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Proc. nº 95/94
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A. instaurou, no Tribunal Cível de Lisboa, acção, na forma de processo ordinário, contra o Estado e a B., SA, pedindo que os réus fossem condenados a reconhecerem que a autora é titular de 18 acções da B., SA, sociedade civil com a forma de sociedade anónima, sede em Lisboa e o capital social de 41.600.000$00.
A autora sustentou, desde logo, que o Decreto-Lei nº 628/75, de 13 de Novembro, que nacionalizou a referida sociedade, seria inconstitucional, por violar o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. A invocada desigualdade resultaria de aquele diploma legal não permitir à autora - diferentemente do que sucedeu quanto a outras pessoas que detinham participações noutras sociedades que se dedicavam à exploração agrícola de terras expropriadas, no âmbito da reforma agrária - reaver uma parte das terras.
2. Por despacho de 18 de Setembro de 1991, o juiz do 14º Juízo Cível da Comarca de Lisboa considerou que se verificava a excepção dilatória da ilegitimidade das partes [artigo 494º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil], por se estar na presença de uma situação de litisconsórcio necessário (artigo 28º, nº 2, do Código de Processo Civil). Consequentemente, absolveu os réus da instância.
3. A autora interpôs recurso de agravo deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de 1 de Outubro de 1992, o Tribunal da Relação concedeu provimento ao recurso e revogou o despacho impugnado. Todavia, julgou improcedente a acção e absolveu os réus do pedido, por não considerar inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei nº 628/75.
4. Deste acórdão interpôs a autora recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75 (reafirmando a tese da inconstitucionalidade material, por violação do artigo 13º da Constituição).
Por acórdão de 1 de Fevereiro de 1994, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão recorrido, por não considerar inconstitucional o artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75 (ou qualquer outro artigo do mesmo diploma legal).
5. No seu acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça começou por enunciar os factos dados como assentes pelo Tribunal da Relação de Lisboa, frisando que tais factos não poderiam ser alterados no âmbito do recurso de revista, por força do disposto nos artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil:
a) A autora era titular, em 13 de Novembro de 1975, de 18 acções nominativas da B., SARL;
b) Tal sociedade dedicava-se à exploração agrícola, florestal e pecuária em prédios de que era proprietária;
c) Os estatutos da sociedade identificavam ainda como seu objecto o exercício de quaisquer actividades afins ou colaterais;
d) A sociedade era proprietária de prédios com vários milhares de hectares;
e) A sociedade foi nacionalizada em 13 de Novembro de
1975, passando a empresa pública, com a designação de B., EP;
f) Os respectivos accionistas (incluindo a autora) receberam indemnizações pelas acções;
g) A sociedade e os seus accionistas não beneficiaram do direito de reaverem as terras que foram da sociedade;
h) A B., EP, foi transformada em sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos em 31 de Maio de 1989, com a designação de B., SA, e sede em ---------.
6. De seguida, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou a argumentação jurídica expendida pela recorrente, tendo concluído que o artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75 não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, por a diferenciação de tratamento que contempla possuir fundamento racional.
Tal fundamento resultaria da natureza da B., que constituía uma sociedade anónima, cujo património se compunha não só de prédios rústicos mas também de prédios urbanos e cuja actividade se não restringia à agricultura. A tudo isto, acrescentou o Supremo Tribunal de Justiça as considerações de que aos sócios de sociedades anónimas pertencem acções e não partes dos respectivos patrimónios e de que, estando o capital social, em regra, disperso por um elevado número de sócios, o reconhecimento do direito a uma reserva inviabilizaria a utilidade da nacionalização.
7. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vem o presente recurso, interposto, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por A..
No requerimento de interposição do recurso, apresentado em 10 de Fevereiro de 1994, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei nº 628/75, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Acrescentou que suscitara a questão de constitucionalidade na petição inicial, na réplica e nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por despacho de 12 de Dezembro de 1994 da relatora do presente processo, a recorrente foi convidada, ao abrigo do artigo 75º-A, nºs 1 e 5, da Lei do Tribunal Constitucional, a especificar a norma - ou normas - cuja constitucionalidade pretende ver apreciada. Em resposta, a recorrente veio dizer, em 28 de Dezembro de 1994, que as únicas normas cuja constitucionalidade arguiu são as constantes do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75.
8. Em 27 de Janeiro de 1995, a recorrente apresentou alegações. Sustentou então que o Tribunal Constitucional não está limitado à matéria de facto fixada pelas instâncias, louvando-se na remissão para o regime do recurso de apelação feita pelo artigo 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. E apresentou documentos tendentes a provar a natureza puramente agrícola da B. e o seu número de accionistas, ao tempo da nacionalização (96).
Quanto à questão de constitucionalidade, reiterou o entendimento de que a norma em crise viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
9. Nas suas contra-alegações, apresentadas em 6 de Março de
1995, a recorrida B., SA, formulou as seguintes conclusões:
'1ª. Os documentos juntos pela recorrente não deverão ser considerados, e, sim, desentranhados dos autos, pela sua junção violar o artigo
64º-A da Lei do Tribunal Constitucional e o artigo 706º do Código de Processo Civil;
2ª. Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido e declarando-se constitucional a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75, de 13 de Novembro ...'
10. Por seu turno, o Ministério Público apresentou igualmente contra-alegações, em 14 de Março de 1995, tendo concluído no mesmo sentido (mas sem pedir a 'declaração de constitucionalidade' da norma, que, evidentemente, não está em causa, cabendo apenas a este Tribunal julgar tal norma inconstitucional ou não inconstitucional):
'1ª. Não competindo naturalmente ao Tribunal Constitucional ampliar a matéria de facto considerada provada pelas instâncias, deverá determinar-se o desentranhamento dos documentos apresentados pelo recorrente, com vista a facultar a este Tribunal a ampliação dos factos que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, considerou assentes, nos termos dos artigos
543º e 706º, nº 3, do Código de Processo Civil;
2ª. A nacionalização, operada pelo Decreto-Lei nº 628/75, de
13 de Novembro, da sociedade B., SARL, tem plena legitimação constitucional face ao preceituado nos artigos 82º, nº 1, e 83º, nº 1, da primeira versão da Constituição da República Portuguesa, gozando o legislador de ampla discricionariedade na definição dos tipos de apropriação colectiva dos meios de produção e do âmbito das nacionalizações que, nos termos da lei, decreta.'
11. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
A A apresentação de documentos pela recorrente e os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional
12. Não cabe ao Tribunal Constitucional redefinir a matéria de facto apurada por qualquer outro tribunal, mas apenas apreciar a questão de constitucionalidade que lhe é submetida (artigo 280º, nº 6, da Constituição e
71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional). A aplicação subsidiária das normas respeitantes ao recurso de apelação, constantes do Código de Processo Civil, de modo nenhum significa que o Tribunal Constitucional possa ampliar a matéria de facto que o Supremo Tribunal de Justiça considerou assente, nos termos dos artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil. Os poderes cognitivos atribuídos ao Tribunal Constitucional pelo artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, não abarcam tal faculdade.
13. Desta sorte, não cabe ao Tribunal Constitucional apurar agora, abstraindo da matéria de facto considerada provada pelo tribunal a quo, se, ao tempo da nacionalização, a B. possuía natureza puramente agrícola ou qual era o seu número de accionistas.
Por conseguinte, hão-de ter-se como irrelevantes os documentos apresentados pela recorrente no Tribunal Constitucional. A terem importância para o julgamento do pedido, tais documentos haveriam de ser apresentados nos tribunais competentes para julgar esse pedido - isto é, os tribunais judiciais.
B A alegada inconstitucionalidade material do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75, por violação do princípio da igualdade
14. A recorrente sustentou que as normas contidas nos nºs 1 e
2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75 contrariam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Alegou, para chegar a tal conclusão, uma essencial identidade entre a B. e as demais empresas agrícolas em actividade
à data da nacionalização. E essa identidade não teria sido observada pelo legislador, que não contemplou os accionistas com a garantia de propriedade de uma determinada área de terreno.
Esta desigualdade teria resultado de se ter estabelecido no anexo 3 do Decreto-Lei nº 203-C/75, de 15 de Abril, que, em caso de nacionalização ou expropriação de prédios rústicos, os atingidos beneficiariam, precisamente, da garantia de propriedade de uma certa área. Tal garantia viria a ser observada pelo Decreto-Lei nº 407-A/75, de 30 de Julho (no respeitante a nacionalizações), e pela Lei nº 77/77, de 29 de Setembro (quanto a expropriações).
15. As normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei nº
628/75 foram editadas antes da entrada em vigor da Constituição de 1976. Isso não obsta, todavia, a que a sua constitucionalidade (material) seja aferida ante o disposto no artigo 13º da Constituição.
Na verdade, independentemente de a Constituição de 1933 contemplar o princípio da igualdade (artigo 5º, § 2º), e de esse princípio nunca ter deixado de vigorar na ordem jurídica portuguesa, por força do disposto no artigo 1º da Lei Constitucional nº 3/74, de 14 de Maio, o que está em causa é uma situação de inconstitucionalidade superveniente (cf. Jorge Miranda, ob.cit., pp. 424-5, e Gomes Canotilho, ob.cit., pp. 1109-10).
16. O princípio da igualdade não obsta a que o legislador trate diferentemente as situações jurídicas. No plano formal, a igualdade impõe um princípio de acção segundo o qual as situações da mesma categoria essencial devem ser tratadas da mesma maneira. No plano material, a igualdade traduz-se na especificação das características constitutivas de cada categoria essencial (cf. Perelman, 'Égalité et valeurs', L'égalité, 1971, p. 319 e ss.).
A igualdade só proíbe, pois, diferenciações destituídas de fundamentação racional, à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais
[cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp.
383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, Jorge Miranda, ob.cit., Tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, ob.cit., pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.cit., p. 125 e ss.].
17. No caso sub judicio, é indispensável apurar se a diferenciação de tratamento decretada para a B. pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
628/75 está desprovida de fundamento racional - isto é, se deve ter-se como arbitrária.
Tal desigualdade de tratamento pode ser encarada em duas perspectivas:
a) Os accionistas da B. foram discriminados, por não beneficiarem do direito de reserva relativamente aos prédios rústicos de que a B. era proprietária;
b) A B. foi, ela própria, discriminada por ter sido a única sociedade anónima a ser nacionalizada.
18. No que respeita à primeira questão, é evidente que não há violação do princípio da igualdade. Na verdade, não são equiparáveis as situações jurídicas dos accionistas de uma sociedade anónima nacionalizada, enquanto tais, e dos titulares de direitos reais sobre prédios nacionalizados ou expropriados. Os accionistas da sociedade anónima, independentemente do seu número, nunca foram titulares de direitos reais sobre os prédios rústicos integrados no património social.
Assim, não se pode afirmar, invocando o princípio da igualdade, que aos accionistas da B. deveria ser reconhecido o direito de reserva, tal como sucedeu quanto aos titulares de direitos reais sobre prédios rústicos nacionalizados ou expropriados: estes foram reinvestidos em direitos que anteriormente já detinham; aqueles eram, exclusivamente, titulares de acções.
19. A segunda questão respeita à própria legitimidade da nacionalização da sociedade anónima. O que se inquire é se não haverá violação do princípio da igualdade, uma vez que outras sociedades agrícolas apenas viram nacionalizados ou expropriados os respectivos prédios rústicos.
Quanto a este ponto, importa averiguar se a B. apresentava peculiaridades que justificassem um tratamento diferenciado. Ora, as circunstâncias de a B. possuir um património composto por prédios rústicos e urbanos, se não dedicar apenas à agricultura (cf. o artigo 3º dos estatutos publicados no Diário do Governo, II Série, de 16 de Junho de 1971) e desempenhar uma função decisiva no desenvolvimento regional (como se referiu no preâmbulo do Decreto-Lei nº 123/78, de 15 de Novembro) ilustram as peculiaridades que justificam um tratamento diferenciado.
Desta sorte, a nacionalização da B., decretada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
628/75, não viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição. Tal nacionalização é justificável racionalmente e correspondeu a uma medida que viria a ser legitimada no âmbito da Constituição de 1976, tendo o legislador constituinte estabelecido mesmo a sua irreversibilidade (artigos 82º, nº 1, e 83º, nº 1, da versão originária da Constituição de 1976).
III Decisão
20. Ante o exposto, decide-se não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 1º do Decreto-Lei nº 628/75, de 13 de Novembro, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida na parte respeitante
à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Novembro de 1996
Maria Fernanda Palma
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa