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Proc. nº 291/95
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I A CAUSA
1. A. propôs no Tribunal Judicial da Comarca do
------------- acção de despejo contra B., invocando a caducidade do arrendamento de um -----º andar, do Largo ------------, nº -------, no -------------, por morte do primitivo arrendatário, facto não comunicado ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção, nos 180 dias posteriores à ocorrência. Invocou o senhorio, em apoio desta pretensão, o disposto no artigo 89º do Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL nº321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção neste introduzida pelo DL nº 278/93, de 10 de Agosto (ou seja na redacção que suprimiu o nº 3 do artigo 89º do texto primitivo do RAU).
1.1. Através do saneador /sentença de fls. 42/52, foi julgado improcedente o pedido de reconhecimento da caducidade desse arrendamento, com a consequente absolvição da ré.
Fundou-se esta decisão num particular entendimento que se expressou na seguinte passagem :
'Como é sabido a regra de caducidade do arrendamento habitacional por morte do arrendatário - cfr. Artº 1051/d) do CCivil - sofre uma importante excepção consagrada no Artº 85º do RAU. Por força do nº 1 de tal normativo, o arrendamento perdurará à morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual se lhe sobreviver alguma das pessoas que constam do rol explicitado e graduado no seguinte nº 2 do mesmo preceito legal.
É esta transmissão do direito ao arrendamento ou da posição do arrendatário que aqui se encontra em causa, nomeadamente com a questão que ronda o dever de comunicar a morte do arrendatário a cargo do transmissário e as consequências jurídicas da omissão de tal dever ou do seu incumprimento intempestivo.
Até à publicação e entrada em vigor do citado DL 278/93 de 10/8, a tese que defendia a não caducidade da transmissão do arrendamento para essas situações de falta, teve expressa consagração legal no Artº 89/3 do RAU, ao limitar as consequências dessa omissão à indemnização por perdas e danos. Assumia, assim, a transmissão do arrendamento um carácter automático, ope legis ou ipso jure, na configuração da figura da comunicação da morte do arrendatário, não como uma forma de exercício de tal direito, mas sim como instrumento de comunicação ao interessado directo da já assumida posição de arrendatário.
Com o aparecimento do novo Artº 89º-D do RAU, que previne que o não cumprimento de tal dever de comunicação ou o seu intempestivo exercício é sancionado ou importa a caducidade do direito de transmissão, esta tese foi postergada, salientando uma alteração de fundo no regime. A consideração de tal transmissão passaria, agora, pela exigência de uma aceitação ou confirmação por parte do beneficiário, com eficácia retroactiva à data da morte do arrendatário.
Todavia esta inovação sai fora dos quadros da Lei de Autorização Legislativa - Lei 14/93 de 14/5 -, pois o sentido e a extensão do respectivo mandato legiferante não admitia, claramente, qualquer alusão à modificação do regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional. O alcance da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, abrange aqui a matéria aludida de destacada ressonância social, marcando a própria definição do regime geral, normal ou típico da matéria normativa ou do subsistema normativo em causa. Daí que se entenda, como única via possível, que a eliminação do citado nº 3 do Artº 89º do RAU sofre de vício de inconstitucionalidade orgânica por ofensa do estatuído pelo Artº 168/1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa - neste sentido, Januário Gomes, Arrendamentos Para Habitação, 1994, 177/179.
Porque assim é, porque tal eliminação padece de vício de inconstitucionalidade, só teremos que declarar a nossa oposição e recusa, em fiscalização concreta, à aplicação da norma inferida do Artº 89º-D do RAU à situação consagrada nos autos, tudo em face do estipulado, conjugadamente, nos Artºs 207 e 280/1, ambos da Constituição da República Portuguesa'.
1.2.Desta decisão interpôs o Ministério Público o competente recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, recurso que, admitido no Tribunal a quo, aqui chegou e prosseguiu os seus termos, alegando, apenas, o Ministério Público, formulando o Exmº Procurador-Geral Adjunto as seguintes conclusões :
1º
É organicamente inconstitucional, por violação do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição da República Portuguesa - face ao sentido e extensão da autorização legislativa constante da Lei nº 14/93, de 14 de Maio - a interpretação da norma contida no artigo 89º - D do RAU (na redacção emergente do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto) em termos de a cominação da caducidade nela estatuída abranger o não cumprimento tempestivo do dever de comunicação previsto nos nºs 1 e 2 do artigo 89 do RAU.
2º
Tal interpretação, quando conduzisse, como ocorre no caso dos autos,
à aplicação de tal norma a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, afectando a estabilidade de situações jurídicas já perfeitamente consolidadas, padeceria ainda de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da confiança, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
1.3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO
2. Está em causa uma decisão de recusa fundada em inconstitucionalidade orgânica. Reporta-se essa recusa à eliminação do nº 3 do artigo 89º do RAU, operada pelo DL nº 278/93, sendo que face a essa supressão
(que a decisão em causa entende não autorizada pela Assembleia da República através da Lei nº 14/93, de 14 de Maio) operar-se-ia a caducidade do arrendamento, por aplicação do artigo 89º D do RAU aditado pelo DL nº 278/93 : faltando o 'regime especial' decorrente desse nº 3, para a hipótese de não comunicação atempada da morte do primitivo arrendatário, aplicar-se-ia o 'regime geral', para a inobservância dos prazos fixados na Secção III do Capítulo II do RAU, constante do aludido artigo 89º - D.
A decisão em causa aderiu expressamente, nesta parte, ao entendimento do Dr. Januário Gomes (Arrendamentos para Habitação, Coimbra 1994, págs.176 e segs.; cfr. também neste sentido, António Pais de Sousa, Anotações ao Regime de Arrendamento Urbano, 3ª ed.). O referido autor explícita o seu ponto de vista sobre a matéria, nos seguintes termos :
' Não se trata de considerar inconstitucional o citado artigo
89º-D; Trata--se de considerar inconstitucional a eliminação do nº 3 do artigo
89º : o artigo 89º - D mantém aplicação, como norma geral, aos restantes casos de não cumprimento de prazos identificáveis na secção, maxime os casos dos artigos 89º-A a 89º-C.'
A questão de inconstitucionalidade é, assim, normativamente reportável à eliminação do nº 3 do artigo 89º do RAU, através do DL nº278/93, e não ao artigo 89º-D em si (v., a este respeito, Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, Coimbra 1995, nota 1, pág.388 e nota 3, pág.391). A não aplicação desta última norma pela decisão recorrida, traduz um momento interpretativo já posterior à recusa por inconstitucionalidade e resulta, tão só, da repristinação do nº 3 do artigo 89º suprimido - ilegitimamente na visão da decisão recorrida - pelo legislador autorizado. É neste sentido que tem de ser compreendida a afirmação da sentença de que recusa
'aplicação da norma inferida do artigo 89º-D do RAU à situação consagrada nos autos'.
Definido nestes termos o problema a resolver, passemos à apreciação da sequência temporal normativa que leva à supressão do trecho legal em causa.
2.1. No regime imediatamente anterior ao RAU, na sua primitiva versão (a resultante do texto original do DL nº 321-B/90), dispunha o artigo 1111º do Código Civil (texto da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro), não caducar o arrendamento, por morte do primitivo arrendatário, ou daquele a quem tivesse cedido a sua posição contratual, sobrevivendo-lhe 'cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto'. Continha ainda a referida disposição o seguinte trecho com particular interesse para a nossa indagação :
Artigo 1111º
--------------------------------------------
5. A morte do primitivo inquilino ou do cônjuge sobrevivo deve ser comunicada ao senhorio no prazo de 180 dias, por meio de carta registada com aviso de recepção, pela pessoa ou pessoas a quem o arrendamento se transmitir, acompanhada dos documentos autênticos que comprovem os seus direitos.
Estabelecia-se, assim, contrariamente ao que sucedia na anterior versão do artigo (o texto do DL nº 328/81, de 4 de Dezembro), a obrigatoriedade da comunicação da morte do arrendatário ao senhorio, dentro de determinado prazo. Porém, nenhuma sanção se estabelecia para o não cumprimento desse dever de comunicação (v. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II,
3ª ed., Coimbra 1986, pág.631, anotação 2), não determinando nomeadamente essa falta a caducidade do contrato (esta a posição que a propósito se fixou na jurisprudência : v., por exemplo, Acórdãos da Relação de Coimbra de 10/5/88, na CJ-III, Ano XII, pág.69 e da Relação do Porto de 29/3/90, na CJ-I, Ano XV pág.217; em sentido contrário, defendendo a caducidade do arrendamento, v. Menezes Cordeiro, O Dever de Comunicar a Morte do Arrendatário: o Artigo 1111º, nº 5, do Código Civil, in Tribuna da Justiça, Dez.1989, nº1 pág.29 e segs.; defendendo a simples responsabilidade civil, v. Januário Gomes, Breve Apontamento a Propósito do nº 5 do Artigo 1111º do Código Civil, in Tribuna da Justiça, Dez.1986, nº24, pág.1 e segs.).
