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Proc.Nº 113/94
PLENÁRIO
Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. - O Provedor de Justiça veio requerer ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea d) da Constituição, reproduzido no artigo 20º, nº 3, do seu estatuto aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a 'fiscalização da constitucionalidade da norma contida no despacho de Sua Excelência, o Secretário de Estado dos Recursos Educativos, aprovado em 23 de Outubro de 1992, através do qual homologou o parecer nº 6/92, da Auditoria Jurídica do Ministério da Educação, de 18 de Fevereiro do mesmo ano', cuja declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral é pedida a final.
A entidade peticionante procede a uma circunstanciada descrição da evolução normativa sobre a matéria em causa, expõe as razões pelas quais entende registar-se no caso inconstitucionalidade do comando cuja apreciação solicita e termina o seu requerimento enunciando as conclusões que seguidamente se transcrevem:
'A)- A norma contida no despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Recursos Educativos, de 23 de Outubro de 1992 (do qual se faz juntar cópia), assume-se como norma interpretativa de normas contidas em actos legislativos, como sejam as normas dos arts. 128º e 129º, nºs 1, 3 e 4, do ECD, aprovado pelo Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril e dos arts. 3º e 4º, alínea a), do Decreto-Lei nº 120-A/92, de 30 de Junho. Independentemente de colisão ou simples desconformidade com aquelas normas legislativas, a norma interpretativa regulamentar viola directa e formalmente a norma constitucional inscrita no art.
115º, nº 5, na parte em que esta veda a actos de outra natureza a interpretação com eficácia externa de normas contidas em actos legislativos. Dado que proíbe estes últimos de consentirem, eles próprios, a interpretação normativa dos seus preceitos, fica a fortiori arredada qualquer veleidade de autonomamente um acto regulamentar o fazer.
B)- A norma ora impugnada ofende directa e materialmente a proibição do tratamento legislativo discriminatório, consequente do princípio inscrito no art. 13º, nº 2, da C.R.P., porquanto confere a professores expressamente habilitados, para todos os efeitos legais, com a aprovação em exame de Estado
(art. 1º, do Decreto-Lei nº 302/74, de 5 de Julho; arts. 1º e 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 405/74, de 29 de Agosto; Decreto-Lei nº 294/A/75, de 17 de Julho; despacho nº 21/78, da Secretaria de Estado do Ensino Básico e Secundário, de 5 de Julho; e, art. 1º, do Decreto-Lei nº 210/78, de 27 de Julho) o mesmo tratamento que recebem os docentes que jamais obtiveram essa habilitação, sem que qualquer fundamento constitucional o permita justificar.
C)- A norma ora impugnada viola reiteradamente o mesmo princípio constitucional, ao conceder arbitrariamente tratamento diferenciado aos docentes que por via da legislação e regulamentação citadas receberam habilitação à aprovação em exame de Estado, a par daqueles que, porque puderam, cumpriram a realização das provas de exame de Estado, com sucesso. A norma que é objecto do presente pedido de fiscalização de constitucionalidade, deixou à margem tal habilitação, justificada pela suspensão da realização das provas ao abrigo da legislação insofismavelmente subsequente ao Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, como é o caso do Decreto-Lei nº 47 587, de 10 de Março de 1967. A mesma norma não consente admitir que tal habilitação poderia, inclusivamente, ter sido levada a cabo, sem ter havido qualquer suspensão das provas de exame de Estado
(cfr., por exemplo, o Decreto-Lei nº 616/76, de 27 de Julho e o Decreto-Lei nº
210/78, de 27 de Julho, com especial nota de atenção para os seus preâmbulos).
D)- A norma regulamentar em causa viola directa e materialmente o princípio/garantia da confiança que os cidadãos podem depositar na unidade e integridade da ordem jurídica, o qual se revela como corolário imediato do princípio do Estado de direito, consagrado no art. 2º, da C.R.P. Isto, sucintamente, porque o despacho SERE de 23 de Outubro de 1992 põe em crise a habilitação operada pela citada legislação de 1974/78, determinando a revogação de direitos constituídos, sem que para tanto se encontre fundamento jurídico-constitucional apto.
E)- A norma que é objecto da presente iniciativa, ainda que, por mera hipótese, não se tratasse de norma interpretativa sempre pretenderia assumidamente modificar norma contida em actos legislativos sucessivos do Decreto-Lei nº 302/74, de 5 de Julho, violando o disposto no art. 115º, nº 5, da C.R.P. Isto se for admitido que os citados actos legislativos não devam conceber-se como legislação subsequente ao Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, caso em que não pode deixar de reconhecer-se a subsistência da eficácia das habilitações para todos os efeitos legais, complementando as normas contidas nos arts. 128º e 129º, nºs 1, 3 e 4, do ECD e nos arts. 3º e 4º, alínea a), do Decreto-Lei nº 120-A/92, de 30 de Junho.
F)- A norma ora impugnada, mesmo que de norma contida em acto legislativo se tratasse, realizando interpretação autêntica das normas citadas imediatamente supra, sempre seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da tutela da confiança na unidade da ordem jurídica, decorrentes, respectivamente, dos arts. 13º e 2º da Constituição.'
2. - O Primeiro Ministro, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, começou por suscitar a questão da sua falta de legitimidade para se pronunciar e, para a hipótese de tal questão improceder, acrescenta, acompanhando passo por passo a fundamentação do pedido, resposta também ela extensa e circunstanciada, que termina com a formulação de conclusões e com o enunciado do sentido da decisão ou decisões que, em seu entender, deverá o Tribunal proferir, que passam a transcrever-se:
'1ª O Primeiro-Ministro não tem legitimidade para se pronunciar no presente processo, já que não é o órgão de quem emana o acto impugnado.
2ª O despacho impugnado mais não faz do que esclarecer para efeitos internos o sentido dos artigos 128º e 129º do Estatuto da Carreira Docente e dos artigos 3º e 4º do Decreto-Lei nº 120-A/92.
3ª O despacho impugnado não é susceptível de apreciação de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional já que não contém normas no sentido constitucionalmente relevante para o efeito, porque não tem eficácia externa.
4ª O despacho impugnado, tendo efeitos meramente internos, não viola o número 5 do artigo 115º da Constituição nem qualquer princípio de hierarquia dos actos normativos.
5ª O despacho impugnado não viola o princípio constitucional da igualdade, já que não consagra nenhuma distinção injustificada entre quem realizou com sucesso o Exame de Estado e quem não o realizou para efeitos de acesso ao 8º escalão da carreira docente.
6ª O despacho impugnado não viola o princípio da tutela da confiança já que não põe em causa qualquer direito ou sequer expectativa constitucionalmente relevante que no passado tenha sido reconhecida aos professores que não realizaram com sucesso o Exame de Estado.
Termos em que:
- o Tribunal Constitucional deve notificar a Ministra da Educação para se pronunciar sobre o presente pedido;
- a assim não se entender, o Tribunal Constitucional não deve tomar conhecimento do presente pedido porque não versa sobre acto susceptível de ser por si apreciado;
- a assim não se entender, não deve o Tribunal Constitucional pronunciar-se pela inconstitucionalidade de norma contida no despacho do Secretário de Estado dos Recursos Educativos de 23 de Outubro de 1992.'
3. - O Tribunal Constitucional, pelo seu Acórdão nº
477/94, de 6 de Julho, ainda inédito, indeferiu a questão prévia suscitada respeitante à notificação do Ministro da Educação para se pronunciar, mas terá ainda de tomar posição sobre a outra questão de carácter prejudicial ao conhecimento do próprio pedido suscitada pelo Primeiro Ministro e que versa sobre a alegação de que a norma questionada não será susceptível de ser objecto de fiscalização sucessiva de constitucionalidade.
4. - Entretanto, e antes desse momento, impor-se-á a descrição do quadro normativo em que se inserem as questões a resolver.
4.1. - O despacho do Secretário de Estado dos Recursos Educativos (SERE) de 23.10.1992, cuja cópia vem anexada ao pedido, tem a seguinte redacção, que se reproduz integralmente:
...'Homologo o Parecer nº 6/92 produzido pela Auditoria Jurídica do Ministério da Educação em 18.02.92, face à argumentação de natureza jurídica nele expendida, e considerando ainda que as provas que constituíam o Exame de Estado com a estrutura, modelo, natureza e grau de exigência das que eram objecto de regulamentação nos Decreto nº 36 508, de 17.9.47, Decreto-Lei nº 48 868, de
17.2.69, Decreto-Lei nº 49 119, de 14.7.69 e ainda Decretos nºs 49 204 e 49 205, de 25.8.69, apresentam valor qualitativo não inferior à avaliação do trabalho de natureza educacional prevista, para efeitos de promoção ao 8º escalão, no artº
36º do ECD, o que claramente exclui situações de mera equiparação.
...Em conformidade, esclareço que o âmbito de aplicação dos artºs 128º e 129º do ECD, bem como do artº. 3º e da alínea a) do artº 4º do Decreto-Lei nº 120-A/92, de 30 de Junho, abrange apenas os professores que realizaram , com sucesso, as provas de Exame de Estado a que se reportam os diplomas supramencionados, o que deverá ser comprovado mediante a apresentação do respectivo diploma'.
Incide este despacho sobre o regime legal que disciplina o acesso dos docentes ao 8º escalão da carreira docente basicamente contido, na parte que aqui interessa, nos citados artigos 128º e 129º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (ECD), aprovado pelo Decreto-Lei nº 139-A/90, que agora se transcrevem:
'Artigo 128º Dispensa de apresentação de trabalho de natureza educacional
1 - Os educadores de infância, os professores do ensino primário e os professores dos ensinos preparatório e secundário que não tenham realizado as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de
1947, e legislação subsequente ficam dispensados da apresentação de trabalho de natureza educacional para efeitos de candidatura ao 8º escalão da carreira docente, desde que à data da transição para a nova estrutura de carreira possuam
25 ou mais anos de serviço docente ou equiparado.
2 - Os professores dos ensinos preparatório e secundário que tenham realizado com sucesso as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente e que à data da transição para a nova estrutura de carreira possuam menos de 25 anos de serviço docente ou equiparado ficam dispensados da apresentação de trabalho de natureza educacional, para efeitos de candidatura ao 8º escalão da carreira docente, nos termos previstos no artigo 36º do presente Estatuto.
Artigo 129º Dispensa da candidatura
1 - Os professores dos ensinos preparatório e secundário que tenham realizado com sucesso as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente e que à data da transição para a nova estrutura de carreira possuam 25 ou mais anos de serviço docente ou equiparado ficam igualmente dispensados da apresentação de candidatura para efeitos de promoção ao 8º escalão da carreira docente, progredindo ao 9º escalão em 1992.
2 - Os educadores de infância e os professores do ensino primário que, à data da transição para a nova estrutura de carreira, possuam 29 ou mais anos de serviço docente ou equiparado são dispensados da apresentação de candidatura para efeitos de promoção ao 8º escalão da carreira docente, progredindo ao 9º escalão em 1993 ou, exclusivamente para efeitos de aposentação, em 1992.
3 - Os professores dos ensinos preparatório e secundário que, à data da transição para a nova estrutura de carreira, possuam 29 ou mais anos de serviço docente ou equiparado são dispensados da candidatura, progredindo ao 9º escalão em 1991 ou em 1992, consoante tenham ou não realizado com sucesso as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente.
4 - Os professores a que se refere o número anterior, com o grau de licenciado, progridem ao 10º escalão em 1992 ou 1993, consoante tenham ou não realizado com sucesso as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36
508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente.'
4.2. - Por sua vez, as disposições do Decreto-Lei nº
120-A/92, de 30 de Junho, a que também se refere o despacho, estabelecem o seguinte:
'Artigo 3º Dispensa de apresentação de trabalho de natureza educacional
Para efeitos de candidatura ao acesso ao 8º escalão da carreira docente a que se refere o ECD, ficam dispensados da apresentação de trabalho de natureza educacional:
a) Os educadores de infância, os professores do ensino primário e os professores dos ensinos preparatório e secundário que, não tendo realizado as provas de Exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de
1947, e legislação subsequente, perfaçam, até 31 de Dezembro de 1992, 25 ou mais anos de serviço docente ou equiparado;
b) Os professores dos ensinos preparatório e secundário que, tendo sido aprovados nas provas de Exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente, não perfaçam, até 31 de Dezembro de
1992, 25 anos de serviço docente ou equiparado.
Artigo 4º Dispensa de candidatura
Para efeitos de acesso ao 8º escalão da carreira docente a que se refere o ECD, ficam dispensados da apresentação de candidatura:
a) Os professores dos ensinos preparatório e secundário que, tendo sido aprovados nas provas de Exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente, perfaçam, até 31 de Dezembro de
1992, 25 ou mais anos de serviço docente ou equiparado;'
5. - O que para já interessa reter da leitura das disposições transcritas é que, no acesso ao 8º escalão da carreira docente, a lei estabelece um procedimento diferenciado para certas categorias de professores, em função dos anos de serviço docente ou equiparado e tendo em conta a posse da habilitação do Exame de Estado. Assim, verificados que sejam os pressupostos exigidos, uns ficarão dispensados de apresentação de trabalho de natureza educacional e ou de apresentação de candidatura, enquanto outros, para acederem a esse 8º escalão, terão de ser aprovados em processo de candidatura devidamente formalizada. Não vem posta em causa a diferenciação de regimes. O que se censura e se questiona do ponto de vista da respectiva conformidade à Lei Fundamental é o critério seguido para a definição das categorias de docentes a incluir num e noutro grupo. E aqui torna-se necessário ter presentes alguns elementos adicionais sobre a estrutura da carreira docente nos domínios da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário bem como sobre o exame de Estado.
A carreira do pessoal docente em consideração foi reestruturada pelo Decreto-Lei nº 409/89, de 18 de Novembro, no propósito assumido no respectivo preâmbulo de dar sequência ao regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, que aprovou os princípio gerais sobre salários e gestão de pessoal na função pública, conjugado com o artigo 28º do Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro. Este último diploma desenvolve os princípios gerais da reforma do sistema retributivo da função pública e devolve para legislação própria - veio esse a ser o caso dos professores, regulado no Decreto-Lei nº 409/89 - a fixação da escala salarial dos corpos especiais.
O 8º escalão é um dos dez módulos de tempo de serviço em correspondência com os quais se desenvolve a carreira dos docentes, que é uma carreira única (artigo 4º, nº 1), em que ingressa quem for possuidor de qualificação profissional para a docência (artigo 5º) e dependendo o escalão de ingresso do nível de habilitação académica possuído (cfr. artigo 7º). A progressão nos escalões faz-se em regra atendendo ao tempo de serviço efectivo - de acordo com o esquema específico das chamadas carreiras horizontais do regime geral da função pública, com intervenção da avaliação do desempenho e incluindo a frequência com aproveitamento de módulos de formação (artigo 9º, nº 1). Para a passagem ao 8º escalão, porém, previu o Decreto-Lei nº 408/89 a 'aprovação em processo de candidatura' em termos a regulamentar por portaria do Ministro da Educação (nº 1 do artigo 10º). Resulta daqui que o docente que não obtiver a aprovação exigida continuará no 7º escalão, progredindo do ponto de vista remuneratório mas apenas dentro dos níveis remuneratórios previstos para esse escalão.
Na definição dos dois grupos de docentes com regime diferenciado de acesso a este escalão, intervém não só o critério do tempo de serviço mas também a habilitação obtida com a aprovação no chamado exame de Estado.
Trata-se de uma figura prevista no Estatuto do Ensino Liceal, aprovado pelo Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947. O exame de Estado seguia-se a um estágio pedagógico de dois anos a que podiam concorrer licenciados ou indivíduos habilitados com determinados cursos superiores (cfr. artigos 188º e segs.). A aprovação nesse estágio permitia que os candidatos a professores se apresentassem a exame de Estado (artigo 238º). A aprovação neste exame constituía habilitação para o provimento de lugares de professores efectivos [artigo 93º, nº 1, A), alínea c)].
Legislação posterior acolheu e manteve a exigência da aprovação em estágio e em exame de Estado para os professores do ciclo preparatório (Decreto-Lei nº 49 119, de 14 de Julho de 1969), do ensino liceal e do ensino técnico profissional (Decreto-Lei nº 48 868, de 17 de Fevereiro de
1969, e Decretos nºs 49 204 e 49 205, de 25 de Agosto de 1969) e foi introduzindo alterações nas exigências iniciais, mas sem nunca dispensar o exame de Estado.
A partir de 1974 o legislador interveio para regular a situação criada pela não realização desses exames que entretanto se verificara. Abre-se um período intercalar, em que é possível distinguir dois tipos de situações: por um lado, a situação de professores que no ano lectivo de 1973/74 tinham obtido aprovação no estágio mas a quem não foi dada a possibilidade de se submeter a exame de Estado, por ter sido suspenso; por outro, a situação de professores que entretanto completavam a respectiva formação académica em determinadas licenciaturas e bacharelatos.
De facto, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 405/74, de 29 de Agosto, dá conta de que despachos ministeriais, proferidos a título excepcional e para aquele ano lectivo de 1974, tinham determinado a suspensão dos exames de Estado para a docência nos ensinos preparatório e secundário e, quanto ao magistério primário, tinham dispensado a realização desse exame para os candidatos que o tivessem requerido, os quais tinham passado a ficar em condições de ser admitidos a esse magistério, tudo ao abrigo do Decreto-Lei nº
47 587, de 10 de Março de 1967 (ou seja a título de experiência pedagógica).
O referido Decreto-Lei nº 405/74 veio assim dispor, no que aqui interessa, que os docentes que tinham obtido aprovação no estágio no ano lectivo de 1973-1974, e em certos casos nos dois anos lectivos anteriores, se considerariam 'para todos os efeitos legais como habilitados com o Exame de Estado' (artigos 1º e 3º nº 1). A suspensão manteve-se no ano lectivo seguinte quanto aos ensinos preparatório e secundário e a aplicação do regime aprovado em
1974 foi alargada pelo Decreto-Lei nº 294-A/75, de 17 de Junho, aos que tivessem sido aprovados no estágio, independentemente do ano de obtenção dessa aprovação.
Quanto ao segundo grupo de situações, os Decretos-Leis nºs 302/74, de 5 de Julho, e 616/76, de 27 de Julho, vieram estatuir sobre a relevância da obtenção de certos graus académicos para efeitos de ingresso na carreira (licenciaturas de formação educacional professadas nas Faculdades de Ciências, quanto ao primeiro daqueles diplomas, e bacharelatos em ensino pela Universidade do Minho, quanto ao segundo), até que os Decretos-Leis nºs 210/78, de 27 de Julho, e 423/78, de 22 de Dezembro, vieram dispor genericamente que os bacharelatos em ensino conferidos por Universidades, Institutos Universitários e Institutos Politécnicos (artigo 1º, nº 1, do primeiro) e as licenciaturas em ensino conferidas por Universidades e Institutos Universitários (artigo 1º, nº
1, do segundo Decreto-Lei) 'correspondem, para todos os efeitos legais, ao Exame de Estado previsto nos Decretos nºs 49 204 e 49 205, de 25 de Agosto de 1969, e no Decreto-Lei nº 49 119, de 14 de Junho de 1969'.
Esta segunda fase das vicissitudes da evolução legislativa sobre a matéria, que comporta a legislação intercalar indicada, encerra-se com a introdução da profissionalização em exercício pelo Decreto-Lei nº 519-T1/79, de 29 de Dezembro, que recebeu alterações posteriores. A habilitação do exame de Estado não voltou a ser legalmente exigida.
6. - Retomemos agora a exposição anterior na parte em que foi referida a introdução do 8º escalão na carreira docente.
O nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 409/89, de 18 de Novembro, conforme ficou visto, determinou que o acesso ao 8º escalão 'depende de aprovação em processo de candidatura a apresentar no decurso dos 6º ou 7º escalões, em termos a regulamentar mediante portaria do Ministro da Educação', e
é em conexão com essa norma que surgem determinados preceitos contidos no Estatuto da Carreira Docente (ECD), aprovado pelo Decreto-Lei nº 139-A/90, de 28 de Abril, e em actos normativos posteriores.
O despacho cuja validade vem questionada do ponto de vista jurídico-constitucional incide sobre os artigos 128º e 129º desse Estatuto, incluídos no capítulo das disposições transitórias e finais, e sobre duas outras normas contidas no Decreto-Lei nº 120-A/92, de 30 de Junho.
Qual é o alcance daqueles artigos 128º e 129º?
Basicamente consiste ele em dispensar em certos casos os docentes da apresentação do trabalho de natureza educacional e mesmo da apresentação de candidatura.
Assim, prescindindo de pormenores aqui irrelevantes, a dispensa de apresentação do trabalho aplica-se àqueles que à data da transição para a nova estrutura da carreira possuam 25 ou mais anos de serviço docente ou equiparado. Mas da mesma dispensa beneficia outro grupo de professores com menos de 25 anos de serviço. O critério de definição dos dois grupos passa pela distinção entre os docentes que não tenham realizado as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1974, e legislação subsequente (primeiro grupo referido), e os docentes que tenham realizado com sucesso as provas de exame de Estado (sublinhados extraídos do texto do artigo
128º já acima transcrito).
Distinção paralela se estabelece quanto à dispensa de apresentação de candidatura, prevista no artigo 129º.
Os professores dos ensinos preparatório e secundário que tenham realizado com sucesso as provas de exame de Estado e que tenham 25 ou mais anos de serviço docente são dispensados dessa exigência, progredindo ao 9º escalão em 1992 (segundo o nº 1); se possuírem 29 ou mais anos de serviço, progridem ao 9º escalão em 1991 (nº 3 do mesmo artigo 129º) e, se forem licenciados, progridem ao 10º escalão em 1992 (segundo o nº 4).
Também ficam dispensados de apresentação de candidatura professores que não sejam titulares da habilitação de exame de Estado desde que possuam condições semelhantes quanto ao tempo de serviço (29 ou mais anos de serviço). A diferença relativamente àqueles que estão incluídos no grupo anterior reside em que só progredirão ao 9º escalão em 1992, e não em 1991 (cfr. o nº 3); se forem licenciados, só progredirão ao 10º escalão em 1993 (e não já em 1992) conforme resulta do nº 4.
O despacho do qual consta a norma questionada também tem por objecto normas do Decreto-Lei nº 120-A/92, de 30 de Junho, igualmente de
índole transitória pois que mandam reportar os 25 ou mais anos de serviço para efeitos de dispensa da apresentação de trabalho de natureza educacional, bem como os 29 ou mais anos de serviço para efeitos de dispensa de candidatura, não
à data da transição para a nova estrutura da carreira como se determinava nos artigos 128º e 129º do ECD, acima citados, mas à data de 31 de Dezembro de 1992. Isto porque, deduz-se do respectivo preâmbulo, em 1992 não terá sido possível pôr em prática o processo de transição para o 8º escalão nos termos previstos em
1990.
Nos artigos 128º e 129º do ECD bem como no artigo 3º e na alínea a) do artigo 4º do Decreto-Lei nº 120-A/92 recorre o legislador à expressão 'provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente'. Ora é quanto a este último inciso,
'legislação subsequente', que o despacho do SERE vem esclarecer que no mesmo estão abrangidas as provas de exame de Estado 'a que se reportam os diplomas supramencionados'. E é atendendo aos considerandos fundamentadores do despacho em causa que se apura que esses diplomas são o Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, como já resultava expressa e explicitamente do texto das normas esclarecidas, mas também o Decreto-Lei nº 48 868, de 17 de Fevereiro de
1969, o Decreto-Lei nº 49 119, de 14 de Julho de 1969 e ainda os Decretos nºs
49 204 e 49 205, de 25 de Agosto de 1969. Trata-se da legislação posterior a
1947, cujo sentido se descreveu nas suas linhas gerais, que esteve em vigor até serem suspensos, a partir de 1974, os exames de Estado. Não está abrangida, em consequência, a legislação correspondente à fase de suspensão desses exames que se verificou até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 519-T1/79, de 29 de Dezembro.
7. - É precisamente neste ponto - mais concretamente no regime estabelecido para os docentes abrangidos pela legislação intercalar que regulou os efeitos da não realização, com suspensão, dos exames de Estado - que incide a censura que o Provedor de Justiça dirige ao despacho do SERE, do ponto de vista da sua regularidade material.
Depreende-se das alíneas B) e C) das conclusões, complementadas pelos artigos 67º e seguintes da petição, que se entende como desconforme à Constituição, que esses professores, embora entre 1974 e 1979 tivesse sido estabelecida pelo legislador uma identidade essencial de situações
(artºs 67º e 72º), porque pelo Decreto-Lei nº 302/74 e diplomas sucessivos até ao Decreto-Lei nº 519-T1/79 foram considerados habilitados com o exame de Estado para todos os efeitos legais:
- não gozam de dispensa de apresentação de trabalho de natureza educacional ou mesmo de dispensa de candidatura, caso possuam cumulativamente pelo menos vinte e cinco anos de serviço docente;
- são assimilados ao conjunto mais vasto dos professores excluídos desses benefícios.
Quanto a este último aspecto, o tratamento jurídico da situação dos docentes considerados não poderia ser pura e simplesmente idêntico ao dos docentes não abrangidos pela legislação intercalar, 'a qual pressupunha a simples suspensão do exame de Estado'. Estes docentes não abrangidos pela legislação intercalar são, no contexto da argumentação, aqueles aos quais se aplicou o Decreto-Lei nº 519-T1/79, de 29 de Dezembro, e legislação posterior; nunca terão sido considerados habilitados ou equiparados àqueles que, antes de
1974, se tinham submetido com sucesso às provas de exame de Estado (artigos 73º e 74º da petição).
8. - Para efeitos de ordenação lógica das questões a decidir nos autos, não pode deixar de se referir que, posteriormente à entrada do pedido do Provedor de Justiça neste Tribunal ocorreu mais uma vicissitude normativa cuja repercussão pode ter relevância em toda esta problemática. Com efeito, no Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1995, foi publicado um Despacho do Ministro da Educação de 24 de Novembro desse ano, identificado como Desp. 26-XII/ME/95, cujo teor dispositivo é o seguinte:
..'Assim, tendo em conta o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 36º do Dec.-Lei
139-A/90, de 28-4, e para efeitos do disposto no nº 2, al. c), do art.7º do Dec.Regul. 13/92, de 30-6, deverão considerar-se dispensados da apresentação do trabalho de natureza educacional, previsto no nº 3 do art. 36º, do Dec.-Lei nº
139-A/90, de 28-4, os docentes que, tendo apresentado, ou venham a apresentar candidatura para acesso ao 8º escalão da carreira docente dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário, se encontrem abrangido pelo disposto nos Decs.-Leis 405/74, de 29-8, e 294-A/75, de 17-6.'
Facilmente se alcança que a orientação contida na formulação cuja apreciação vem requerida sofreu inflexão significativa. Pelo despacho em referência ficam dispensados da apresentação do trabalho de natureza educacional os docentes que se encontrem abrangidos pelo disposto nos Decretos-Leis nºs 405/74 e 294-A/75. Ou seja, ficam dispensados de apresentação do trabalho docentes que anteriormente se considerava não estarem incluídos no grupo daqueles que, nos termos dos artigos 128º, nº 2, e 129º, nºs 1, 3 e 4 do ECD, 'tenham realizado com sucesso as provas de exame de Estado previstas no Decreto nº 36 508, de 17 de Setembro de 1947, e legislação subsequente'
(itálicos acrescentados). Reconhece-se portanto àqueles dois decretos-lei a qualidade de legislação subsequente para o efeito de os respectivos destinatários poderem beneficiar, também para o efeito de transição para o 8º escalão da carreira, da equiparação instituída por lei.
Notar-se-á que este despacho não contempla o segundo grupo de situações, que abrangeu os docentes com formação académica dirigida para o ensino a que atrás ficou feita referência.
9. - Sucede que, posteriormente, nova modificação legislativa teve lugar, operada pelo Decreto-Lei nº 41/96, de 7 de Maio, cujo artigo 3º veio determinar a revogação do artigo 10º do Decreto-Lei nº 409/89, de
18 de Novembro (nº 1), bem como das disposições legais e regulamentares em contrário então vigentes sobre a matéria (nº 2).
Com a revogação do referido artigo 10º, é eliminado o regime específico de acesso ao 8º escalão da carreira, passando a aplicar-se o regime geral, contido nos artigos 8º e 9º do Decreto-Lei nº 409/89 e legislação complementar, 'até à entrada em vigor do novo regime de avaliação do desempenho do pessoal docente' (nº 1 do artigo 4º, em ligação com o artigo 13º, do Decreto-Lei nº 41/96).
No entanto, o legislador não se limitou a estabelecer uma disciplina (ainda que transitória) para o futuro, aplicável aos docentes integrados no 7º escalão que não tenham apresentado candidatura, mas hajam concluído o módulo de tempo de serviço efectivo para acesso ao 8º escalão
(artigo 10º); além do mais regulou minuciosamente a situação das candidaturas pendentes e acautelou a produção retroactiva dos efeitos resultantes da aplicação das novas normas.
Assim, e estatuindo para os professores ainda não incluídos no 8º escalão mas cujo processo de candidatura se encontrasse pendente, previu que os interessados pudessem optar entre o prosseguimento desse processo e o regime geral de avaliação (artigo 5º, nº 1).
Regendo para os casos de escolha da primeira opção, o nº
2 do artigo 6º veio dispensar da apresentação do trabalho de natureza educacional não só os docentes que dela já se encontravam dispensados mas também aqueles que sejam abrangidos 'pelo efeito útil dos Decretos-Leis nºs 405/74, de
29 de Agosto, 294-A/75, de 17 de Junho, 302/74, de 5 de Julho, 616/76, de 27 de Julho, e 423/78, de 22 de Dezembro'.
Quer isto dizer que são, agora, assimilados aos candidatos que realizaram com sucesso as provas de exame de Estado, aqueles que o despacho questionado pelo Provedor de Justiça excluía da igualdade de tratamento, a saber os docentes, e sem distinguir entre eles, que não se submeteram a essa prova, mas aos quais legislação publicada até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 511-T1/79, a partir do qual deixaram de se realizar exames de Estado, reconhecia a titularidade da habilitação correspondente.
O novo regime é tornado também aplicável àqueles docentes que tenham visto recusada ou indeferida a sua candidatura ao 8º escalão, bem como àqueles a quem tenha sido atribuída a menção de Não satisfaz
(artigo 7º). Estão aqui abrangidos claramente aqueles que terão visto rejeitada a sua candidatura por não terem apresentado trabalho de natureza educacional exigência essa de que não estavam dispensados pelo despacho questionado. Por sua vez aqueles que nem sequer apresentaram candidatura, eventualmente porque previamente conheceriam a orientação que os serviços administrativos competentes adoptariam a seu respeito, podem agora submeter-se ao novo processo de avaliação
(artigo 10º, nº 1).
Quanto à produção dos efeitos da disciplina contida no Decreto-Lei nº 41/96, veio o respectivo artigo 8º, nº 1, estabelecer que 'a progressão dos docentes que acedem ao 8º escalão, nos termos do presente diploma, produz todos os efeitos à data da conclusão do módulo de tempo de serviço previsto para o 7º escalão...'.
10. - Feita a descrição objectiva da legislação que actualmente está em vigor relativamente à matéria em análise, poderia questionar-se se estas modificações do quadro normativo afectam, e em que medida, o conhecimento do pedido tal como vem formulado.
Este questionamento está, porém, claramente dependente da resposta que vier a ser dada à alegação do Primeiro Ministro de que o pedido não versa sobre acto susceptível de ser apreciado pelo Tribunal. Na verdade, só se essa alegação - que constitui uma verdadeira e própria «questão prévia» - não proceder é que se justificará avançar na resolução de outras questões geradas pelas alterações normativas referidas. É que a resolução da questão da natureza do despacho cuja conformidade constitucional vem questionada pelo Provedor de Justiça é, lógica e metodologicamente anterior à consideração de eventuais questões resultantes de ulteriores modificações normativas, na medida em que estas pressupõem que a «norma» questionada tem uma natureza tal que permite que o Tribunal possa conhecer do pedido.
Vejamos, pois.
Assinala o Primeiro-Ministro na sua resposta que 'o despacho impugnado não foi publicado em Diário da República, tendo sido apenas transmitido a todos os estabelecimentos de educação e ensino pelo ofício-circular nº 2/92 da Direcção-Geral de Administração Escolar de 30 de Outubro de 1992' (art. 7º). Aliás o texto desse ofício-circular acompanha o pedido em 'cópia devidamente autenticada' (cfr. ofício de remessa do Provedor de Justiça).
Argumentando que só os actos normativos estão sujeitos ao sistema específico de fiscalização da constitucionalidade (art 42º da resposta), sustenta o Primeiro Ministro que o despacho impugnado constitui um regulamento interno da Administração, limitando-se a conter instrução dirigida aos serviços do Ministério da Educação, esgotando a sua eficácia no âmbito da própria Administração (art 43º).
A esse título, e referindo os acórdãos deste Tribunal nºs 26/85, 168/88 e 359/91, diz a entidade respondente que não deverão a norma ou normas dele constantes ser consideradas normas susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade porque o conceito de norma para esse efeito é um
'conceito funcional' no sentido de 'funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização instituído', 'consonante com a sua justificação e sentido'. O que se tem em vista é 'o controlo dos actos do poder normativo do Estado, ou seja, daqueles actos que contêm uma 'regra de conduta' ou um 'critério de decisão' para os particulares, para a Administração e para os tribunais' (art 43º).
Não caberiam aqui 'os regulamentos internos da Administração, despidos justamente de eficácia externa, os quais não traduzem
'regra de conduta' ou 'critério de decisão', mas são apenas instruções sem efeito directo sobre os cidadãos administrados ou a forma como devem os tribunais entender o Direito aplicável' (art 45º). E acrescenta que 'podem tais actos ser de facto inconstitucionais ou ilegais, mas não são directamente sindicáveis, sendo apenas impugnável a conformidade à lei - ou à Constituição, se for caso disso -dos actos administrativos que directamente os [refere-se aos particulares] atinjam, bem como a conformidade à Constituição das leis ao abrigo das quais os referidos actos sejam emitidos' (art 46º).
No sentido da eficácia externa do despacho em apreço bem como do seu carácter normativo e da susceptibilidade de fiscalização da constitucionalidade do seu conteúdo já se pronunciara o Provedor de Justiça
(arts. 44º a 57º da petição), confortando-se, quanto ao último aspecto focado, na posição de Jorge Miranda, exposta por este autor em Manual de Direito Constitucional, vol. II, 3ª ed., Coimbra, 1991, pag. 419.
Perante esta argumentação, o Tribunal é convocado a pronunciar-se e não poderá deixar de o fazer, limitado que está pelo princípio do pedido, quanto ao conteúdo preceptivo do despacho que vem questionado e não quanto às normas constantes de acto legislativo que esse despacho se propõe inequivocamente interpretar.
Neste ponto, determinante se afigura o conceito funcional de norma que tem sido adoptado com uniformidade na jurisprudência constitucional e cujas linhas básicas vêm correctamente enunciadas pelo Primeiro Ministro.
A intenção interpretativa do despacho não oferece dúvidas. É também patente que o mesmo se dirige aos serviços, convocando a aplicação do que nele se dispõe por via da obediência devida às instruções dos superiores hierárquicos recebidas pelos funcionários em matéria de serviço. Claro parece ser que o que nele se dispõe apenas indirectamente, através da prática dos necessários actos administrativos, se projecta na esfera jurídica de terceiros administrados, ou seja sujeitos ao poder de autoridade da Administração de definição imediatamente vinculativa dos respectivos direitos e deveres em relação jurídica de que são sujeitos passivos, relação jurídica essa que, por isso mesmo, é relação de direito público.
Mas não pode deixar de impressionar que não pode ser atribuída à autoridade que o emitiu a intenção de lhe conferir eficácia externa. Não se duvidando de que se trata de um acto de conteúdo genérico, teria o mesmo de ter sido publicado no jornal oficial para obter eficácia jurídica, nos termos do nº 2 do artigo 122º da Constituição. E aqui, ou seja nesta norma constitucional, do que se trata é da eficácia - ou, sendo caso disso, da ineficácia - a que se propõe o acto praticado, própria do tipo formal de que foi revestido pelo órgão que é o respectivo autor.
Ora bem, trata-se, como se viu, de despacho contido em ofício-circular. É essa a forma típica por ele assumida e a uma maior eficácia do que àquela que corresponde ao tipo formal 'circular' não poderá aspirar este acto, até porque efectivamente tudo indica não mais pretender do que isso mesmo.
Não reveste assim as características de regulamento externo nem sequer de regulamento misto, onde existam normas de eficácia interna e externa.
Designadamente, não se exorna o despacho questionado da habilitação normativa, da invocação de quaisquer poderes conferidos por acto de hierarquia formal superior, que lhe permitiria, ao abrigo dessa habilitação, de forma válida ou inválida é aspecto que aqui não tem de ser levado em conta, ser aplicado como parte integrante do ordenamento jurídico. Que lhe permitiria, por essa via, ser norma de conduta para os próprios tribunais, que lhe permitiria vinculá-los no sentido de que, para não aplicarem o que nele se dispõe, teriam de previamente julgá-lo inválido em decisão susceptível de recurso na ordem jurisdicional respectiva com fundamento em violação de um comando que, em princípio, estariam obrigados a respeitar. A esse título não constitui 'regra de conduta' nem 'critério de decisão', para os particulares e para os tribunais, requisitos que constituem notas caracterizadoras das normas susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade de acordo com a jurisprudência do Tribunal.
Tem, pois, de se concluir que o despacho questionado mais não é do que um regulamento puramente interno da Administração que apenas contém uma instrução dirigida aos serviços próprios do respectivo departamento, com reflexo meramente indirecto quanto aos particulares, na medida em que a sua concretização depende da prática de actos administrativos que, estes sim, afectam directamente os particulares.
Ora, tendo o despacho questionado a natureza de regulamento meramente interno da Administração e não revestindo as características de «norma», tal como a jurisprudência do Tribunal a vem funcionalmente definindo, não está ele sujeito ao controlo de constitucionalidade que a Constituição e a lei cometem a este Tribunal.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido.
Lisboa, 1996.10.16. Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa