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Procº nº 30/92 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. O Procurador-Geral da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 e da alínea e) do nº
2 do artigo 281º da Constituição, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs. 1 e 3 do artigo 194º do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, quer na redacção originária, quer na que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 167/89, de 23 de Maio.
Invoca o requerente como fundamento do pedido que as normas constantes dos nºs. 1 e 3 do artigo 194º do Decreto-Lei nº 367/87 violam o artigo 115º, nº 5, da Constituição, 'na medida em que permitem que, por acto administrativo (despachos a proferir, caso a caso, pelo director-geral dos Serviços Judiciários), se integre, com eficácia externa, a regulamentação, feita a nível de acto legislativo, das dispensas dos cursos de acesso a secretário judicial'.
Na óptica do Procurador-Geral da República, 'proibindo o artigo
115º, nº 5, da Constituição actos integrativos das leis, as quais não podem autorizar que a sua própria integração seja determinada por outro acto que não seja outra lei, e regulando a lei (Decreto-Lei nº 376/87) os casos de dispensa de curso para acesso a secretário-judicial, não lhe era constitucionalmente legítimo remeter para despacho do director-geral dos Serviços Judiciários a integração desse regime através de 'equiparações' para as quais, aliás, não fornece qualquer critério orientador'.
2. Admitido o pedido, foi o Primeiro-Ministro notificado para, querendo, sobre ele se pronunciar, no prazo de 30 dias, nos termos e para os efeitos dos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Novembro), não tendo, porém, o mesmo apresentado qualquer resposta dentro do prazo legal.
3. Tendo em conta que a vigência das normas questionadas pelo autor do presente pedido de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade se circunscrevia 'ao termo do prazo de validade do primeiro curso para acesso a secretário judicial', oficiou o relator do processo ao Director--Geral dos Serviços Judiciários para que fosse dado conhecimento ao Tribunal Constitucional da data em que ocorria o termo do prazo de validade daquele curso. Em 6 de Dezembro de 1994, foi recebida a resposta daquele Director-Geral, na qual se informava que a validade dos cursos para promoção é de cinco anos, contados a partir da data da publicação dos resultados (nº 8 do artigo 181º do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro), e que a lista de classificação final do primeiro curso para acesso à categoria de secretário judicial tinha sido publicada no Diário da República, II Série, nº 68, de 22 de Março de 1989.
4. Tudo visto e ponderado, cumpre, então, apreciar e decidir, começando por analisar a questão de saber se existe interesse jurídico relevante no conhecimento das questões de constitucionalidade que foram colocadas a este Tribunal.
II - Fundamentos.
5. As normas impugnadas têm a seguinte redacção:
A) Artigo 194º do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, na redacção originária:
'1. Até ao termo do prazo de validade do primeiro curso para acesso a secretário judicial, são admitidos aos movimentos para provimento de lugares de secretário judicial com dispensa dos cursos os escrivães de direito aprovados nos concursos a que se refere os artigos 392º e seguintes do Decreto-Lei nº
44278, de 14 de Abril de 1962, ou equiparados, com cinco anos de serviço e classificação não inferior a BOM na categoria.
2. (...)
3. A equiparação a que se refere o nº 1 será concedida caso a caso pelo director-geral dos serviços judiciários'.
B) Artigo 194º do supramencionado diploma, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 167/89, de 23 de Maio:
'1. Até ao termo do prazo de validade do primeiro curso para acesso a secretário judicial, são admitidos aos movimentos para provimento de lugares de secretário judicial e secretário técnico, com dispensa dos cursos, os escrivães de direito e técnicos de justiça principais aprovados nos concursos a que se referem os artigos 392º e seguintes do Decreto-Lei nº 44278, de 14 de Abril de
1962, ou equiparados, com cinco anos de serviço e classificação não inferior a BOM na categoria.
2. (...)
3. A equiparação a que se refere o nº 1 será concedida caso a caso pelo director-geral dos Serviços Judiciários'
Como flui dos textos normativos transcritos, a alteração introduzida em 1989 limitou-se a alargar a dispensa dos cursos, prevista inicialmente para os escrivães de direito na admissão aos movimentos para provimento de lugares de secretário judicial, aos técnicos de justiça principais na admissão aos movimentos para provimento de secretário técnico - afinal as categorias correspondentes, na carreira do Ministério Público, à carreira judicial do pessoal oficial de justiça, como se dispõe no artigo 31º do Decreto-Lei nº
376/87, de 11 de Dezembro:
'1. O grupo de pessoal oficial de justiça compreende a carreira judicial e a carreira do Ministério Público.
2. Na carreira judicial integram-se as seguintes categorias:
a) Secretário judicial;
b) Escrivão de direito;
(...)
3. Na carreira do Ministério Público integram-se as seguintes categorias:
a) Secretário técnico;
b) Técnico de justiça principal;
(...)'.
6. As normas constantes dos nºs. 1 e 3 do artigo 194º do Decreto-Lei nº 367/87, de 11 de Dezembro, tanto na sua redacção originária, como na decorrente do Decreto-Lei nº 167/89, de 23 de Maio, têm, como se viu, uma vigência temporalmente limitada. Na verdade, de acordo com os seus termos, elas caducam quando cessar o prazo de validade do primeiro curso para acesso a secretário judicial. Ora, sendo, de harmonia com o que dispõe o nº 10º do artigo 181º do Decreto-Lei nº 367/87 (na redacção do Decreto-Lei nº 364/93, de
22 de Outubro, que manteve o conteúdo do anterior nº 8), o prazo de validade do curso de cinco anos, contados da data da publicação dos resultados, e tendo os resultados do primeiro curso sido publicados em 22 de Março de 1989, verifica-se que aquelas normas caducaram em 22 de Março de 1994.
Resulta, assim, do exposto que as normas que integram o objecto do presente pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade não subsistem actualmente no ordenamento jurídico.
7. Alcançada a conclusão de que as normas objecto do presente processo já caducaram, importa referir que não subsiste interesse jurídico relevante no conhecimento da sua constitucionalidade.
Este Tribunal não se pronunciou até ao momento sobre a problemática da articulação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, com a caducidade de normas. Entende-se, no entanto, que é aplicável a tal problemática a jurisprudência que o Tribunal Constitucional elaborou a propósito de outra forma de cessação da vigência de normas jurídicas: a revogação de normas.
Sobre este tema, tem o Tribunal Constitucional entendido, em jurisprudência uniforme e constante, que a revogação de uma norma objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade não obsta, só por si, à sua eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral. Isto porque, enquanto a revogação tem, em princípio, uma eficácia prospectiva (ex nunc), a declaração de inconstitucionalidade de uma norma tem, por via de regra, uma eficácia retroactiva (ex tunc) (cfr.o artigo 282º, nº 1,da Constituição). Daí que, neste último caso, possa haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos medio tempore (cfr. o Acórdão nº 238/88, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Dezembro de 1988), isto é, no período da vigência da norma sindicada. Em face da revogação de uma norma, haverá interesse na emissão de tal declaração, 'justamente toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou' e essa indispensabilidade for evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (cfr. os Acórdãos nºs. 17/83,
103/87, 238/88, 73/90, 135/90, 465/91, 804/93, 186/94 e 57/95, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. I, p. 93 e ss., e no Diário da República, I Série, de 6 de Março de 1987, II Série, de 21 de Dezembro de 1988, II Série, de 19 de Julho de 1990, II Série, de 7 de Setembro de 1990, II Série, de 2 de Abril de 1992, II Série, de 31 de Março de 1994, II Série, de 14 de Maio de 1994 e II Série, de 12 de Abril de 1995, respectivamente).
Ainda segundo orientação firme deste Tribunal, não existe, porém, interesse jurídico relevante no conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma entretanto revogada, naqueles casos em que não se vislumbre qualquer alcance prático em tal declaração, devido à circunstância de o Tribunal, no caso de eventualmente proferir uma declaração de inconstitucionalidade, não poder deixar de, com base em razões de segurança jurídica, equidade ou de interesse público de excepcional relevo, limitar os efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, de modo a deixar incólumes os efeitos produzidos pela norma antes da sua revogação. Em tais situações, como vem referindo este Tribunal, 'em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, bem se justifica que conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito' (cfr. os arestos acima mencionados).
8. No caso sub judicio, ainda que o Tribunal viesse a declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs. 1 e 3 do artigo 194º do Decreto-Lei nº 376/87, quer na redacção originária, quer na resultante do Decreto-Lei nº 167/89, não poderia deixar, com base em razões de segurança jurídica, de restringir os efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, de modo a não afectar os actos administrativos praticados ao abrigo daquelas normas não impugnados contenciosamente ou que já não sejam susceptíveis de uma tal impugnação.
Na verdade, durante o período de vigência das normas questionadas, houve certamente funcionários que foram beneficiados com a sua aplicação, por terem sido equiparados, por despacho do director-geral dos Serviços Judiciários, aos escrivães de direito e técnicos de justiça principais aprovados nos concursos a que se referem os artigos 392º e seguintes do Decreto-Lei nº 44278, de 14 de Abril de 1962, para efeitos de admissão aos movimentos para provimento de lugares de secretário judicial e secretário técnico, com dispensa dos cursos de acesso a tais lugares, os quais não deverão ver a sua situação jurídica retroactivamente afectada. Pode dizer-se, mesmo, que os actos administrativos de equiparação constituem caso resolvido ou decidido, achando-se os seus efeitos consolidados no ordenamento jurídico, pelo que não deveriam ser afectados pela eventual declaração, com força obrigatória geral, da inconstituciolidade das normas aqui em causa.
Esses actos administrativos poderiam mesmo ser equiparados aos casos julgados, sendo, assim, ressalvados da eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por efeito do estatuído no artigo 282º, nº 3, da Lei Fundamental. Suscitando-se, porém, dúvidas a propósito de uma tal equiparação, não poderia deixar o Tribunal de limitar, por razões de segurança jurídica, os efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, de modo a deixar intocados os actos administrativos praticados ao abrigo das normas objecto do presente processo não impugnados contenciosamente ou que já não sejam susceptíveis de impugnação contenciosa
(cfr., sobre este ponto, o citado Acórdão nº 804/93).
Ocorrendo, assim, no caso concreto, uma situação em que é claro, com base num juízo de prognose, que o Tribunal Constitucional iria esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, justifica-se que se conclua pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade (cfr. os mencionados Acórdãos nºs. 804/93 e 186/94), tendo em conta que o recurso concreto de constitucionalidade constituirá um meio suficiente e adequado para resolver eventuais litígios ainda pendentes.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs. 1 e 3 do artigo 194º do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, quer na redacção originária, quer na que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 167/89, de 23 de Maio, em razão da inutilidade superveniente do mesmo pedido.
Lisboa, 12 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Bravo Serra Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Messias Bento Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa