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Procº nº 506/94 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Em 19 de Maio de 1992, A. interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação da deliberação da administração da Caixa Geral de Depósitos que, em 25 de Fevereiro de 1992, revogou o despacho que, em 1970, lhe reconhecera o direito à pensão de reforma por invalidez na qualidade de 2º oficial de B. de Moçambique, por lhe ter sido atribuída nova pensão pelo tempo de serviço prestado entre 1970 e 1991 no banco C., em Moçambique, e na Caixa Geral de Depósitos, em Portugal.
Em 30 de Abril de 1992 interpusera já, no mesmo Tribunal, pedido de suspensão da eficácia daquela deliberação, que veio a ser deferido por Sentença de 2 de Junho de 1992 e confirmado por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Agosto de 1992, tendo o processo de suspensão da eficácia sido apensado aos autos de recurso em 30 de Novembro de 1992.
2. No processo principal, o representante do Ministério Público no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso, por falta de definitividade do acto impugnado, porquanto este, sendo da autoria de dois administradores da Caixa Geral de Aposentações, estaria sujeito, nos termos do artigo 108º-A do Estatuto da Aposentação (aditado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 214/83, de 25 de Maio), a recurso hierárquico necessário para o conselho de administração. Desta posição discordou o recorrente, defendendo que, dado o teor da notificação e a sua qualidade de empregado da Caixa Geral de Depósitos, era de supor que a decisão fosse da administração daquela entidade e, portanto, nos termos dos artigos 99º, nº 8, e
104º nº 2, do Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, aprovado pelo Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro, era aquela susceptível de recurso contencioso directo.
Por Sentença de 9 de Novembro de 1993, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa rejeitou o recurso, por considerar que se impunha 'no caso dos autos, a obrigatoriedade de recurso hierárquico necessário para o conselho de administração daquela Caixa Geral de Aposentações, sendo indiferente distinguir entre um órgão e outro, pois eles são um só, exercendo funções distintas, que ao caso importem'.
3. Interposto recurso para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, em cujas alegações foi suscitada, inter alia, ainda que de modo imperfeito, a questão da constitucionalidade da norma constante do artigo 108º, nº1, do Estatuto da Aposentação, veio aquela, por Acórdão de 14 de Julho de 1994 da sua 1ª Subsecção, a negar-lhe provimento, confirmando a decisão recorrida, sem, porém, deixar de admitir que a falta de correcta identificação na notificação 'e o erro em que poderá ter feito incorrer o recorrente poderão eventualmente relevar para uma dilatação do prazo de interposição do recurso hierárquico necessário, à semelhança do que dispõe o artigo 56º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos para os casos de invocação indevida de delegação de competência'. Intentado este recurso logo que o recorrente tomou conhecimento do ofício da Caixa Geral de Depósitos de 2 de Junho de 1993, em que esta adere à posição defendida pelo representante do Ministério Público, foi ele rejeitado, por extemporâneo, pelo Conselho de Administração da entidade recorrida. Desta decisão interpôs A. recurso contencioso de anulação para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, vindo a apensação do respectivo processo, requerida em simultâneo com a apresentação do presente recurso de constitucionalidade, a ser indeferida em 4 de Outubro de 1994.
4. Inconformado com o Acórdão de 14 de Julho de 1994 do Supremo Tribunal Administrativo, do mesmo interpôs A. o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, indicando como objecto a questão da constitucionalidade das normas do artigo 108º-A, nº 1, alínea a), do Estatuto de Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro (tendo sido aquele preceito aditado pelo Decreto-Lei nº 214/83, de 25 de Maio) e do artigo
25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
O recorrente remata as alegações produzidas neste Tribunal, dizendo que 'deverá ser declarada':
'1) a inconstitucionalidade da norma do art. 108º-A nº 1 a) do Estatuto de Aposentação aplicada na decisão recorrida, por materialmente contrária ao disposto no art. 268º nº 4 da CRP, que garante o recurso contencioso directo dos actos administrativos imediatamente lesivos de direitos individuais dos administrados.
2) e ainda a norma do art. 25º nº 1 do Dec.Lei 267/85, de 16/7, também objecto de aplicação no Acórdão sob recurso, por também se encontrar em manifesta oposição com o disposto no art. 268º nº 4 da C.R.P. e estar eivada, igualmente, de inconstitucionalidade material, só assim se fazendo justiça e decidindo conforme ao direito'.
Por sua vez, a recorrida encerra as suas alegações do seguinte modo:
'(...) não tendo sido interposto, pelo interessado, recurso hierárquico necessário, nos termos do art. 108º A, nº 1 a) do EA, o acto impugnado, que decidiu sobre a perda da pensão do recorrente, carece de definitividade vertical. E, nessa medida não traduz uma lesão directa dos direitos ou interesses legalmente protegidos do interessado, tornando a interposição directa do recurso contencioso, como bem entendeu o douto Acórdão, ora recorrido, do Supremo Tribunal Administrativo, que, aliás, pronunciando-se especificamente sobre a questão da subsistência dos recursos hierárquicos necessários, tem respondido afirmativamente, entendendo que a inovação constitucional não impõe a abertura de um recurso contencioso imediato, sendo admissível que se imponha ao administrado o prévio esgotamento das vias administrativas (...)'.
5. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
6. Importa, preliminarmente, delimitar o objecto do presente recurso de constitucionalidade. A norma do nº 1 do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho - norma essa que este Tribunal julgou não inconstitucional, embora com alguns votos de vencido, nos Acórdãos nºs. 9/95, 603/95 e 115/96, publicados no Diário da República, II Série, de 22 de Março de 1995, 14 de Março de 1996 e 6 de Maio de 1996, respectivamente -, não pode fazer parte do objecto do presente recurso não só porque o recorrente não suscitou, 'durante o processo', a questão da inconstitucionalidade daquela norma (fê-lo apenas no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, mas este não é já, segundo a jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, um momento processualmente idóneo para suscitar tal questão).
Não se verificando, pois, em relação à norma do nº 1 do artigo 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos de dois dos pressupostos específicos do recurso de consti- tucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (suscitação, 'durante o processo', da inconstitucionalidade de uma norma jurídica e ulterior aplicação desta pela decisão recorrida), circunscreve-se o objecto do presente recurso à questão da constitucionalidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 108º-A do Estatuto da Aposentação, essa sim, impugnada pelo recorrente durante o processo e aplicada na decisão recorrida.
7. A norma do artigo 108º-A, nº1, alínea a), do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 499/72, de 9 de Dezembro (norma aditada pelo Decreto-Lei nº 214/83, de 25 de Maio) prescreve o seguinte:
'Artigo 108º-A
(Recurso hierárquico)
1- Haverá recurso hierárquico necessário para o conselho de administração das resoluções que:
a) Resolvam sobre a diminuição ou perda de pensão;
(...)'.
O preceito que serve de parâmetro constitucional à norma cujo conteúdo vem de ser transcrito - e cuja violação é invocada pelo recorrente - é o nº 4 do artigo 268º da Lei Fundamental, cujo conteúdo é o seguinte:
'É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independente- mente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos'.
A análise da questão da conformidade da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 108º-A do Estatuto da Aposentação com o preceito constitucional acabado de citar foi realizada no Acórdão deste Tribunal nº 499/96 (ainda inédito), tendo-se nele afirmado que a imposição que é feita naquela norma do estatuto da Aposentação, de um recurso hierárquico necessário não é inconstitucional. Salienta-se, naquele aresto, que, 'quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição'.
E, mais adiante, concluiu-se:
'No caso vertente, a exigência de prévia interposição de recurso hierárquico (necessário) contida no artigo 108º-A do Decreto-Lei nº 498/72, aditado pelo Decreto-Lei nº 214/83, não obsta à posterior interposição de recurso contencioso nem afecta a sua utilidade. Tal exigência não contraria, por conseguinte, a norma do nº 4 do artigo 268º da Constituição.
É a solução e a fundamentação vertidas no mencionado Acórdão deste Tribunal nº 499/96 que aqui se perfilham.
8. No caso dos autos, verificam-se um conjunto de circunstâncias que poderiam levar à conclusão de que o recurso hierárquico não era exigível e que a decisão da Caixa Geral de Depósitos de 25 de Fevereiro de 1992 se apresentava como um acto administrativo verticalmente definitivo. Com efeito, não pode deixar de se sublinhar - como o faz o acórdão aqui sob recurso - que o recorrente mantinha com a Administração da Caixa Geral de Depósitos uma dupla relação: era beneficiário de uma pensão de aposentação, enquanto funcionário de B. de Moçambique, e era empregado da Caixa Geral de Depósitos; que a notificação que lhe foi feita, da revogação da pensão, referia uma decisão da 'Administração da Caixa Geral de Depósitos'; que essa notificação não referia ter essa decisão sido tomada por dois administradores e não pelo conselho de administração; e que, nos termos do nº 2 do artigo 104º do Decreto nº 694/70, de 31 de Dezembro, as deliberações da Administração da Caixa Geral de Depósitos são directamente impugnáveis.
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Julho de 1994 entendeu, porém, que se impunha uma prévia interposição de recurso hierárquico necessário, mas não deixou de acentuar que, in casu, se justificava inteiramente
'uma dilatação do prazo de interposição do recurso hierárquico necessário, à semelhança do que dispõe o artigo 56º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos para os casos de invocação indevida de delegação de competência'.
Significa isto que a norma da alínea a) do nº 1 do artigo 108º-A do Estatuto da Aposentação foi interpretada no caso dos autos pelo acórdão recorrido em termos de garantir efectivamente ao recorrente o direito ao recurso contencioso, abrindo-lhe a possibilidade, por aplicação analógica do artigo 56º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, de interpor o recurso hierárquico necessário à abertura da via contenciosa, no prazo de um mês, a contar da decisão do trânsito em julgado de decisão de rejeição do recurso.
Há, assim, que concluir que a norma da alínea a) do nº 1 do artigo
108º-A do Estatuto da Aposentação não é inconstitucional e, bem assim, que não é inconstitucional a interpretação que da mesma fez, no caso dos autos, o acórdão recorrido.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido na parte impugnada.
Lisboa, 6 de Novembro de 1996 Fernando Alves Correia Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta ao Acórdão nº
603/95, essencialmente pelas razões nela enunciadas) Luís Nunes de Almeida