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Procº nº 223/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Nos embargos de executada movidos por A., no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, contra B., suscitou a embargante 'a inconstitucionalidade dos Assentos', invocando, além disso, que 'não colhe (...) argumentar que os juros devidos são de 15% quando a Lei Uniforme com clareza estipula serem somente de
6%'.
Por sentença de 18 de Junho de 1993, aquele Tribunal julgou improcedentes os embargos, mandando prosseguir a execução, suportada numa letra, para o pagamento de 373.039$00.
2. Interposto recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na 'aplicação ao caso sub judice do Assento 4/92', não foi tal recurso admitido, por se ter entendido que se não tinham sido esgotados os recursos ordinários. Interposta reclamação de tal despacho para o Tribunal Constitucional, decidiu o Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras pela aplicação ao caso do disposto no nº 3 do artigo 688º do Código de Processo Civil, considerando que, se a decisão que não admita recurso de apelação, revista ou agravo, pode ser reparada na sequência da apresentação de uma reclamação, também o deve ser em face de um recurso para o Tribunal Constitucional. Assim, por o valor da causa impedir o recurso para o Tribunal da Relação, deu por preenchido, também, o requisito do prévio esgotamento dos recursos ordinários e admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional.
3. Convidada pelo relator deste Tribunal, nos termos do nº 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), a dar cumprimento ao disposto neste preceito, veio a embargante a apresentar novo requerimento, no qual declarou interpor recurso 'pelo facto de
[a decisão que julgou improcedentes os embargos] ter feito aplicação ao caso sub judicio do Assento 4/92 de 13/7/92', o que seria inconstitucional, por violação das normas ínsitas nos artigos 114º, 115º nºs. 1 e 5, e 207º da Constituição.
Nas alegações produzidas no Tribunal Constitucional, a recorrente conclui do seguinte modo:
1º- A questão que se põe no presente recurso é a de saber se os Assentos e nomeadamente o Assento 4/92 são ou não conformes à Constituição.
2º- A aliás douta sentença da Comarca considerou que a doutrina expendida pelo Assento 4/92 tem carácter de obrigatoriedade, enquadrando-se aquele perfeitamente na ordem constitucional vigente.
3º- Se ao decidir como decidiu o Juiz 'a quo' entendeu, como parece, que aquele Assento fixava doutrina com força obrigatória geral então é o mesmo claramente ferido de inconstitucionalidade, como já decidiu este Alto Tribunal no Acórdão nº 376/94, de 11/5 quando voltou a 'julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º da Constituição'.
4º- Mas se ao invés o entendeu na acepção mitigada deste Alto Tribunal, ainda assim estaria ferido de inconstitucionalidade por violar o disposto no art. 206º da Constituição.
A recorrida não apresentou alegações.
4. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
5. Pretende a recorrente que a questão a decidir no presente processo 'é a de saber se os Assentos e nomeadamente o Assento 4/92 são ou não conformes à Constituição'. Uma tal formulação não coloca, porém, apenas uma questão, mas duas: a da constitucionalidade dos assentos, em geral; e a da constitucionalidade do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/92 (publicado no Diário da República, I-Série-A, nº 290, de 17 de Dezembro de 1992), em particular, cujo conteúdo é o seguinte: 'Nas letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 262/83, de 16 de Junho, e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças'.
6. A primeira questão - a da constitucionalidade dos assentos, em geral - remete-nos para o problema da conformidade com a Constituição da norma do artigo 2º do Código Civil.
Sucede que a norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição, através dos Acórdãos nºs. 810/93, de 7 de Dezembro (publicado no Diário da República, II Série, nº 51, de 2 de Março de 1994), 407/94, de 17 de Maio, e 410/94, de 18 de Maio (ambos inéditos), e, posteriormente, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 743/96 (publicado no Diário da República, I Série-A, nº 165, de 18 de Julho de 1996).
Neste último aresto - o qual remete, aliás, para a fundamentação do Acórdão nº 810/93 -, desenvolve-se a seguinte retórica argumentativa como sustentáculo da inconstitu- cionalidade da norma constante do artigo 2º do Código Civil, na dimensão assinalada:
'A génese da colisão constitucional da norma do artigo 2º do Código Civil radica no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo assim a natureza de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis.
A disposição genérica contida naquela norma relativamente à força vinculativa geral dos assentos esteve na origem da eliminação do nº 2 do artigo
769º do Código de Processo Civil de 1961 que, numa linha de continuidade do artigo 768º do Código de Processo Civil de 1939, prescrevia que a doutrina assente pelo acórdão que resolvesse o conflito de jurisprudência seria
'obrigatória para todos os tribunais'.
E, deste modo, a disputa que se vinha travando sobre o valor jurídico a atribuir aos assentos a partir daquele preceito (o único que contemplava tal matéria) - para uns, os assentos apenas vinculariam os tribunais hierarquicamente subordinados àquele que os houvesse emitido, enquanto, para outros, dispunham de uma vinculação normativa idêntica às das normas gerais do sistema jurídico - veio a ser expressamente resolvida através da consagração do entendimento doutrinal que perfilhava a eficácia geral e incondicionada dos assentos, isto é, a vinculação normativa geral própria das fontes de direito.
Por outro lado (...) o Código de Processo Civil de 1961 suprimiu a possibilidade de modificação dos assentos constante do artigo 769º do Código de
1939, possibilidade essa já contemplada no artigo 66º do Decreto nº 12353 que, por seu turno, recebera inspiração no Decreto nº 4620.
A consagração de um tal sistema, rígido e imutável, para além de anquilosar e impedir a evolução da jurisprudência, necessariamente ditada pelo devir do direito e da sua adequada realização histórico-concreta, contraria manifestamente o sentido mais autêntico da função jurisprudencial.
Ora, tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos, como o seu carácter de imutabilidade não só se apresentam como atributos anómalos relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939, mas também se configuram como formas de caracterização inadequada de um instituto que visa a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica.
E parece poder afirmar-se que, desprovida desta caracterização, isto é, sem força vinculativa geral e sujeita, em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal dela emitente, aquela doutrina perderá a natureza de acto normativo de interpretação e integração autêntica da lei.
Desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados àquele que o tenha emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral, deixa de dispor de força obrigatória geral, o que representa, no entendimento de Marcello Caetano, a perda automática do valor que é próprio dos actos legislativos (cfr. Manual de Direito Administrativo, Lisboa, 1973, Tomo I, pp.
122 e ss).
Com efeito, desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade dos assentos - e não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse objectivo -, a eficácia interna dos assentos, restringindo-se ao plano específico dos tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respectiva hierarquia, perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia jurisdicional e revestir a natureza de simples 'jurisprudência qualificada'.
E assim sendo, a norma do artigo 2º do Código Civil, entendida como significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos, 'doutrina obri- gatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada', deixará de conflituar com a norma do artigo
115º, nº 5 da Constituição.
É que, com tal sentido, o assento não representa já um acto normativo não legislativo capaz de, com eficácia externa, fazer interpretação ou integração autêntica das leis.
Mas, neste quadro de caracterização normativo-processual do instituto, o facto de aos juízes dos tribunais integrados na ordem do tribunal emitente do assento (até mesmo os deste tribunal enquanto não se operar a sua reversibilidade), ser imposta a aplicação da doutrina nele contida, não representará violação da sua independência decisória?
Tem-se por seguro que não.
Com efeito, não acompanhando embora o entendimento de Marcello Caetano no sentido de que 'existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependam, exactamente como as instruções na hierarquia administrativa' (cfr. ob. loc. cit.), e tendo bem presente o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo
206º da Constituição, há-de ponderar-se que a definição jurisprudencial contida na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos propostos, não envolve prejuízo da autonomia da interpretação do direito que se compreende na independência dos tribunais.
Uma tal definição jurisprudencial, provinda do mais alto tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais (no presente processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas importa considerar os assentos do Supremo Tribunal de Justiça) sem eficácia externa erga omnes, e susceptível, em princípio, de impugnação processual pelas partes interessadas na causa, há-de ter-se como adequado elemento integrativo da própria estrutura jurisdicional de que promana. A subordinação devida pelos tribunais àquela jurisprudência tem algo de comum com a generalidade das decisões proferidas em via de recurso, às quais é devido acatamento mesmo quando delas dissintam os juízes dos tribunais de instância.
Aliás, a própria Constituição, no artigo 281º, nº 3, regendo sobre a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, não impondo embora uma automática e obrigatória intervenção do Tribunal em tal sentido, instituiu um sistema cuja matriz também radica na unidade do direito e, de algum modo, na uniformidade da jurisprudência.
Este afloramento constitucional do valor da uniformização jurisprudencial há-de ser entendido em termos de, numa perspectiva global do funcionamento do sistema judiciário, justificar a subordinação de todos os tribunais judiciais à
'jurisprudência qualificada' do Supremo Tribunal de Justiça sem que, de tal subordinação, resulte comprometida a sua independência decisória».'
Resulta da transcrição feita do Acórdão nº 743/96 que os assentos, entendidos como 'jurisprudência qualificada' que obrigue os juízes e os tribunais hierarquicamente subordinados àquele que os tenha emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral, não são inconstitucionais. Ora, no caso dos autos, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/92 foi aplicado, como jurisprudência vinculativa, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, isto é, por um tribunal judicial de que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respectiva hierarquia. Assim sendo, terá de concluir-se que o artigo 2º do Código Civil foi aplicado, na decisão recorrida, numa dimensão não inconstitucional.
A declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, operada pelo citado Acórdão nº 743/96, da norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da Constituição, não tem, pois, qualquer repercussão na situação em apreço no presente processo. Na verdade, por um lado, o tribunal recorrido integra-se no ordem própria dos tribunais judiciais e daí que a doutrina estabelecida no Assento do Supremo Tribunal de Justiça [de 13 de Julho de 1992 - Assento nº
4/92] se tenha projectado, em termos de eficácia vinculativa, no âmbito específico dos tribunais judiciais, isto é, dos tribunais subordinados hierarquicamente ao tribunal emitente.
Por outro lado, tendo em atenção a natureza e o valor da causa, não cabia no respectivo processo recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça, inexistindo assim as condições processuais necessárias para que o recorrente pudesse impugnar a doutrina do Assento junto daquele Tribunal (cfr. o mencionado Acórdão nº 810/93).
7. No tocante à segunda questão - a da constitucionalidade do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/92 -, verifica-se que a recorrente não invoca quaisquer razões específicas relativas ao seu conteúdo que fundamentem a sua inconstitucionalidade, antes faz derivar a inconstitucionalidade daquele Assento da inconstitucionalidade dos Assentos, em geral, ou seja, da inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil. De facto, o que a recorrente contesta no Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/92 não é o seu conteúdo normativo (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, no caso decidido pelo Acórdão nº 151/96 deste Tribunal, ainda inédito), mas apenas a sua génese e o seu regime.
Assim sendo, tem de concluir-se que esta segunda questão, tal como foi formulada pela recorrente, não se autonomiza da primeira, pelo que, decidida a questão da constitucionalidade dos Assentos, em geral, na linha do que foi consignado nos Acórdãos deste Tribunal nºs. 810/93 e 743/96, decidida está a questão específica da constitucionalidade do citado Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/92.
III Decisão.
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 21 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Messias Bento Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, pois concederia provimento ao recurso, na base da decisão a dar à primeira questão enunciada no acórdão: a da constitucionalidade dos assentos, em geral, ligada à questão da conformidade com a Constituição da norma do artigo 2º do Código Civil.
É que, na linha da declaração de voto junta ao acórdão nº 743/96, em que se funda o presente aresto, continuo a entender que, em rigor, aquele artigo
2º, todo ele, está em desconformidade com a Lei Fundamental, violando o princípio da tipicidade dos actos legislativos estabelecido no seu artigo 115º.
Limito-me, pois, agora a remeter para a breve consideração constante dessa declaração de voto junta ao acórdão nº 743/96.
Assim, estando ferido de inconstitucionalidade o artigo 2º do Código Civil, isso projectar-se-ia na situação em apreço no presente processo, na medida em que foi aplicado na sentença recorrida o Assento nº 4/92, de 13 de Julho de 1992, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 290, de 17 de Dezembro de 1992, e, por isso, sempre teria de ser reformada aquela sentença, contrariamente ao que se entendeu no acórdão quanto à dimensão em que o dito Assento nº 4/92 foi aplicado in casu. Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa