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Proc. nº 789/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do Tribunal Colectivo da 7ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa, o ora recorrente C. F., melhor identificado nos autos, foi condenado a uma pena de quatro anos e seis meses de prisão - com perdão de um ano nos termos do disposto no art. 14º, da Lei 23/91, de 4 de Julho -, pela prática do crime previsto no art. 36º, nº 1, alíneas a) e b), e nºs 2 e 5, alínea a), do Decreto Lei 28/84, de 20 de Janeiro.
2. Inconformado com o teor do aresto supra referido o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por decisão de 15 de Outubro de 1997, concedeu parcial provimento ao recurso, condenando o ora recorrente na pena de três anos de prisão, ficando a sua execução suspensa por igual período.
3. De novo inconformado o ora recorrente interpôs, ao abrigo da alínea b), do nº
1, do art. 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada a constitucionalidade orgânica do Decreto Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, bem como da respectiva Lei de autorização legislativa, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, por violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, alínea c), e nº 2, e 207º da Constituição. Pretendia ainda o recorrente - nos termos do respectivo requerimento de interposição do recurso - ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 374º, nº 2 e 410º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada pelo acórdão recorrido, no sentido de ser suficiente para a fundamentação de facto a mera enunciação de prova, por entender que tal interpretação é violadora do art. 32º, nº 1, da Constituição.
4 - Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para apresentar alegações, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1. O Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, que tem por objecto matéria que respeita à reserva da competência legislativa da Assembleia da República (art.
168º, nº 1, al. a), da Constituição), padece de inconstitucionalidade orgânica, por várias razões;
2. Em primeiro lugar, porque não foi respeitado o âmbito de vigência temporal da Lei de Autorização Legislativa nº 12/83, de 24 de Agosto, ao abrigo da qual foi publicado;
3. Com efeito, esta Lei fixou um prazo de 120 dias para o Governo legislar sobre a matéria em causa; prazo esse que expirou no dia 23 de Dezembro de 1983, uma vez que a referida Lei entrou em vigor no dia imediato ao da sua publicação, ou seja, no dia 25 de Agosto;
4. Este prazo não foi respeitado, uma vez que o Dec. Lei nº 28/84 só veio a ser promulgado pelo Presidente da República no dia 11 de Janeiro de 1984 e referendado pelo Governo, através do Primeiro Ministro, em 9 de Janeiro do mesmo ano, actos mediante os quais veio a adquirir existência jurídica, nos termos dos artigos 140º e 143º, nºs 1 e 2 da Constituição;
5. Em consequência, o Decreto-Lei nº 28/84 versa sobre matéria que constitui reserva de competência relativa da Assembleia da República sem que tenha existido autorização para o efeito, uma vez que a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, veio a caducar ainda antes da data em que o diploma do Governo ganhou existência jurídica;
6. O Dec. Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, é, assim, organicamente inconstitucional, inconstituciona-lidade que desde já se argui expressamente, para todos os efeitos, por violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, al. c) e nº 2 da Constituição.
7. Em segundo lugar, o Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, não respeitou o objecto, o sentido e a extensão que lhe foram fixados pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto;
8. Na verdade, esta Lei apenas conferiu ao Governo autorização para rever o regime em vigor na matéria das infracções antieconómicas e contra a saúde pública;
9. O tipo de fraude na obtenção de subsídio, p.p. pelo art. 36º do Dec. Lei nº
28/84, de 20 de Janeiro, não constava desse regime anterior, para cuja revisão o Governo foi autorizado pela Lei 12/83, de 24 de Agosto, pelo que a sua inclusão no Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, constitui uma inovação não autorizada pela Assembleia da República;
10. O Dec. Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, é organicamente inconstitucional por violar o disposto nos artigos 168º, nº1, al. c) e nº 2 da Constituição, por não ter respeitado o objecto, o sentido e a extensão da respectiva Lei de Autorização, a Lei nº 12/83, de 24 de agosto;
11. Se assim não se entender deve considerar-se inconstitucional a própria Lei de Autorização Legislativa, por violação do disposto no art. 168º, nº 2, da Constituição, uma vez que a sua formulação é demasiado ampla, não cumprindo as exigências deste preceito, com a consequente inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, publicado ao seu abrigo'.
5 Notificado para responder, querendo, às alegações do recorrente, disse, a concluir, o Ministério Público:
'1. O momento relevante para aferir da tempestividade do uso de uma autorização legislativa é o da aprovação do Decreto-Lei que a executa em Conselho de Ministros, pelo que é obviamente irrelevante o facto de o Decreto-Lei nº 28/84 ter sido promulgado e referendado em data ulterior ao termo do prazo que constava da lei de autorização com base na qual foi editado.
2. A Lei nº 12/93 define com suficiente clareza o objecto, o sentido e a extensão da autorização que outorga ao Governo, pelo que não padece de inconstitucionalidade, não sendo igualmente inconstitucionais as normas que, em estrita obediência ao nela prescrito, criaram os tipos de crime de fraude ou desvio de subvenção ou subsídio.
3. Termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso'.
Dispensados os vistos legais cumpre decidir. II - Fundamentação
6. Delimitação do objecto do recurso: Nos termos do requerimento de interposição do recurso que agora se julga o recorrente solicitou ao Tribunal Constitucional que: i) apreciasse da constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, bem como da respectiva Lei de Autorização Legislativa, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, por entender que tais diplomas violavam o disposto nos artigos
168º, nº 1, alínea c), e nº 2, e 207º da Constituição; ii) apreciasse da constitucionalidade da interpretação dada pela decisão recorrida ao disposto nos artigos 374º, nº 2 e 410º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, por entender que tal interpretação violava o disposto no art.
32º, nº 1, da Constituição. Porém, nas alegações que apresentou neste Tribunal, o recorrente abandonou este segundo grupo de questões - o relacionado com a alegada inconstitucionalidade dos artigos 374º, nº 2 e 410º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal -, pelo que o objecto do recurso se deve ter por reportado à apreciação da inconstitucionalidade orgânica do Decreto Lei nº 24/84, de 20 de Janeiro, bem como da respectiva Lei de Autorização Legislativa, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, por alegada violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, alínea c), e nº
2, e 207º da Constituição.
7. Apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas: Delimitado nestes termos o objecto do recurso verificamos que - como, bem, salienta o Ministério Público no seu parecer - as questões que há que decidir não são novas. Pelo contrário, todas elas foram já objecto de diversos acórdãos deste Tribunal, formando uma jurisprudência constante e unânime no sentido de que os diplomas e normas ora questionados pelo recorrente não padecem das inconstitucionalidades que lhes são imputadas. Quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, vejam-se, nomeadamente, os acórdãos nºs 651/93 e 213/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., pp. 223; e 30º vol., pp. 985 e ss., respectivamente); e quanto à alegada inconstitucionalidade da Lei 12/83, de 24 de Agosto, os acórdãos nºs 213/95, e 302/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., pp. 985 e ss., e Diário da República, II Série, de 29 de Julho de 1995, respectivamente). Vejamos, resumidamente, o que aí se disse a propósito de cada uma das questões de constitucionalidade ora suscitadas pelo recorrente.
7.1. A questão da (in)constitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de janeiro. O Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, foi emitido ao abrigo da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto - Lei de Autorização Legislativa -, a qual concedeu um prazo de
120 dias ao Governo para legislar sobre ilícitos penais em matéria de infracções antieconómicas e sobre a saúde pública. Pretende o recorrente que tal diploma padece de inconstitucionalidade orgânica uma vez que a respectiva Lei de Autorização Legislativa caducou ainda antes da data em que ele próprio ganhou existência jurídica, porquanto a sua promulgação e referenda - condições de existência jurídica do diploma - só foram obtidas já depois de esgotado o referido prazo de 120 dias. Esta questão, como se disse, não é nova, tendo sido já objecto de várias decisões deste Tribunal. No Acórdão nº 651/93 (já citado), pode ler-se:
'Como o Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, editado no uso da referida autorização legislativa, foi aprovado em Conselho de Ministros de 6 de Dezembro de 1983, mas só foi promulgado em 9 de Janeiro de 1994, referendado no dia 11 seguinte e publicado a 20 desse mesmo mês e ano, coloca-se a questão de saber, destes actos do processo legislativo, qual é o constitucionalmente relevante para o efeito de se dever considerar utilizada em tempo a autorização legislativa.
É que, tal autorização só foi utilizada em tempo, se esse acto for o da aprovação em Conselho de Ministros - como se decidiu no acórdão recorrido -, pois que só ele ocorreu antes de a autorização ter caducado. Todos os outros actos do iter legislativo tiveram lugar depois dessa data. Este Tribunal já teve ocasião de decidir esta questão (...). A falta de promulgação ou referenda importam, é certo, a inexistência jurídica do acto (cf. artigos 140º e 143º, nº 2 da Constituição). Daqui, porém, não decorre que, para o efeito agora considerado - ou seja: para o efeito de saber qual o acto do iter legislativo que se deve considerar relevante quando esteja em causa verificar se o Governo, ao editar um decreto-lei no uso de uma autorização legislativa, o fez dentro do respectivo prazo de validade - se haja de atender à data da promulgação ou referenda. Para que se considere respeitado o prazo da autorização legislativa - escreveu-se no Acórdão nº 150/92, publicado no Diário da República, II Série, de
28 de Julho de 1992 -, basta que ocorra dentro desse prazo a aprovação pelo Conselho de Ministros do decreto-lei emitido no uso dessa autorização'.
É esta orientação, e pelas razões expostas, que aqui se reitera. Sustenta ainda o recorrente que o Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, é inconstitucional na medida em que não respeitou o objecto, o sentido e a extensão que lhe foram fixados pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, porquanto esta Lei apenas conferiu ao Governo autorização para rever o regime em vigor na matéria das infracções antieconómicas e contra a saúde pública, sendo que o tipo de fraude na obtenção de subsídio, p.p. pelo art. 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de janeiro, não constava desse regime anterior, para cuja revisão o Governo foi autorizado pela Lei 12/83, de 24 de Agosto, pelo que a sua inclusão no Decreto-Lei nº 28/84 constitui, no entender do recorrente, uma inovação não autorizada pela Assembleia da República. Também sobre esta questão o Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, e igualmente no sentido da não inconstitucionalidade do diploma em análise. De facto, disse-se no Acórdão nº 213/95 (já citado):
'O Decreto-Lei nº 28/84, nos artigos 36º e 37º, definiu, respectivamente, os crimes de Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e fixou as respectivas penas. A propósito da criação destes dois novos tipos legais de crime, na exposição preambular daquele diploma, escreveu-se assim: «Entre os novos tipos de crime incluídos neste diploma destacam-se a fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, o desvio ilícito dos mesmos e a fraude na obtenção de créditos, conhecidos de outras legislações como a República Federal da Alemanha, os quais, pela gravidade dos seus efeitos e pela necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignorados pela nossa ordem jurídica». Ora, quando a Assembleia da República autorizou o Governo, em matéria de infracções económicas e contra a saúde pública a «alterar os regimes em vigor» e a tipificar «novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas ou modificando as actuais», com o objectivo de se alcançar «maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções» facultou-lhe os instrumentos de política legislativa necessários a «uma rápida revisão dos tipos e penas em matéria de criminalidade nos domínios económicos, financeiros e de defesa do consumidor, de modo a adequá-los a novas modalidades de delinquência e
à gravidade das infracções praticadas» (cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 20/III, Diário da Assembleia da República, II Série, nº 18, de 9 de Julho de 1983). E assim sendo, ao definir os novos tipos legais de crime que se contêm nas normas dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/84, o Governo não «extravasou os limites normativos fixados na autorização legislativa», nem desrespeitou o seu sentido, limitando-se a concretizar uma directiva que nesta seguramente se continha'. Assim, mais uma vez, apenas há agora que reiterar o sentido de anteriores decisões deste Tribunal sobre a mesma questão, decidindo, em consequência, pela não inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, por se entender que este respeitou o objecto, o sentido e a extensão que lhe foram fixados pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto.
7.2. A questão da (in)constitucionalidade da Lei nº12/83, de 24 de Agosto. Sustenta, finalmente, o recorrente, que deve considerar-se inconstitucional a própria Lei de Autorização Legislativa, por violação do disposto no art. 165º, nº 2, da Constituição, uma vez que esta não define, de forma suficiente, o objecto, o sentido e a extensão da autorização. Porém, mais uma vez, não assiste razão ao recorrente. Disse-se, também no Acórdão nº 213/95, a este propósito:
' Ora, à luz do entendimento jurisprudencial que vem sendo afirmado por este Tribunal, haverá de dizer-se que a Lei nº 12/83, nas normas sob sindicância, não colide com o texto constitucional. Com efeito, tanto os elementos enunciadores da matéria sobre que versa a autorização, como a amplitude a revestir pelas leis delegadas, isto é, o objecto e a extensão da autorização, se mostram suficientemente explicitados no artigo
1º, alínea a), da respectiva lei, quando ali se habilita o Governo, no domínio da «matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública» a «alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal». E o mesmo deverá afirmar-se relativamente aos princípios gerais, aos critérios rectores a que a legislação autorizada havia de se conformar e obedecer. Ao definir o sentido da autorização legislativa relativa às infracções antieconómicas e contra a saúde pública em termos de aquele se traduzir na
«obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções, nomeadamente actualizando o regime em vigor» a Assembleia da República instruiu o Governo com uma directiva suficientemente perceptível quanto à «orientação política da medida legislativa a adoptar», e quanto aos valores e bens jurídicos e os interesses que o legislador delegado deverá tutelar com a criminalização daquelas condutas'.
Em consequência decidiu-se então, julgamento que agora se reitera, que a Lei nº
12/83, de 24 de Agosto, não colide, nas normas sob sindicância, com o texto constitucional.
III - Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 4 de Novembro de 1998 José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento Bravo Serra Luis Nunes de Almeida