas, por existir, por força do artº 11º, nº 1, al. a), do Dec.-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, um novo 'tipo-legal' do crime de emissão de cheque sem provisão.
4 - Defendendo-se que se o elemento típico 'prejuízo patrimonial', hoje integrante da norma incriminadora, contida no artº 11, nº 1, al.a), do Dec.-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, não constar da acusação ou da pronúncia, não se pode dar por verificado o crime de emissão de cheque sem provisão.
5 - Além de, com a nova lei, se encontrarem revogados os arts. 23º e 24º, do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927 (cfr. artº 7º, nº 2, do Cód. Civil).
6 - Sendo certo que o 'facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções' (artº
2º, nº2, do Cód. Penal).
7 - Violando o douto acórdão recorrido pelo menos o artº 115º, da Constituição da República Portuguesa, o artº 11º, nº 1, al. a), do Dec.-Lei nº
454/91, de 28 de Dezembro, os arts. 23º e 24º do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, e o artº 2º, nº2, do Cód. Penal.'
Pelo seu lado, o Ministério Público suscitou nas respectivas alegações a questão prévia do não conhecimento do recurso, por entender que não está preenchido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso da alínea b) do nº 1 doa artigo 7º da Lei do Tribunal Constitucional - o pressuposto da aplicação da norma questionada pela decisão recorrida.
Face à suscitação desta questão prévia, foi a recorrente notificada para dizer o que tivesse por conveniente, pronunciando-se no sentido da admissibilidade do recurso e do conhecimento do respectivo mérito.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
3. - O presente recurso vem interposto ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
De acordo com as mencionadas normas, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Assim, os recursos interpostos ao abrigo da referida alínea b) apenas são admissíveis se, juntamente com outros requisitos, estiverem cumpridos os dois a seguir identificados:
- que a inconstitucionalidade da norma tenha sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo;
- que essa norma venha a ser aplicada na decisão, constituindo um dos seus fundamentos normativos.
Este Tribunal vem entendendo o primeiro dos mencionados requisitos - suscitação «durante o processo» - por forma a que ele deva ser tomado não num sentido puramente formal -tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância -, mas num sentido funcional - tal que a arguição de inconstitucionalidade deverá ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Deve, portanto, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal
«a quo» sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.
Na conceptualização que o Tribunal tem vindo a fazer da expressão «durante o processo», não pode deixar de se ter em atenção que a suscitação da questão de constitucionalidade nas alegações ou na motivação do recurso ordinário que a parte podia legitimamente interpor contra a decisão da instância que pretendia impugnar, é também um modo de suscitar 'durante o processo' a questão de constitucionalidade, isto é, por forma adequada ao seu posterior conhecimento pelo Tribunal Constitucional.
Quanto ao segundo requisito, importa referir que a norma cuja inconstitucionalidade for suscitada durante o processo terá de ser fundamento da decisão, aplicada, em regra, na sequência do não atendimento da arguição de inconstitucionalidade.
4. - No caso em apreço, a recorrente suscitou claramente, nas suas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a questão da conformidade constitucional da norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, sendo também inconstitucional o Assento nº 6/93, de 7 de Abril, em ambos os casos, por violação do artigo 115º da CRP.
O Ministério Público, ao suscitar a questão prévia entendeu que a decisão recorrida não só não tinha aplicado o referido artigo 2º do Código Civil como também o mencionado assento.
Vejamos.
Analisando os termos do acórdão recorrido, verifica-se que a decisão recorrida utilizou a 'norma' do dito Assento nº 6/93 para resolução da questão jurídica que vinha suscitada nos autos.
Este 'Assento' - é assim que vem identificado na publicação oficial ('Diário da República', I ª Série A, de 7 de Abril de 1993) -
é um acórdão de fixação de jurisprudência tirado em matéria penal ao abrigo dos artigos 437º e seguintes do Código de Processo Penal.
De acordo com estas normas, criou-se um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o caso da existência de duas decisões com soluções opostas, hipótese em que o Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis podem recorrer do acórdão proferido em último lugar para o plenário das secções criminais, decisão esta que, nos termos do artigo 445º, nº1, constitui jurisprudência obrigatória apenas para os tribunais judiciais, admitindo-se, em certos casos, a revisibilidade de tais decisões
(artigo 447º, nº2, do CPP).
Assim, não pode deixar de se concluir que estes acórdãos
- ainda que se lhe chame «assento» - não têm força obrigatória geral, isto é, não têm a força ou eficácia de uma vinculação normativa universal valendo apenas, como se referiu, no âmbito da jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais.
Não tendo estes acórdãos de fixação de jurisprudência - ainda que obrigatória para a ordem de tribunais de onde emanam - força obrigatória geral, isto é, não tendo o carácter de fonte de direito, nunca estariam abrangidos pela norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribuía aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral (parte essa que foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão nº 743/96, publicado no Diário da República, I Série-A, de 18 de Julho de 1996).
Nestes termos, é manifesto que a norma cuja constitucionalidade vem questionada - o artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, não foi aplicado na decisão recorrida, isto é, não foi seu fundamento normativo relevante, pelo que não pode conhecer-se do objecto do recurso, nesta parte, por falta de um dos requisitos legais de admissibilidade.
5. - A recorrente no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade pretende também que se aprecie a conformidade constitucional do próprio «Assento» nº 6/93.
Porém, das conclusões das alegações da recorrente, atrás transcritas (ponto 2), decorre inequivocamente que tal questão é meramente consequencial à questão - essa sim, fundamental - da inconstitucionalidade do artigo 2º, do Código Civil.
Assim, tendo-se concluído pela falta de um dos requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, não pode conhecer-se do respectivo objecto, na parte referente ao artigo 2º do Código Civil, ficando necessariamente prejudicado o conhecimento da questão consequencialmente deduzida.
III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
5 Uc’s.
Lisboa, 1996.10.22 Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa