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Proc. Nº 546/96
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Nestes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente F... e recorrida Companhia de Seguros A. .., pelo essencial das razões constantes da EXPOSIÇÃO de fls. 190/205, sobre a qual nenhuma das partes se pronunciou, decide-se não tomar conhecimento do presente recurso, fixando-se a taxa de justiça em 7 unidades de conta.
Lisboa, 6 de Novembro de 1996 José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa
Proc. nº 546/96
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
EXPOSIÇÃO
(Artigo 78º-A nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro - LTC)
I - Relato da sequência processual
1. F..., intentou no Tribunal do Trabalho de Faro, acção com processo ordinário emergente de contrato individual de trabalho, contra a Companhia de Seguros A ... pedindo a declaração de nulidade de um despedimento de que fora objecto por parte da ré - então sua entidade patronal -, em função da publicação da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, concretamente da sua alínea ii) do nº 1 (que amnistiou, se praticadas até 25 de Abril de 1991, 'As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada').
Contestou a ré invocando, desde logo, a inconstitucionalidade material desta alínea ii), por ofensa do artigo 13º nº 1 da Constituição. E acrescentou que, sem prejuizo dessa inconstitucionalidade, a referida norma amnistiante nunca seria 'aplicável aos trabalhadores da ré', por se reportar exclusivamente a «Empresas públicas» e «Sociedades de capitais exclusivamente públicas» e nunca a «Sociedades de capitais maioritariamente públicos», como era o seu caso.
O Tribunal de Trabalho de Faro, através da sentença de fls.
100/104 vº., julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido. Decisivo a este respeito, na estrutura lógica da decisão, foi o entendimento expresso na seguinte passagem :
'... há que concluir, que a dita alínea ii) não se aplica ao despedimento em causa dado que (...) a ré à data das infracções, ou mesmo à data da entrada em vigor da aludida Lei 23/91, não era uma empresa pública nem de capitais exclusivamente públicos.'
1.1. Inconformado apelou o autor para o Tribunal da Relação de
Évora. Nas suas alegações, depois de equacionar como uma das questões determinantes da decisão recorrida, a de 'a que empresas, em termos de capital social, se aplica a Lei 23/91', concluíu :
'---------------------------------------- II - Na data em que ocorreram os factos que motivaram o processo disciplinar, a ré era sociedade anónima de capitais, maioritariamente públicos (DL 109/89, de
13.4, artº 1º-1).
III - É irrelevante a questão de saber se esse capital era exclusivamente público, ou se apenas maioritariamente público, já que o Estado, mesmo na segunda hipótese, sempre controlaria a empresa.
IV - A lei de amnistia (cit. artº 1º ii) não distingue entre capitais exclusivamente públicos e capitais maioritariamente públicos, havendo que recorrer, para ressalvar eventuais dúvidas, aos princípios gerais que regem o domínio do capital nas sociedades anónimas.
V - E se dúvidas houvesse quanto à questão dos capitais públicos, elas teriam sempre que ser resolvidas por aplicação do princípio do favor laboratoris.
VI - O Estado, enquanto detentor, em exclusivo, ou em maioria do capital social de uma empresa, pode exercer simultaneamente o seu jus imperii e o jus puniendi, por meio de medida de clemência com carácter genérico, como é o caso da amnistia.
VII - A amnistia de infracções disciplinares laborais, em empresas públicas ou de capitais públicos, não ofende qualquer princípio constitucional, designadamente o da igualdade, tanto mais que o Estado, nesse caso, apenas torna extensivas ao pessoal dessas empresas medidas de clemência que aplica ao pessoal da função pública ou ao pessoal das forças militares ou militarizadas.
VIII - A Constituição (cap.III), continua a consignar direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, das quais se vê o uso do poder de amnistiar infracções disciplinares em empresas de capitais públicos não configura qualquer
'inadmissível' intromissão do Estado no domínio das relações privadas (cfr.CRP,
55, maxime c) e d)).'
O Tribunal da Relação de Évora, apreciando a apelação, proferiu o Acórdão de fls. 132/139 vº, concedendo-lhe provimento.
Contrariamente ao entendido na decisão da 1ª Instância consignou-se neste aresto que a circunstância da ré não ser , ao tempo, uma
'empresa privada', chegava para considerar abrangido pela citada alínea ii) o despedimento promovido relativamente ao autor.
1.2. Inconformada a ré, desta feita, recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando, com interesse para o presente recurso, as seguintes conclusões :
' 1. Nos termos do nº 2 do DL nº 260/76, são sociedades de capitais públicas aquelas cujo capital é detido, em exclusivo, pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas.
2. A amnistia decretada pela alínea ii) do artº da Lei nº 23/91 não é aplicável ao caso dos autos porque à data da sua entrada em vigor, 5 de Julho de 1991, a recorrente não era uma sociedade de capitais exclusivamente públicos, mas sim uma sociedade de economia mista, já que 49% do seu capital social havia sido alienado por força do disposto no artº 6º do DL nº 109/89, de 13/4, como decorre do relatório do DL nº 348/90, de 5/11.
3. A alienação de 49% do capital social da recorrente teve lugar em sessão especial da Bolsa de Valores do Porto de 29/5/91, tendo sido os restantes 51% alienados em sessão de 29/5/91, por força do DL nº 348/90, de 5/11, factos que são do domínio público e não necessitam de alegação ou prova.
4. As infracção disciplinares imputadas ao recorrido foram praticadas entre 19 de Março de 1990 e Maio do mesmo ano, quando a recorrente já era uma sociedade de economia mista, sendo empresa totalmente privatizada à data da publicação da Lei da Amnistia.
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6. A alínea ii) do artº 1º da Lei nº 23/91 é inconstitucional por violação do princípio da igualdade jurídica dos cidadãos consagrado no artº 13º nº 1 da Constituição, pois regulando-se o contrato individual de trabalhado dos empregados de empresas públicas e de capitais exclusivamente públicos pelas mesmas normas de direito privado, a amnistia trata discriminatoriamente os trabalhadores de empresas privadas ou de economia mista não com base na diferente qualidade purídica destes mas com fundamento no estatuto da entidade patronal.
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Particularmente relevante para a compreensão da presente exposição mostra-se a transcrição de algumas passagens das conclusões que o aí recorrido (autor na acção) apresentou a rematar as suas alegações na revista :
' I - Na data em que ocorreram os factos que motivaram o processo disciplinar, a ré era sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos (DL 109/89, de
13/4, arº 1º/1).
II - É irrelevante a questão de saber se esse capital era exclusivamente público, ou se apenas maioritariamente público, já que o Estado, mesmo na segunda hipótese, sempre controlaria a empresa.
III - A lei da amnistia (cit.artº 1º ii) não distingue entre capitais exclusivamente públicos e capitais maioritariamente públicos, havendo que recorrer, para ressalvar eventuais dúvidas, aos princípios gerais que regem o domínio do capital nas sociedades anónimas.
IV - E se dúvidas houvesse quanto à questão dos capitais públicos elas teriam sempre que ser resolvidas por aplicação do princípio do favor laboratoris.
V - O Estado, enquanto detentor, em exclusivo, ou em maioria, do capital social de uma empresa, pode exercer simultaneamente o seu jus imperii e o jus puniendi, por meio de medida de clemência de carácter genérico, como é o caso da amnistia.
VI - A amnistia de infracções disciplinares laborais, em empresas públicas ou de capitais públicos, não ofende qualquer princípio constitucional, designadamente o da igualdade, tanto mais que o Estado, nesse caso, apenas torna extensivas ao pessoal dessas empresas medidas de clemência que aplica ao pessoal da função pública ou ao pessoal das forças militares e militarizadas.
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O Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de fls. 177/182, depois de delimitar as questões a resolver na revista como sendo - no que a este recurso interessa - a da alegada (pela Seguradora nesse trecho recorrente) inconstitucionalidade da alínea ii) do nº 1 da Lei nº 23/91, 'por ofensa ao nº 1 do artigo 13º da Constituição, e a de saber se essa Lei de Amnistia' só abrange os trabalhadores de empresas públicas ou de empresas de capital exclusivamente público', escreveu quanto a elas :
'Quanto à alegada inconstitucionalidade. Indica-se como violado pela Lei 23/91, o artº 13º da Constituição
------------------------------------------- A recorrente fundamenta a alegada inconstitucionalidade no facto de a amnistia discriminar entre empresas públicas ou de capitais públicos e empresas privadas e que se aplica apenas a trabalhadores de determinadas empresas.
Daquele princípio constitucional resulta que são inadmissíveis diferenciações de tratamento irrazoáveis, carecidas de fundamento material ou tendo por base simples categorias subjectivas, impondo-se, contudo que se trata diferentemente o que é desigual
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O facto de a amnistia abranger somente empresas públicas ou de capitais públicos não se baseia em categorias meramente subjectivas, antes assenta num critério objectivo e razoável. E tal critério é claro. E compreende-se a referida diferença de tratamento entre trabalhadores das empresas privadas e os das públicas ou de capitais públicos, uma vez que nestas empresas quem detém o poder disciplinar é o próprio Estado e demais entidades públicas. Em relação a elas a amnistia abrange apenas os trabalhadores e a entidade pública, sem intervenção de um titular autónomo do poder patronal, independente do Estado. Esta situação justifica a diferença de tratamento entre os trabalhadores destas empresas e os das privadas. Não se verifica, pois, a alegada inconstitucionalidade, como vem sendo decidido por este Tribunal (...). Esta orientação é também a do Tribunal Constitucional
(...). Como se não descortinam fundamentos novos para alterar aquela jurisprudência. a mesma é de manter, pelo que se não verifica a apontada inconstitucionalidade.'
E mais adiante, quanto à outra questão colocada pelo recurso :
'Empresas públicas e empresas de capitais públicos. A lei da amnistia fala de empresas públicas e de capitais públicos. Com tal expressão a Lei quis excluir as empresas privadas, como resulta do seu texto. E, uma empresa em que parte do capital social está na mão de particulares não pode ser entendida como empresa de 'capitais públicos'. Se a Lei também as quisesse abranger teria dito de outra forma; ter-se-ia referido a 'empresas com capitais públicos '. Ao referir-se como se referiu a empresas públicas e empresas de capitais públicos, o legislador equiparou-as para efeito da amnistia. E com tal equiparação reflecte-se a intenção de se querer abranger as situações em que as entidades sejam entidades públicas, sem que nelas intervenham os particulares. E tal, bem se compreende. É que sendo o Estado a entidade patronal e dispondo do poder disciplinar sobre os trabalhadores daquelas empresas públicas de capitais exclusivamente públicos, bem se compreende que se queira referir só a elas.
-------------------------------------------- As empresas de capitais maioritariamente públicos - empresas de capitais mistos
- já não são pertença exclusiva do Estado, pois os particulares aí têm comparticipação. Assim, não haveria qualquer razão para equiparar estas empresas às públicas ou de capitais públicos, para efeitos da aplicação da amnistia. Como resulta da letra da própria lei, esta aponta naquele sentido, ficando-se pelas empresas públicas ou de capitais públicos, estas entendidas como de capitais exclusivamente públicos.
É esta, aliás, a jurisprudência firme deste Supremo (cfr.Acs. de 12/5/93 e de
12/11794, em col.Jur.- Acs STJ ano I, tomo II/280 e ano II, tomo I/270; e de
29/9/93, 17/2/94, em Acs Douts. 385/93 e 391/94; e de 14/4/93, em BMJ 426, 349), não se vendo razões válidas para a alterar.'
E concluindo :
' A ré era uma empresa de capitais mistos na altura em que os factos imputados ao autor foram praticados e, igualmente o era na data em que a Lei 23/91 foi publicada e em 25/4/91. Assim, e tendo em conta o acima referido, aos seus trabalhadores não se aplica a amnistia concedida pela Lei 23/91.'
Daí que, concedendo 'procedência à Revista', tenha o Supremo Tribunal de Justiça revogado o Acórdão da Relação, 'mantendo a decisão da 1ª Instância que julgou a acção improcedente'.
1.3. Aqui surge a pretensão do autor na acção, de recorrer para o Tribunal Constitucional, resultante do requerimento de fls. 186. Neste releva o trecho que se transcreve :
'------------------------------------------ não se conformando com o acórdão de fls., que, embora julgando não inconstitucional a alínea ii) do artº 1º da Lei 23/91, de 14.07., concedeu provimento à revista com o fundamento de que apenas são abrangidas pela amnistia as empresas públicas ou as de capitais exclusivamente públicos - e não as de capitais maioritariamente públicos - vem recorrer de tal decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artºs (...) 70/1, b) (...) da Lei nº
28/82, de 15.12.(...). A questão da inconstitucionalidade - pela negativa, ou seja, a não inconstitucionalidade do normativo, em causa, quanto a empresas de capitais não exclusivamente públicos - foi suscitada pelo ora recorrente, quer na sua alegação perante o Tribunal da Relação (...), quer na sua alegação perante o STJ
(...).'
II - Do não preenchimento dos pressupostos de conhecimento do recurso
2. Está em causa recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC. Este pressupõe a suscitação ao longo do processo de uma questão de inconstitucionalidade reportada a normas e que estas, no procedimento que conduziu à decisão recorrida, tenham sido actuantes em termos tais que as possamos configurar como ratio decidendi de tal decisão.
Tal suscitação tem de ser prévia à decisão recorrida (para que esta de tal questão pudesse conhecer) e só se aceitará que isso não suceda quando a decisão contenha um emprego totalmente imprevisto (com o qual a parte recorrente não pudesse razoavelmente contar) de alguma norma ou dimensão interpretativa desta que se mostre determinante dessa mesma decisão.
Estamos a referir aspectos desde sempre afirmados pela jurisprudência deste Tribunal, pelo que nos dispensamos de elencar a larga lista de Acórdãos contendo estas afirmações.
Sublinhar estes condicionalismos do recurso de constitucionalidade,nesta espécie, mostra-se particularmente relevante na presente Exposição, sendo certo que, no entendimento do ora relator, não foi pelo recorrente suscitada ao longo do processo, como questão de inconstitucionalidade, a interpretação seguida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual a referência constante da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, no seu artigo 1º alínea ii) a empresas públicas ou de capitais públicos exclui as empresas de capitais não exclusivamente públicas. E, importa acrescentar, tal questão nesses precisos termos era patente no processo desde a contestação da ré Seguradora, motivou a decisão da 1ª Instância e foi discutida pelo ora recorrente no decurso do processo, mas sempre sem referência a qualquer violação, através dessa interpretação, de normas ou princípios constitucionais.
2.1. Que assim foi resulta evidente da leitura de toda a sequência processual atrás relatada, da propositura da acção ao Acórdão do Supremo Tribunal.
É certo que se discutiu ao longo do processo uma questão de inconstitucionalidade. Foi ela - e por iniciativa da Seguradora e não do recorrente - a da eventual desconformidade constitucional da citada alínea ii) face ao princípio da igualdade. Nesta parte, o Supremo tribunal de Justiça - seguindo, aliás, a jurisprudência do Tribunal Constitucional expressa no Acórdão nº 153/93 (nos ATC, 24º Volume, 1993, pág.345) - acabou (e remete-se para o trecho do Acórdão acima citado) por dar inteira razão ao recorrente.
Sucede, porém, que aquilo em que o recorrente perdeu foi num aspecto que nada tinha que ver com tal questão de constitucionalidade. E nesse aspecto, sendo previsível a sua abordagem pela decisão recorrida, o aqui recorrente sempre foi promovendo uma discussão totalmente despida de referências constitucionais, jamais afirmando traduzir uma exigência constitucional a leitura, na alínea ii) da Lei da Amnistia, da expressão 'empresas de capitais públicos' como incluindo 'empresas de capitais maioritariamente públicos'.
Não se tratou - e é particularmente importante para o ora relator sublinhar este aspecto - de 'deixar caír' a questão de constitucionalidade ao longo do processo. Tratou-se, pura e simplesmente, de não haver colocado como questão de constitucionalidade a vertente argumentativa que no aresto impugnado foi determinante da decisão.
A circunstância de se ter discutido ao longo do processo outro problema de inconstitucionalidade, inócuo para o sentido da decisão final, não legitima, por si, o acesso à jurisdicção constitucional.
A conclusão a retirar do exposto é a de que o recurso não preenche os requisitos que possibilitam o seu conhecimento.
*
3. Nos termos do artigo 78º - A nº 1 da LTC, determina-se a audição das partes por cinco dias, quanto à posição ora expressa pelo relator.