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Processo nº 640/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. E... e P..., Ldª, com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Maio de 1995, que, negando provimento ao recurso por eles interposto, manteve o acórdão do Tribunal Colectivo da 2ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, de 15 de Julho de 1994, que, entre o mais, os havia condenado em penas de prisão e multa, pelo 'crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma continuada p. e p., pelos artigos 37º, nºs 1, alínea a), 3, 4 e 5, alínea a) do decreto-lei nº 28/84, de 20-1, e 30º, nº 2 e 74º, nº 5, do Código Penal'.
No requerimento de interposição do recurso, dizem claramente os recorrentes o seguinte:
'O recurso é interposto com fundamento na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82 na redacção dada pela Lei 85/89 em virtude da aplicação pelo Acórdão recorrido dos arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 que, no entender dos recorrentes, violam o art. 18º, nº 2, da Constituição, questão suscitada pelos ora recorrentes nos requerimentos de interposição de recurso para esse Supremo Tribunal de Justiça, constando igualmente das conclusões 18º e 16º, respectivamente dos recursos interpostos pelos recorrentes E... e P...'.
2. Feita uma EXPOSIÇÃO pelo Relator, nos termos e para efeitos do disposto no artº 78º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, mas ultrapassada essa fase processual, face à resposta então apresentada pelos recorrentes, juntaram estes aos autos as alegações, em que concluiram como se segue:
'1. Os recorrentes foram condenados nos presentes autos por terem obtido subsídios do fundo social europeu para a realização de acções de formação que não levaram a cabo de acordo com o que estava previsto;
2. Em conformidade foi-lhes aplicada a previsão normativa dos artºs 36º e 37º do Dec. Lei 28/ /84;
3. Aqueles normativos legais não visam no entanto a tutela da integridade do património público ou comunitário mas antes a realização de interesses sócio-culturais e a melhoria do nível de vida das populações através das acções de formação que promovem - Acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Abril de 1994 e parecer de Figueiredo Dias e Costa Andrade citado naquele Acórdão;
4. O estado através do IEFP acautela os seus interesses na concessão de subsídios e na realização de acções de formação através de mecanismos contratuais legalmente impostos cabendo àquele Instituto e controle e fiscalização dos contratos e a aplicação das sanções que com rigor neles vêm previstas;
5. Verificando-se irregularidades na execução das acções de formação contratadas com a Estado, maxime através de utilização indevida de dinheiros públicos ou comunitários por forma violadora daqueles contratos, a tutela desses direitos deve ser exercida pelos meios cíveis já que a norma penal não visa acautelar os mesmos interesses;
6. A defender-se o entendimento amplo que o Acórdão recorrido perfilha de que os artºs 36º e 37º da Dec.Lei 28/84 previam a incriminação por actos decorrentes de execução contratual imperfeita ou irregular dos Acórdãos com IEFP, tal entendimento amplo seria inconstitucional por violar o artº 18º nº2 da Constituição;
7. E nenhum interesse colectivo constitucionalmente tutelado permitiria que através de norma penal, que por natureza é excepcional, se viesse a duplicar a tutela do estado já prevista na lei através da via contratual;
8. Os artºs 36º e 37º do Dec.Lei 28/84 com o alcance interpretativo amplo que lhes é dado pelo Acórdão recorrido, violam o artº 18º, nº 2 da Constituição e como tal devem ser declarados inconstitucionais'.
3. Contra-alegou o Ministério Publico, concluindo que
'deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, na parte impugnada', para o que adiantou:
'1. Realiza-se o dano típico que é pressuposto e elemento constitutivo do crime previsto e punível pelo artigo 37º do Decreto-Lei nº 28/ /84, de 20 de Janeiro, quando os arguidos, embora dando uma aparência dela, não realizam a acção de formação concretamente subsidiada;
2. Candidatando-se os arguidos a subsídios, que vieram a obter, para acções de formação profissional que nunca tiveram a intenção de realizar, nem realizaram, encontram-se verificados os pressupostos de aplicação da previsão normativa do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84;
3. Assim sendo, os mencionados artigos 36º e 37º, do Decreto-lei nº 28/84, tal como foram interpretados e aplicados pelo acórdão recorrido, não violam o artigo 18º, nº 2, da Constituição'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
A questão posta pelos recorrentes está delimitada apenas ao confronto, no plano da constitucionalidade, entre os citados artigos 36º e
37º do Decreto-Lei nº 28/84, prevendo e punindo os tipos legais de crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, e o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
E esse confronto passa pela tese que os recorrentes sustentaram nas tais conclusões 16º e 18º das motivações dos recursos, de idêntico teor, e que é a seguinte:
'Os arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 são inconstitucionais por contrariarem o disposto no artº 18º, nº 2, da Constituição, uma vez que a atribuição de subsídios é já acautelada pelo Estado através de mecanismos contratuais e legais e não sendo por isso legítima a maior limitação dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstas através de normas incriminadoras de carácter naturalmente excepcional;'
A fundamentação de que se servem os recorrentes, para concluírem por essa inconstitucionalidade, cinge-se a isto:
'O Estado assegura assim através de um 'contrato administrativo' o cumprimento das normas de funcionamento da cooperação que se propõe, de acordo com o interesse do Estado na aplicação de fundos que cumpram os objectivos de desenvolvimento estabelecidos internamente e pela via comunitária.
'Contrato administrativo' através do qual o Estado fixa a via de protecção dos fundos que utiliza.
E que gere e controla através de entidades próprias como é o caso do IEFP.
Existindo tal mecanismo de protecção, que o Estado criou e utiliza, é inconstitucional a previsão dos arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 ao prever a criminalização da fraude na obtenção de subsídios ou de desvio de subsídios.
Inconstitucionalidade material que se verifica nos termos do art. 277º, nº 1, da Constituição Portuguesa, por manifesta ofensa do princípio consignado no art.
18º, nº 2, da Constituição.
De facto, A criação de normas penais reveste-se de carácter excepcional dada a sua natureza limitadora dos direitos, liberdades e garantias previstas no Capítulo I do Título II da Constituição.
Não é assim legítima a criação de normas penais quando a salvaguarda dos interesses do Estado já está acautelada pelo mecanismo contratual que o próprio Estado criou'.
Ao que respondeu o acórdão recorrido nos seguintes termos, depois de analisar os citados artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84:
'Portanto, a distinção entre os dois crimes está exactamente em que no primeiro, a obtenção do subsídio ou subvenção é feita por via de fraude (informações inexactas, incompletas, omissões) e no segundo, pressupõe-se já a obtenção de subsídio ou subvenção licitamente e o seu desvio pela aplicação a fins diferentes que estiveram na base da sua concessão.Trata-se de uma situação idêntica àquela que existia entre os crimes de burla e de abuso de confiança no Código Penal anterior e ainda agora em certa medida, já que no abuso de confiança há uma entrega lícita que depois é apropriada ou desviada ilegitimamente ao passo que na burla, há a determinação de outrem à prática de actos geradores de prejuízo por via de astúcia ou fraude. (Cfr. o acórdão deste Tribunal no Proc. nº 45 755). Acontece que o artigo 18º, nº 2, da Constituição que vem invocado, contém uma norma proibitiva da restrição dos direitos, liberdades e garantias, determinando-se ali que as restrições se deverão limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Segundo a recorrente, a salvaguarda dos interesses colectivos já estaria assegurada pelos mecanismos legais e contratuais que o Estado criou para atribuição e controlo da utilização dos subsídios.Isto, evidentemente, não tem qualquer subsistência lógica.Na verdade, como vimos acima e por isso mesmo desenvolvemos um, pouco os conceitos, os crimes dos artigos 36º e 37º, do decreto-lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, não constituem mais do que casos especiais de abuso de confiança e de burla, que sempre tiveram a tutela da Lei Penal.
Os elementos objectivos e subjectivos dos referidos crimes estão, pois, em relação de especialidade com os seus congéneres daqueles crimes do Código Penal e relativamente a estes, nunca ninguém se lembrou de afirmar que a sua função contendia com a proibição da restrição dos direitos constante do artigo 18º, nº
2, da Constituição. Cremos que esta aproximação dos crimes em causa aos seus congéneres do Código Penal, bastará para se afastar definitivamente a invocada inconstitucionalidade, exactamente porque fica patente a insuficiência da Lei Civil para tutelar os interesses em jogo'.
5. Este Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se debruçar sobre as questionadas normas dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº
28/84, embora numa diferente perspectiva de inconstitucionalidade, no acórdão nº
302/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 174, de 24 de Julho de
1995, e fê-lo em termos de concluir do seguinte modo, quanto à responsabilidade criminal das pessoas colectivas:
'Nesta sede, o que importa considerar é que, sendo o Estado de Direito material um Estado de justiça (um Estado que está empenhado, em função de considerações axiológicas materiais de justiça, na promoção das condições económicas, sociais e culturais para o livre desenvolvimento da personalidade do homem, designadamente, na sua actuação social), deve ele dar combate (se necessário for, pelo recurso a sanções penais) às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos. E, sendo tais violações cometidas, as mais das vezes, por pessoas colectivas, e não por pessoas individuais, as exigências de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de direito não podem deixar de legitimar, sub specie constitutionis, normas, como as que aqui estão sub iudicio, que consagram a responsabilidade criminal das pessoas colectivas. [Sobre o tema dos delitos antieconómicos, cf. ainda MANUEL DA COSTA ANDRADE, A Nova Lei dos Crimes Contra a Economia (Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro) à luz do Conceito de 'Bem Jurídico', in Ciclo de Estudos de Direito Económico cit., páginas 71 e seguintes]'.
É certo que outra é a questão aqui debatida, mas o Tribunal não foi então sensível, no quadro dos poderes definidos pelo artigo
79º-C, da Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, a uma hipotética inconstitucionalidade derivada da novidade legislativa dos tipos de ilícito criminal traduzidos nas normas em questão, aí se prevendo, de facto, ex novo, o crime de fraude na obtenção de subsídios ou subvenções (artigo 36º) e o crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado (artigo 37º).
Lê-se, a propósito, no acórdão nº 302/95:
'O Governo, ao prever estes novos tipos de crimes, mais não fez, porém, do que utilizar - e utilizar correctamente - a autorização que a Assembleia da República lhe concedera, justamente para 'tipifica[r] novos ilícitos penais
[...], definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal' (cf. artigo 1º da Lei nº
12/83, de 24 de Agosto, atrás transcrito). Fazendo-o, correspondeu ao fim, que a Assembleia lhe assinalou, de buscar uma 'maior eficácia [...] na prevenção e repressão deste tipo de infracções' [cf. artigo 4º, alínea a), da mesma lei], mas não se vendo, de resto, melhor maneira de dar resposta à necessidade que se fazia sentir na comunidade de proteger o interesse público da 'correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas' do que criar aqueles novos tipos de crime'.
E a insensibilidade é a mesma, posta agora a discussão concretamente no terreno em que se posicionam os recorrentes, bem se dizendo no acórdão recorrido que tal posição 'não tem qualquer subsistência lógica', ficando 'patente a insuficiência da Lei Civil para tutelar os interesses em jogo' (e segue-se a respectiva demonstração - cfr ponto 4.).
Com efeito, a posição dos recorrentes, que as transcrições ilustram, é a de que, face aos mecanismos legais e constitucionais que o Estado criou para atribuição e controlo da utilização dos subsídios, com os quais se acautela, não pode ele querer criminalizar os comportamentos vazados nos artigos
36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84 (diploma regulador da matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública), o que vale dizer que o interesse geral da colectividade não exigiria essa criminalização, violando-se, assim, o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
Ora, é exactamente esse interesse geral da colectividade - o interesse público da 'correcta aplicação de dinheiros públicos' de que se fala no acórdão 302/95 - a exigir a tipificação legal, no plano da criminalidade económica, de condutas eticamente censuráveis, dando-se, assim, combate às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos que integram o direito penal económico (veja-se Pedro Verdelho, in Revista do Ministério Público, nº
66, págs.61 e seguintes, a propósito das chamadas 'irregularidades' nos subsídios do Fundo Social Europeu).
Não competindo a este Tribunal Constitucional fazer o controlo e a censura da matéria de facto apurada nas instâncias ou do juízo aí feito do preenchimento dos respectivos tipos legais de crime - e, por isso não há que seguir o trilho do Ministério Público, nas suas alegações, ao relatar e dar relevo à factualidade apurada quanto à conduta dos recorrentes -, o que importa é só, como atrás ficou dito, o confronto entre aqueles tipos e o artigo
18º, nº 2, da Constituição, traduzido na afirmação essencial dos recorrentes de que 'nenhum interesse colectivo constitucionalmente tutelado permitiria que através de norma penal, que por natureza é excepcional, se viesse a duplicar a tutela do estado já prevista na lei através da via contratual' (saber se estão, ou não, fixados os pressupostos de aplicação da previsão normativa dos artigos
36º e 37º, ora questionados, é matéria que escapa à sindicabilidade do Tribunal Constitucional).
E já se viu que não há confronto, como, aliás, decorre da demonstração feita no acórdão recorrido.
Cabe, em todo o caso, assinalar e repetir que se está num domínio em que se faz sentir a necessidade de dar combate à incorrecta aplicação de dinheiros públicos, por via da criminalização dos respectivos comportamentos infractores.
De resto, se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio de humanidade e o princípio da proporcionalidade - é este que avulta in casu -, 'o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)' (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
'É evidente - lê-se no citado acórdão nº 634/93 - que o juizo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo
âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva'.
Como, nesta matéria, e na linha de orientação do acórdão nº 83/95, este Tribunal Constitucional 'só deve censurar as soluções legislativas que forem manifestamente excessivas', há que concluir que as normas em causa não violam qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente aquele que os recorrentes invocam.
E não se queira ver a desnecessidade da criminalização na circunstância de para as situações em causa existir suficiente garantia obrigacional, aquela que os recorrentes caracterizam como 'mecanismo contratual que o próprio Estado criou'. De facto, e talqualmente acontece na hipótese versada no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 572/95 (DR, II Série, nº 62 de 13 de Março de 1996), ligada ao instituto do penhor, também poderá dizer-se que 'não são suficientes os sancionamentos constantes do ordenamento jurídico civil para obstarem a uma possível violação dos interesses subjacentes à constituição do penhor sem privação da detenção da coisa, mormente tendo em conta os interesses de terceiros de boa fé'.
Nem se invoque o entendimento doutrinal de Figueiredo Dias e Costa Andrade (in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, 3º, Julho-Setembro de 1994) citado pelos recorrentes e reproduzido nas alegações do Ministério Público, pois aqueles Autores não afastam decisivamente a ideia de incriminação típica da lesão efectiva dos bens jurídicos que integram o direito penal económico, antes questionam e só a proliferação de hipóteses que não preencheriam aquela incriminação (as práticas que não poderiam ser levadas à conta de desvio de subsídio ou de fraude na obtenção do subsídio). Mas dessa qualificação no caso concreto - ela foi feita já nas instâncias - não cura aqui o Tribunal Constitucional.
6. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido. Lisboa, 6 de Novembro de 1996 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa
Processo nº 640/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como recorrentes E... e P..., Ldª e como recorrido o Ministério Público, pelo essencial dos fundamentos constantes da EXPOSIÇÃO do Relator, a fls. 2972 e seguintes, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, e que não foram abalados pela resposta dos recorrentes - ela reconduz-se só à repetição da tese sustentada nos autos pelos recorrentes de que, à luz do artigo
18º, nº 2, da Constituição 'não faz sentido a previsão normativa que pune como crime os actos de utilização indevida de dinheiros comunitários' -, tendo merecido a 'inteira concordância' do Ministério Público recorrido, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condenam-se os recorrentes nas custas, com a taxa de justiça fixada em unidades de conta.
Processo nº 640/95
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
EXPOSIÇÃO
1. E... e P..., Ldª, com os sinais identificadores dos autos, vieram interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Maio de 1995, que, negando provimento ao recurso por eles interposto, manteve o acórdão do Tribunal Colectivo da 2ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, de 15 de Julho de 1994, que, entre o mais, os havia condenado em penas de prisão e multa, pelo 'crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma continuada p. e p., pelos artigos 37º, nºs 1, alínea a),
3, 4 e 5, alínea a) do decreto-lei nº 28/84, de 20-1, e 30º, nº 2 e 74º, nº 5, do Código Penal'.
No requerimento de interposição do recurso, dizem claramente os recorrentes o seguinte:
'O recurso e interposto com fundamento na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82 na redacção dada pela Lei 85/89 em virtude da aplicação pelo Acórdão recorrido dos arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 que, no entender dos recorrentes, violam o art. 18º, nº 2, da Constituição, questão suscitada pelos ora recorrentes nos requerimentos de interposição de recurso para esse Supremo Tribunal de Justiça, constando igualmente das conclusões 18º e 16º, respectivamente dos recursos interpostos pelos recorrentes E... e P...'.
2. Decorre daqui que a questão posta pelos recorrentes está delimitada apenas ao confronto, no plano da constitucionalidade, entre os citados artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, prevendo e punindo os tipos legais de crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, e o artigo 18º, nº 2, da Constituição.
E esse confronto passa pela tese que os recorrentes sustentaram nas tais conclusões 16º e 18º das motivações dos recursos, de idêntico teor, e que é a seguinte:
'Os arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 são inconstitucionais por contrariarem o disposto no artº 18º, nº 2, da Constituição, uma vez que a atribuição de subsídios é já acautelada pelo Estado através de mecanismos contratuais e legais e não sendo por isso legítima a maior limitação dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstas através de normas incriminadoras de carácter naturalmente excepcional;'
A fundamentação de que se servem os recorrentes, para concluírem por essa inconstitucionalidade, cinge-se a isto:
'O Estado assegura assim através de um 'contrato administrativo' o cumprimento das normas de funcionamento da cooperação que se propõe, de acordo com o interesse do Estado na aplicação de fundos que cumpram os objectivos de desenvolvimento estabelecidos internamente e pela via comunitária.
'Contrato administrativo' através do qual o Estado fixa a via de protecção dos fundos que utiliza.
E que gere e controla através de entidades próprias como é o caso do IEFP.
Existindo tal mecanismo de protecção, que o Estado criou e utiliza, é inconstitucional a previsão dos arts. 36º e 37º do Dec.-Lei 28/84 ao prever a criminalização da fraude na obtenção de subsídios ou de desvio de subsídios.
Inconstitucionalidade material que se verifica nos termos do art. 277º, nº 1, da Constituição Portuguesa, por manifesta ofensa do princípio consignado no art.
18º, nº 2, da Constituição.
De facto,
A criação de normas penais reveste-se de carácter excepcional dada a sua natureza limitadora dos direitos, liberdades e garantias previstas no Capítulo I do Título II da Constituição.
Não é assim legítima a criação de normas penais quando a salvaguarda dos interesses do Estado já está acautelada pelo mecanismo contratual que o próprio Estado criou'.
Ao que respondeu o acórdão recorrido nos seguintes termos, depois de analisar os citados artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84:
'Portanto, a distinção entre os dois crimes está exactamente em que no primeiro, a obtenção do subsídio ou subvenção é feita por via de fraude (informações inexactas, incompletas, omissões) e no segundo, pressupõe-se já a obtenção de subsídio ou subvenção licitamente e o seu desvio pela aplicação a fins diferentes que estiveram na base da sua concessão.Trata-se de uma situação idêntica àquela que existia entre os crimes de burla e de abuso de confiança no Código Penal anterior e ainda agora em certa medida, já que no abuso de confiança há uma entrega lícita que depois é apropriada ou desviada ilegitimamente ao passo que na burla, há a determinação de outrem à prática de actos geradores de prejuízo por via de astúcia ou fraude. (Cfr. o acórdão deste Tribunal no Proc. nº 45 755).Acontece que o artigo 18º, nº 2, da Constituição que vem invocado, contém uma norma proibitiva da restrição dos direitos, liberdades e garantias, determinando-se ali que as restrições se deverão limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.Segundo a recorrente, a salvaguarda dos interesses colectivos já estaria assegurada pelos mecanismos legais e contratuais que o Estado criou para atribuição e controlo da utilização dos subsídios.Isto, evidentemente, não tem qualquer subsistência lógica.Na verdade, como vimos acima e por isso mesmo desenvolvemos um, pouco os conceitos, os crimes dos artigos 36º e 37º, do decreto-lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, não constituem mais do que casos especiais de abuso de confiança e de burla, que sempre tiveram a tutela da Lei Penal.
Os elementos objectivos e subjectivos dos referidos crimes estão, pois, em relação de especialidade com os seus congéneres daqueles crimes do Código Penal e relativamente a estes, nunca ninguém se lembrou de afirmar que a sua função contendia com a proibição da restrição dos direitos constante do artigo 18º, nº
2, da Constituição.Cremos que esta aproximação dos crimes em causa aos seus congéneres do Código Penal, bastará para se afastar definitivamente a invocada inconstitucionalidade, exactamente porque fica patente a insuficiência da Lei Civil para tutelar os interesses em jogo'.
3. As transcrições propositadamente feitas das peças processuais que interessam ao presente caso servem para revelar que estamos perante um recurso de constitucionalidade, abrigado na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que é manifestamente infundado e, por isso, dele não se pode conhecer e nem sequer devia ter sido admitido (nº
2 do artigo 76º).
É que, na linha do entendimento do acórdão deste Tribunal Constitucional nº 501/94, publicado na II Série do Diário da República, nº 284, de 10 de Dezembro de 1994, um recurso desse tipo é aquele 'cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva' ('Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respectivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis' - acrescenta-se no aresto).
É o que se passa no caso dos autos.
Com efeito, a posição dos recorrentes, que as transcrições ilustram, é a de que, face aos mecanismos legais e constitucionais que o Estado criou para atribuição e controlo da utilização dos subsídios, com os quais se acautela, não pode ele querer criminalizar os comportamentos vazados nos artigos
36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84 (diploma regulador da matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública), o que vale dizer que o interesse geral da colectividade não exigiria essa criminalização, violando-se, assim, o artigo
18º, nº 2, da Constituição.
Mas, como bem se diz no acórdão recorrido, isso 'não tem qualquer subsistência lógica', ficando 'patente a insuficiência da Lei Civil para tutelar os interesses em jogo'. Demonstração que é feita no aresto e aqui se acompanha.
Daqui decorre que o presente recurso de constitucionalidade carece de fundamento atendível, porque notoriamente não apresenta - nem se vislumbra - argumentação no sentido da alegada inconstitucionalidade.
Portanto, dele não se pode tomar conhecimento, porque manifestamente infundado.
4. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, da Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.