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Proc.Nº 487/96
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos autos à margem identificados, provenientes do Tribunal Judicial de Torres Novas, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos a companhia de seguros A. e o Hospital B., pelos fundamentos constantes da exposição preliminar de fls 30, a que não respondeu o recorrido Hospital B., tendo o representante do Ministério Público manifestado a sua concordância e cujos fundamentos não foram infirmados pela resposta da recorrida companhia de seguros A.,
- decide-se:
a) - não julgar inconstitucionais as normas dos artigos
2º, nº2, alínea a), e 4º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro,
b) - e, em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação do despacho recorrido, em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 1996.10.09 Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa
Proc.Nº 487/96
Sec. 1ª
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Exposição Preliminar do Relator a que se refere
o Artº 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional
1. - O Hospital B. requereu execução sob a forma sumária contra a companhia de seguros A., para pagamento de quantia certa, acrescida de juros de mora à taxa legal, sendo o pedido no valor global de Esc.s:233 389$00.
Citada a executada, veio deduzir embargos à execução, arguindo a inconstitucionalidade dos artigos 2º, nº2, alínea a) e 4º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro e também a inexigibilidade da obrigação exequenda.
Notificada a embargada para contestar, veio fazê-lo alegando desconhecer a condições em que ocorreu o acidente referido pela embargante - facto que lhe compete provar, deixando ao critério do Tribunal a decisão sobre a questão de constitucionalidade suscitada.
2. - Em 9 de Outubro de 1995, foi proferido pela senhora juiz um despacho em que se recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, das normas dos artigos 2º, nº2, alínea a) e 4º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, e, em consequência, julgou os embargos procedentes e a execução extinta.
A referida decisão, para chegar a essa conclusão, utilizou o seguinte encadeamento argumentativo:
'O D.L. 194/92 de 8 de Setembro vem regular a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, na sequência da norma contida na Base XXXIII nº 2 al.b) da Lei de Bases da Saúde
(Lei nº 48/90 de 24 de Agosto), onde expressamente se prevê a possibilidade de tais serviços públicos exigirem o pagamento de cuidados por parte de terceiros responsáveis, legal ou contratualmente, nomeadamente, subsistemas de saúde ou entidades seguradoras.
O diploma em apreço atribui às certidões de dívida emitidas pelos estabelecimentos de saúde a natureza de títulos executivos, desde que tais documentos reunam os requisitos enumerados no seu art.2º. Por conseguinte, a sede própria para obter o pagamento coercivo dos montantes devidos pela assistência médica prestada por unidades do Serviço Nacional de Saúde é a acção executiva.
Diz o art. 45º do C.P.C., 'toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.'
O título executivo constitui o fundamento necessário e suficiente para o exercício do direito de acção executiva, já que é dela que emerge o direito do credor e a obrigação correspectiva do devedor. O título executivo pode definir-se como o 'documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução; materialmente, é um meio legal de demonstração da existência do direito exequendo' (Castro Mendes, in Manual de Processo Civil, vol. III, pág.74).
É o texto do título que define a extensão do pedido, designadamente, o montante da dívida, o tipo de execução e a identidade das partes.
Assim, o cumprimento coercivo de determinado crédito, seja ele proveniente de cuidados médicos prestados nos hospitais ou de qualquer outro acto ou negócio jurídico, através da acção executiva, só pode ser exigido de quem seja efectivamente o devedor e pela quantia realmente em dívida.
Por isso é que a lei processual civil se rodeou das maiores cautelas, ao enumerar os diversos tipos de documentos a que atribui força executiva, bem como na previsão dos pressupostos de que depende a qualificação de determinado documento como título executivo. É que basta a apresentação do título em juizo para que a pessoa que dele consta como devedor seja citada para efectuar o pagamento ou indicar bens que, uma vez vendidos, possam garantir a satisfação do interesse do credor, fora os casos em que é de imediato ordenada a apreensão dos seus bens (arts.811º nº 3; 924º nº 2 e 927º nº 3 do C.P.C.).
Acontece, porém, que, na grande maioria das situações, como também no caso vertente, as lesões que dão lugar aos tratamentos médicos prestados pelas unidades de saúde e a que se reportam as certidões de dívida do D.L.194/92, têm a sua origem em acidentes de viação.
E, caso haja dúvidas sobre o modo e circunstâncias em que o mesmo ocorreu, impõe-se averiguar quem foi o causador do acidente e, consequentemente, quem será o responsável pelo ressarcimento dos danos, entre os quais, obviamente se incluem as despesas com a assistência aos sinistrados.
Cabe exclusivamente aos Tribunais a tarefa de administrar a Justiça e dirimir os conflitos entre os cidadãos, interpretando e aplicando o Direito.
Assim sendo, só os Tribunais têm competência para, em caso de dúvida ou de litígio, averiguar e decidir a quem é imputável o facto gerador da obrigação de indemnizar, o que constitui um corolário do princípio acima referido e com consagração constitucional - cfr. o art. 205º da C.R.P.
Ora, o que o D.L. 194/92, no seu art. 2º nº 2 al. a), permite é que seja o próprio órgão de administração do hospital a determinar a pessoa do responsável pelo pagamento das dívidas contraídas, sem que tal indicação possa ser alvo de controle jurisdicional (a não ser quando e se o executado deduzir embargos para discutir as causas do acidente).
E isto é tanto mais grave, quanto é sabido que podem verificar-se situações de concorrência de culpas ou mesmo concorrer alguma das causas de exclusão previstas no art. 505º do C.C.
Acresce que a Lei de Bases da Saúde, que o diploma em apreço veio regulamentar não prevê as condições ou a forma por que há-de efectuar-se a cobrança de dívidas aos hospitais, mas nada autoriza a afirmar que dispensou o recurso prévio à acção declarativa.
Do que fica exposto, forçoso é concluir que os arts. 2º nº 2 al. a) e 4º do D.L. 194/92 de 8.9 são materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 205º da Constituição da República Portuguesa.
Tendo sido com fundamento nestas normas que a presente execução foi instaurada, a mesma carece, pois de título executivo pelo que não pode validamente prosseguir.
Termos em que:
Não aplico as normas contidas nos arts. 2º nº 2 al. a) e 4º do D.L.
194/92 de 8.9 no caso vertente, por considerar tais normas inconstitucionais e, em consequência, julgo procedentes os embargos e declaro extinta a execução apensa.'
3. - Desta decisão, vem interposto, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o recurso obrigatório do Ministério Público, para apreciação da conformidade constitucional das normas dos artigos 2º, nº2, alínea a) e 4º, do Decreto-Lei nº
194/92, de 8 de Setembro.
4. - A questão que vem suscitada nos presentes recursos foi já objecto de muitas decisões deste Tribunal, sem votos discordantes, no sentido da não inconstitucionalidade das normas sindicadas, nomeadamente, nos Acórdãos nºs 760/95, da 2ª Secção, e 761/95, da 1ª Secção, publicados ambos no Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de 1996.
Não se vendo razão para alterar a orientação já tomada, bastará fazer sucinta referência aos respectivos fundamentos na parte que deles pode ser extraída com relevância para a apreciação das normas sub judicio.
Efectivamente, a lei, ao estabelecer que um dos requisitos de exequibilidade do título constituído pelas certidões de dívida aos serviços e estabelecimentos de saúde será 'a identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma' - texto da alínea a) do nº 2 do artigo 2º, com sublinhados acrescentados - e ao limitar-se a enunciar no artigo 4º em questão, lido no contexto do diploma, quais os responsáveis que deverão figurar no título executivo, no que não vai além do que já decorre da lei substantiva aplicável na matéria, não está a atribuir à autoridade certificadora poderes próprios do exercício da função jurisdicional.
O hospital não está a resolver ou a compor um litígio, não está a definir os direitos de determinado credor. Nos autos de embargos à execução poderá o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter utilizado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar, a qual, por esta via, como que é diferida para aquele processo de embargos caso porventura exista conflito acerca da obrigação exequenda. E, em consequência, nem se poderá falar de restrição da garantia de acesso aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da Constituição), já que apenas se faculta um formalismo processual diferente daquele que normalmente é utilizado. Do mesmo passo, não é afrontado o princípio da igualdade: a entidade executada é colocada em posição idêntica àquela em que estão constituídos os devedores em geral perante qualquer outro título executivo.
6. - Pelos fundamentos agora muito sucintamente expostos, no caso dos autos, como também nos casos já anteriormente decididos, entende-se não poder manter-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida, a respeito das normas constantes da alínea a) do nº 2 do artigo 2º e do artigo 4º, ambas do Decreto-Lei nº 192/94, de 8 de Setembro.
Nestes termos, e entendendo-se que se está perante uma questão simples, por a mesma ter já sido objecto de decisões anteriores do Tribunal, propõe-se que se decida no sentido da não inconstitucionalidade das normas questionadas, determinando-se a reformulação da decisão recorrida de acordo com a posição que se propõe quanto à questão de constitucionalidade.
XXXXXXX
Notifique as partes para, querendo, responderem, em cinco dias.
Lisboa, 12 de Junho de 1996