2.2. Através da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, concedeu a Assembleia da República autorização ao Governo para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano. Na situação que especificamente nos interessa, facultou-se a possibilidade de uma modificação com o seguinte sentido :
Artigo 2º
n) Modificação do regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional, sem prejuízo da salvaguarda dos interesses considerados legítimos.
Usando esta autorização editou o Governo o RAU (DL nº 321-B/90, de
15 de Outubro), revogando, entre outras disposições, os artigos 1083º a 1120º do Código Civil (artigo 3º nº 1 do decreto de aprovação).
Para as situações anteriormente abrangidas pelo artigo 1111º do Código Civil, passou o RAU, nessa primitiva versão, a prescrever o seguinte :
Artigo 85º
Transmissão por morte
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
----------------------------------------------
Quanto à comunicação dessa morte ao senhorio, a hipótese directamente prevista até aí no nº 5 do artigo 1111º do Código Civil, passou a estabelecer-se :
Artigo 89º Comunicação ao senhorio
1 - O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por escrito, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, a enviar nos 180 dias posteriores à ocorrência.
2 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário.
3 - A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão. (sublinhado nosso)
Consagrou-se, assim, um regime que apresentava como particularidade distintiva do anterior a expressa afirmação daquilo que vinha sendo uniformemente entendido pelos tribunais (a não comunicação ao senhorio não fazia caducar o arrendamento) sendo fonte, apenas, para o faltoso, de uma obrigação de indemnizar pelos danos decorrentes dessa omissão (note-se que a transmissão passou a ter em certas situações, efeitos quanto ao regime de renda : ver artigo
87º do RAU).
2.3. Em Maio de 1993, novas alterações ao regime de arrendamento urbano para fins habitacionais foram autorizados. A Assembleia da República, através da Lei nº 14/93, de 14 de Maio, possibilitou ao Governo legislar sobre a matéria com o seguinte sentido e extensão :
Artigo 2º
---------------------------------------------
a) Permitir a actualização das rendas dos contratos de arrendamento para habitação até ao seu valor em regime de renda condicionada, sempre que o arrendatário, quando residente na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, tiver outra residência ou for proprietário de imóvel nas respectivas áreas metropolitanas ou, se residir no resto do País, na respectiva comarca, que possa satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas ;
b) Possibilitar a denúncia dos contratos de arrendamento para habitação a cuja transmissão seja aplicável a alteração do regime de renda previsto no artigo 87º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, mediante o pagamento de uma indemnização igual a 10 anos de renda, praticada à data da transmissão, sem prejuízo de o arrendatário poder propor um novo valor de renda que, caso não seja aceite para efeitos de continuação do contrato, relevará para cálculo da indemnização referida;
c) Permitir a estipulação de cláusulas de actualização anual de renda nos contratos de arrendamento para habitação que não fiquem sujeitos a um prazo de duração efectiva ou que estejam sujeitos a uma duração efectiva superior a oito anos;
d) Proceder às adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor.
Invocando esta autorização editou o Governo o DL nº 278/93, de 10 de Agosto, introduzindo no RAU as modificações aqui em causa. Dessas alterações importa reter as seguintes :
- introdução de uma nova redacção no artigo 89º, nº 1, exigindo que a comunicação ao senhorio do decesso do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo seja efectuada por 'carta registada com aviso de recepção' ;
- supressão do nº 3 do referido artigo 89º;
- inclusão de um artigo 89º D estabelecendo que o não cumprimento dos prazos fixados, na secção em que o artigo 89º se integra, 'importa a caducidade do direito'.
Trata-se, neste artigo 89º D, de um preceito novo cujo sentido - ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade orgânica da eliminação do nº 3 do artigo 89º - vem sendo entendido como significando que : 'O não cumprimento de prazos estipulados nos artigos 83º a 89º C, da Secção III (da transmissão do direito do arrendatário), do Capítulo II (do arrendamento urbano para habitação), importa a caducidade dos direitos do senhorio e do transmissário '
(Jorge Alberto Aragão Seia, ob. cit., pag.391 e nota 3).
Chegados, assim, ao regime jurídico que à decisão recorrida se deparou, vejamos a questão de inconstitucionalidade orgânica caracterizada nos moldes que atrás expusemos.
3. Em matéria de arrendamento urbano, o sentido da reserva (relativa) de competência da Assembleia da República ('Regime geral de arrendamento rural e urbano' - artigo 168º nº 1 alínea h) da Constituição) é reportado ao regime 'comum ou normal', incluindo-se neste 'seguramente' - como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira - 'o regime da celebração do contrato e da sua cessação, bem como os direitos e deveres das partes' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ªed., Coimbra 1993, págs.670 e 674).
A este propósito refere este Tribunal no seu Acórdão nº 77/88
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º Vol., pág.361):
'(...) a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios',
'directivas' ou 'standards' fundamentais em matéria de arrendamento(é dizer, das
'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de 'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial. Por outras palavras, em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites de autonomia privada no âmbito contratual em causa.' (sublinhado nosso; sobre o sentido da reserva vejam-se ainda as precisões constantes do Acórdão nº 311/93, Diário da República,II, 22.7.1993, que incidiu sob a Lei nº 42/90, ao abrigo da qual foi editado o R.A.U.).
3.1. Fixado o sentido da reserva, não oferece dúvida que nesta se integra o estabelecimento de uma situação em que se associa a determinado comportamento omissivo da pessoa a quem se transmitia o arrendamento a caducidade deste. Da mesma forma, também não oferece dúvida, que a supressão do nº 3 do artigo 89º, pelas consequências que, em função do aparecimento do artigo 89º D, lhe passam a estar associadas, representa a introdução de um regime neste particular novo relativamente ao regime anterior (ao regime do RAU na sua primitiva versão e aos sucessivos regimes anteriores, recuando mesmo à Lei nº 2030, de 22/6/48 - ver artigo 46º desta).
Importa, assim, ver se essa novidade foi autorizada pelo legislador competente para a introduzir.
4. No preâmbulo do DL nº 278/93, a eliminação do nº 3 do artigo 89º do RAU, pretende ser justificada nos seguintes termos :
'Em contratos tão sensíveis como o arrendamento, o exercício dos direitos de cada parte importa muitas vezes um sacrifício para os interesses da outra. Nestes termos, é razoável que as situações não permaneçam indefinidas, estabelecendo-se prazos não muito largos para o exercício desses direitos e prevendo-se a caducidade dos que neles não sejam exercidos naturalmente sem prejuízo da sua renovação quando for o caso.'
Resta saber se, no texto da autorização, essa alegada razoabilidade de a não comunicação da morte do primitivo arrendatário importa, contra o que até aí sucedia, a caducidade do arrendamento, tem qualquer espécie de acolhimento.
Tê-lo-ia, certamente, se o paradigma aferidor da autorização fosse a Lei nº 42/90 e não, como é, a Lei nº 14/93. Na primeira, com efeito, em passagem que acima se transcreveu [artigo 2º alínea m)], era expressamente autorizada a modificação do regime de transmissão por morte da posição do arrendatário habitacional. Nada de semelhante sucede com a Lei nº 14/93, em cujo texto se não vislumbra qualquer referência onde encaixar alterações ao regime de transmissão por morte da posição do arrendatário : as alíneas a), b) e c) dispõem para situações específicas que nada têm que ver com a matéria aqui em causa; a alínea d) ('Proceder às adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor') não pode, assim ser entendida, sob pena de o 'objecto' e 'sentido' da autorização, referidos no nº 2 do artigo 168º da Constituição, perderem qualquer significado e a lei de autorização se assumir como um verdadeiro «cheque em branco» a preencher pelo legislador autorizado.
A supressão do nº 3 do artigo 89º do RAU, não tem, pois, e esta a conclusão a que se chega, qualquer correspondência no objecto e sentido da autorização legislativa consubstanciada na Lei nº 14/92. É, enfim, tal supressão, organicamente inconstitucional.
4. Esta conclusão, pelo seu alcance, dispensa-nos da apreciação da segunda questão equacionada pelo Ministério Público nas suas alegações : a de saber se a projecção da alteração do artigo 89º pelo DL nº
278/93 para o passado (relativamente 'a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor'), afecta a estabilidade de situações jurídicas consolidadas, importando inconstitucionalidade material, por violação do princípio da confiança, decorrente do princípio do Estado de direito democrático.
III
DECISÃO
5. Pelo exposto, decide-se :
a) julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º nº 1, alínea h) da Constituição a norma do artigo 1º do DL nº
278/93, de 10 de Agosto, na parte em que elimina o nº 3 do artigo 89º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro;
b) em função disso, nega provimento ao recurso.
Lisboa, 9 de Outubro de 1996 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida