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Processo nº 314/94
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. J... propôs no Tribunal de Trabalho de Lisboa (5º
Juízo), contra a C..., EP, em liquidação, acção declarativa de condenação,
peticionando a condenação desta a reconhecer um seu crédito, no valor de 1 499
543$00, incluindo-o no mapa a que se refere o artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº
138/85, de 3 de Maio, para ulterior graduação no lugar competente.
Findo o julgamento, conheceu-se oficiosamente,
julgando-a procedente, a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão
da matéria, do Tribunal de Trabalho, absolvendo-se a ré da instância.
Agravou o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa,
sem sucesso, confirmando este a decisão recorrida.
De novo inconformado recorreu o autor para o Supremo
Tribunal de Justiça. Este, negando provimento ao agravo, decidiu ser competente
em razão da matéria para conhecimento da causa o Tribunal Cível de Lisboa.
De tal decisão, cumpre salientar as seguintes passagens:
'... como, entretanto, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 151/94, de 8
de Fevereiro, publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de
1994, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do
nº 1, do artigo 8º, do citado Decreto-Lei nº 138/85 - quando interpretada no
sentido de que os tribunais comuns a que aí se faz referência são os tribunais
cíveis e estejam em causa créditos oriundos de relações laborais - há que pôr de
lado essa norma.
Sendo assim, (...) a questão da competência em razão da matéria
tem de ser apreciada em face do disposto no nº 4, do artigo 43º do Decreto-Lei
nº 260/76, de 8 de Abril, que estabeleceu as bases gerais das empresas públicas,
como a ré era.
Este diploma legal subtraíu a extinção e a liquidação do seu
património às regras da dissolução e liquidação das sociedades e aos institutos
da falência e da insolvência, como se vê do seu artigo 37º, nº 2.
Nos termos do disposto no nº 4, do artigo 43º, do Decreto-Lei nº
260/76, os credores cujos créditos não hajam sido reconhecidos pelos
liquidatários e incluídos na relação referida no número anterior ou que não
tenham sido graduados em conformidade com a lei, podem recorrer aos Tribunais
comuns, para fazerem valer os seus direitos.
A similitude com a norma do nº 1, do artigo 8º, dos Decretos-Leis
nºs 137/85 e 138/85, é manifesta, o que permitiria, até, considerar
desnecessária a inclusão de uma tal norma nesses diplomas legais.
Ao tempo, porém, daquela norma, a organização judiciária então em
vigor - o Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44 278, de 14 de
Abril de 1962 - distinguia, quanto à competência em razão da matéria, os
Tribunais em Tribunais comuns e Tribunais especiais, pertencendo àqueles as
causas não atribuídas a jurisdição especial, sendo o Tribunal comum o Tribunal
civil e pertencia ao Tribunal de comarca, em primeira instância, a plenitude da
jurisdição civil - artigos 66º e 67º, do Código de Processo Civil. Os Tribunais
do Trabalho estavam então integrados nos Tribunais especiais.
Enquanto vigorou o referido Estatuto Judiciário dúvida não podia
haver de que os credores das empresas públicas, nos casos referidos no nº 4, do
artigo 43º, do Decreto-Lei nº 260/76, só podiam fazer valer os seus direitos
perante os Tribunais civis e não perante os tribunais do trabalho, então
especiais, repete-se.
Como, porém, posteriormente, a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e
a Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro, alteraram a organização judiciária,
verifica-se que se passou de uma classificação bipartida - tribunais comuns e
tribunais especiais - para uma distinção, nos tribunais judiciais de 1ª
instância, em função das matérias das causas que lhes são atribuídas, entre
tribunais de competência genérica e de competência especializada, com a
faculdade de, em casos justificados, poderem ainda ser criados tribunais de
competência especializada mista - artigo 46º, nºs 1 e 2, da Lei nº 38/87.a
competência-regra, anteriormente atribuída ao Tribunal comum, pertence agora ao
Tribunal de competência genérica, competindo, também, aos tribunais cíveis, onde
existam, como tribunais de competência especializada, preparar e julgar acções
de natureza cível, que não estejam atribuídas a outros Tribunais; em matéria
cível, a competência dos Tribunais cíveis é, portanto, genérica - artigos 53º e
56º, da referida Lei nº 38/87.
Logicamente, pois, a competência para preparar e julgar as
causas, como a dos autos, pertence, actualmente, ao Tribunal de competência
genérica ou ao Tribunal cível, onde ele exista.'
2. É desta decisão que o Ministério Público e o autor
interpuseram recursos para este Tribunal, nos termos da alínea a), do nº 1, do
artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), sendo ambos admitidos.
Alegaram formulando, respectivamente, as seguintes
conclusões:
(o Mº.Pº.) '1º
Os acórdãos nºs 270/93, 271/92, 164/93 410/93, 519/93 e 151/94,
ao julgarem inconstitucionais as normas - absolutamente idênticas - constantes
do artigo 8º, nº 1, dos Decretos-Leis nºs 137/85 e 138/85, de 3 de Maio, quando
interpretadas no sentido de que os tribunais comuns de que aí se fala são os
tribunais cíveis, quando estejam em causa créditos oriundos de relações
laborais, não decretaram a inconstitucionalidade 'in totum' de tais preceitos
legais, mas apenas de certa e determinada interpretação dos mesmos.
2º
Deverá, pois, a norma constante do artigo 8º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 137/85 ser interpretada e aplicada pela ordem dos tribunais
judiciais em conformidade com o sentido, constitucionalmente conforme à
Constituição da República Portuguesa, e implícito naquelas decisões, de que os
tribunais comuns aí referidos são os que se configuram como competentes, atenta
a matéria da causa e a repartição da competência entre os tribunais de
competência especializada existentes, face à Lei Orgânica de Tribunais Judiciais
- ou seja, os tribunais do trabalho.
3º
Nestes termos, deverá ser julgado procedente o presente recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de
constitucionalidade da norma desaplicada, com o sentido atrás atribuído.
(o autor)
'a) Face à al. q) do nº 1 do artº 168º da C.R.P. a competência
dos tribunais é matéria integrante da reserva relativa de competência da
Assembleia da República, sendo que o dec.-lei 137/85 de 3 de Maio, foi emitido
sem precedência de autorização legislativa;
b) Logo, a expressão 'tribunal comum' inserta no nº 1 do seu artº
8º tem que coincidir com quanto dispõe a lei ordinária, sob pena de ter que
concluir-se pela sua inconstitucionalidade orgânica;
c) A C.R.P. (artº 301º 1.) logo na sua versão originária, impôs a
revisão da orgânica judiciária, cuja sede única passou a ser a LOTJ/77;
d) Os anteriores tribunais comuns passaram a ser designados como
judiciais e, por força dessa revisão do sistema, entre eles se integraram os
tribunais do trabalho, com competência para as questões laborais de natureza
cível:
e) O artº 8º 1. do dec.-lei 137/85 pode e deve ser interpretado
de molde a incluir os tribunais do trabalho, quando estejam em causa créditos
laborais, assim ficando preservada a sua conformidade constitucional.'
A recorrida C..., por sua vez, pugnando pela
improcedência do recurso, concluíu o seguinte:
'1 - O artº 43º, nº 4 do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril,
por ser anterior à Constituição, não pode ter violado a regra de competência do
seu artº 168º, nº 1, al. g);
2 - Da aplicação desse preceito do Decreto-Lei nº 260/76 também
não decorre qualquer contradição com a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, uma vez
que desta não resulta qualquer intenção revogatória daquele preceito especial.
3 - A subsistência desta norma especial do Decreto-Lei nº 260/76
(a par das do CPC que asseguravam o princípio da plenitude da instância
falimentar) em nada afecta a unificação da organização judiciária, prosseguida
pela Lei nº 82/ /77, antes se mostra em maior conformidade com essa unificação.
4 - A subsistência deste mesmo preceito, interpretada nos termos
do douto Acórdão do STJ, não fere directa ou indirectamente qualquer norma ou
princípio da Constituição nem importa juízo algum quanto à conformidade ou
desconformidade constitucional do artº 8º, nº 1 do Decreto-Lei nº 138/85, de 3
de Maio, em qualquer dos seus entendimentos possíveis, antes o afastando pela
prevalência do preceito especial inicialmente referido.'
Sem vistos (suscitando-se a mesma questão em diversos
processos pendentes neste Tribunal), importa decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
3. Através do Acórdão nº 151/94, publicado no Diário da
República, I Série-A, de 30 de Março de 1994, declarou o Tribunal Constitucional
a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do nº 1, do
artigo 8º, do Decreto- -Lei nº 138/85, quando interpretada no sentido de que os
'tribunais comuns' a que nessa norma se faz referência são os 'tribunais cíveis'
e estejam em causa créditos oriundos de relações laborais, por violação do
disposto na alínea q), do nº 1, do artigo 168º, da Constituição, na versão
introduzida pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro.
O Acórdão ora recorrido, lendo esta declaração de
inconstitucionalidade como reportada à norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei
138/85 globalmente considerada, e não apenas a determinada interpretação desta,
acabou por lhe recusar aplicação na totalidade ('... há que pôr de lado essa
norma', lê-se na decisão recorrida), em vez dela, a aplicar o nº 4, do artigo
43º, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, o que na prática equivaleu
(através da interpretação da expressão 'tribunais comuns' aí empregue) à
consagração da solução afastada pelo Tribunal Constitucional no mencionado
Acórdão nº 151/94.
Mostrando-se preenchido, em resultado dessa decisão de
recusa do nº 1, do artigo 8º, do Decreto-Lei 138/85 'in toto', o pressuposto do
recurso de constitucionalidade estabelecido no artigo 70º, nº 1, alínea a), da
LTC, importa apreciar a decisão recorrida.
4. Fundou-se a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral desse artigo 8º, do diploma de extinção da C...,
resultante do Acórdão nº 151/94, numa determinada interpretação dessa norma:
aquela em que a expressão 'tribunais comuns' era entendida como reportada aos
tribunais cíveis. Assim sendo, só esta dimensão interpretativa da norma emerge,
dessa declaração, como constitucionalmente ilegítima, permanecendo sempre a
possibilidade de aplicar o referido trecho do artigo 8º (em conformidade com a
Constituição) reportando a expressão 'tribunais comuns', estando em causa
créditos laborais, aos tribunais de trabalho, entendidos estes, posteriormente à
Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro), como
integrados 'na unidade da organização judiciária (...) como tribunais de 1ª
instância de competência especializada' (J. Rodrigues da Silva, citado no
Acórdão nº 151/94).
Ora, esta mesma questão numa situação em tudo semelhante
à que aqui se coloca, foi objecto de decisão deste Tribunal, com intervenção do
Plenário, nos termos do artigo 79º-A, da LTC, no recente Acórdão nº 163/95
(ainda inédito mas do qual foi junta cópia aos autos).
Aí se estabeleceu dever o artigo 8º nº 1, do Decreto-Lei
138/85 ser interpretado e aplicado com o sentido tido por constitucionalmente
conforme: o de que os 'tribunais comuns' aí referidos, subsequentemente à Lei nº
82/77, estando em causa créditos emergentes de relações laborais, são os
tribunais de trabalho.
É este o entendimento que aqui se reafirma, remetendo em
sede de fundamentação para esse Acórdão nº 163/95 e sublinhando ser tal
interpretação, nos termos do artigo 80º, nº 3, da LTC, vinculativa para o
Tribunal recorrido.
Resta, pois, formular a decisão.
III
DECISÃO
5. Pelo exposto, concedendo-se provimento aos recursos,
revoga-se a decisão recorrida, que deve ser reformulada por forma a aplicar no
julgamento do recurso a norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei 138/85, de 3 de
Maio, com o sentido de que a expressão tribunais comuns constante desse preceito
deve, após a lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e quando estejam em causa créditos
oriundos de relações laborais, entender-se como correspondendo aos tribunais de
trabalho.
Lisboa, 27 de Junho de 1995
José de Sousa e Brita
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Corria
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida