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Processo nº. 521/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A ..., por decisão de 24 de Julho de 1995, do PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE PAREDES, foi condenado, pela prática da contraordenação (prevista e punível pela alínea C.a) do artigo 17º da Postura Sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública, aprovada em 15 de Janeiro de 1988, com a redacção introduzida em 15 de Outubro de 1995), no pagamento da coima de 2.000$00, acrescidos de
14.400$00 (correspondentes à tarifa não paga, devida pela recolha e depósito de lixo) e de 540$00 de custas do processo - tudo no montante de 16.940$00.
Não tendo a coima sido paga voluntariamente, o MINISTÉRIO PÚBLICO instaurou execução para cobrança da mesma contra o referido A ......
O Juiz do 1º. Juízo Criminal da comarca de Paredes, por despacho de 10 de Maio de 1995, indeferiu liminarmente o requerimento de execução, com o argumento de que, padecendo 'a norma constante do nº.2 do artigo 10º. da Postura Sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública, aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes', 'de inconstitucionalidade formal e orgânica e sendo certo que foi com base nessa norma que o Presidente da Câmara Municipal de Paredes aplicou a coima cuja execução o Ministério Público promove nos presentes autos, é manifesta a falta de fundamento legal para a aplicação e para a execução da referida coima'.
2. É deste despacho de indeferimento liminar (de 10 de Maio de 1995) que vem o presente recurso, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, ao abrigo da alínea a) do nº.1 do artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da mencionada norma do artigo 10º., nº.2, da Postura Sobre Sistema de Lixo e Higiene Pública, aprovada pela Assembleia Municipal de Paredes, em 15 de Outubro de 1995.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, tendo formulado as seguintes conclusões:
1º. Não é formalmente inconstitucional, por preterição do preceituado no nº.7 do artigo 115º. da Constituição da República Portuguesa, o regulamento local que cita expressamente, embora de modo eventualmente insuficiente, a respectiva lei habilitante, no instrumento destinado a possibilitar a sua publicação junto dos munícipes.
2º. A tarifa de saneamento, estabelecida como contraprestação de um serviço especificamente prestado pela autarquia no âmbito da recolha e tratamento de lixos, independentemente da dimensão e grau com que tal serviço foi efectivamente solicitado e prestado, deve ser qualificado como taxa, não se situando consequentemente no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, decorrente do estatuído no artigo 168º, nº.1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deve proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma atrás apontada é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A Postura sobre o Sistema de Lixos e Higiene Pública de Paredes:
A Assembleia Municipal de Paredes, sob proposta da respectiva Câmara Municipal, na sua reunião de 15 de Janeiro de 1988 (a segunda da sessão ordinária de 30 de Dezembro de 1987), aprovou uma Postura sobre o Sistema de Lixos e Higiene Pública, de que veio alterar alguns artigos, na reunião de 13 de Outubro de 1995 (a segunda da sessão ordinária de 15 de Setembro de 1995).
As alterações introduzidas, em 13 de Outubro de 1995, na referida Portaria, foram-no ao abrigo do artigo 39º., nº.2, alínea a), do Decreto-Lei nº.100/84, de 29 de Março (Atribuições das Autarquias Locais e Competências dos Respectivos Órgãos) - redacção da Lei nº.18/91, de 12 de Junho -, que, justamente, define, como competência da assembleia municipal, aprovar posturas e regulamentos, sob proposta da câmara (cf. o artigo 242º. da Constituição, que preceitua que as autarquias locais dispõem de poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar).
Tal consta, na verdade, do Edital (de 23 de Outubro de 1995) que, em cumprimento do disposto no artigo 84º.do citado Decreto-Lei nº.100/84, lhes deu publicidade, com a menção de que elas só entrariam em vigor em 15 de Novembro de
1995.
A fixação da data de 15 de Novembro de 1995 para a entrada em vigor das alterações explica-se pela exigência, feita pelo artigo 21º., nº.3, da Lei nº.1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), de que as posturas e outros regulamentos autárquicos de natureza genérica e execução permanente não entrem em vigor antes de decorridos 15 dias sobre a sua publicação nos termos legais.
Tal Postura diz ser competência exclusiva da respectiva Câmara Municipal ordenar, em todo o concelho, o depósito, recolha e destino final dos lixos, sendo que, da recolha e do destino final, se encarregarão os respectivos Serviços de Limpeza, sem prejuízo de, tal se mostrando necessário, poder concessionar-se esse serviço a outras entidades (cf. artigo 1º.).
As câmaras municipais têm, na verdade, atribuições de salubridade pública
(cf. artigo 44º., nº.5, do Código Administrativo), cumprindo-lhes deliberar sobre a remoção, despejo e tratamento de lixos, detritos e imundícies domésticas
(cf. artigo 49º., nº.3, do mesmo Código).
O artigo 2º. da Postura classifica os lixos em quatro categorias:
(a). lixos domésticos (produtos combustíveis ou deterioráveis de qualquer natureza, sempre que oriundos de alojamentos e habitações);
(b). lixos comerciais (os oriundos de toda a actividade ou funcionamento de estabelecimentos comerciais, nomeadamente cafés e escritórios);
(c). lixos industriais (os oriundos de toda a actividade industrial);
(d). lixos especiais (os não abrangidos nas alíneas anteriores, nomeadamente detritos tóxicos, detritos considerados insusceptíveis de recolha normal, detritos perigosos para a saúde em geral ou como tal considerados).
O artigo 3º. da Postura dispõe sobre o modo de proceder à 'deposição dos detritos para a recolha'. E assim:
(a). os lixos domésticos, nas zonas urbanas que beneficiem de recolha diária e sistematizada de lixo, devem ser colocados em 'baldes normalizados com capacidade até 50 litros ou sacos de plástico resistente'; 'nas restantes zonas do concelho, em que existam contentores normalizados de 800 litros fornecidos pela Câmara', devem tais lixos ser aí depositados;
(b). os lixos comerciais, nos lugares ou zonas urbanas abrangidos pela recolha diária e sistematizada de lixo, devem ser 'depositados em baldes normalizados de 50 litros'; nos restantes lugares ou zonas do concelho, devem esses lixos ser depositados em contentores camarários de 800 litros (se existirem), salvo tratando-se de lixos provenientes de restaurantes, casas de pasto, cafés, bares, snack-bares, confeitarias e similares situados no trajecto das viaturas dos Serviços de Limpeza, cujos interessados solicitem a recolha directa nos respectivos estabelecimentos (neste último caso, os interessados munir-se-ão de baldes normalizados de 50 litros, que colocarão no exterior dos estabelecimentos, no máximo uma hora antes da hora normal de passagem das viaturas, e pagarão uma taxa pelo respectivo serviço);
(c). os lixos industriais e os lixos especiais devem ser depositados em contentores idênticos aos contentores camarários de 800 litros, adquiridos pelos interessados, que neles mandarão pintar, em diagonal, uma barra preta.
A recolha de lixos, seja qual for a sua natureza, está sujeita ao pagamento de tarifas, de montante previsto no artigo 18º.- prescreve o artigo
10º. da Postura (redacção introduzida em 13 de Outubro de 1995).
Tais tarifas (com excepção das relativas aos lixos domésticos, cujo pagamento é mensal: cf. artigo 18º.-B, na redacção de 13 de Outubro de 1995) são pagas antecipadamente, semestralmente ou ao ano, conforme escolha dos interessados (cf. artigo 18º-A, na redacção por último indicada).
Às câmaras municipais compete, na verdade, fixar tarifas pela prestação de serviços ao público, por parte dos serviços municipais e municipalizados, no
âmbito da recolha, depósito e tratamento de lixos (cf. artigo 51º., nº.1, alínea h), do citado Decreto-Lei nº.100/84; cf. também o artigo 12º, nº.1, alínea b), da citada Lei nº.1/87), as quais constituem, de resto, receitas municipais (cf. artigo 4º., nº.1, alínea h), da mesma Lei nº.1/87).
O não pagamento das tarifas previstas no artigo 18º , nos prazos definidos nos artigos 18º.-A e 18º.-B, constitui contraordenação, punível com coima de
2.000$00 a 50.000$00, acrescida do valor das tarifas que deixaram de pagar-se - prescreve o artigo 17º., alínea C), c), na redacção de 13 de Outubro de 1995.
De harmonia com o que prescreve a Lei das Finanças Locais (citada Lei nº.1/87), a violação de posturas ou de outros regulamentos autárquicos de natureza genérica e execução permanente constitui contraordenação sancionada com coima, que não pode ser superior a 10 vezes o salário mínimo nacional dos trabalhadores da indústria, nem exceder o montante das que forem impostas por autarquia de grau superior ou pelo Estado para contraordenação do mesmo tipo
(cf. artigo 21º., nºs.1 e 2).
Feito este pequeno excurso pela legislação, há que afrontar as questões de constitucionalidade que determinaram o juiz recorrido a recusar aplicação à norma constante do nº. 2 do artigo 10º. da Postura a que se vem fazendo referência.
5. A questão da inconstitucionalidade formal:
Segundo a decisão recorrida, a norma aqui sub iudicio padece de inconstitucionalidade formal, por violação do artigo 115º., nº.7, da Constituição, já que a Postura em que se insere não indica, de forma expressa, a norma legal que habilita a assembleia municipal a editá-la.
Será assim ?
5. 1. O artigo 115º., nº.7, da Constituição reza do modo seguinte: Artigo 115º. (Actos normativos)
7. Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Este artigo 115º., nº.7, impõe, pois, que os regulamentos que contenham normas externas (provenham eles do Governo, dos órgãos das regiões autónomas, dos das autarquias locais ou de órgãos da Administração a quem a lei confira competência regulamentar) indiquem, expressamente, a lei que visam regulamentar ou que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Pretende a Constituição, ao impor este dever de citação da lei habilitante, garantir que a subordinação do regulamento à lei (e, assim, a precedência da lei em relação a toda a actividade administrativa) seja explícita e ostensiva.
Nos dizeres de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. edição, Coimbra, 1993, página 516), trata-se de garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático.
Os regulamentos que não observem esse dever de citação da lei habilitante são constitucionalmente ilegítimos, como este Tribunal tem decidido (cf, entre outros, o acórdão nº.375/94, publicado no Diário da República, II série, de 10 de Novembro de 1994, e a jurisprudência aí citada).
Neste aresto, reproduzindo o que se havia escrito no acórdão nº.268/88
(publicado no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1988) - depois de se dizer que, 'abrangidos pela regra bidireccional (do nº.7 do artigo 115º.), estão todos os regulamentos, nomeadamente os que provenham do Governo' - acrescentou-se: Todos esses regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e, por força do nº.7 do artigo 115º. da Constituição, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.
5. 2. Pois bem: o artigo 10º, nº2, da Postura, aqui sub iudicio, prescreve como segue: Artigo 10º.
2. O pagamento das tarifas previstas no artigo 18º. desta Postura é obrigatório a todos os munícipes, sejam pessoas singulares ou colectivas, e independentemente da quantidade de lixo produzido e/ou depositado.
A norma em causa impõe, assim, a todos os munícipes de Paredes o pagamento de uma tarifa pelo serviço, que os Serviços de Limpeza da Câmara lhes prestam, consistente em recolher o lixo e em dar-lhe destino.
Trata-se, por conseguinte, de uma norma regulamentar externa, pois que é uma norma jurídica que projecta os seus efeitos para o exterior, por forma a atingir todos os munícipes, que ficam vinculados pela disciplina que nela se contém; provém de um órgão da Administração (recte, da Administração autárquica); e foi editada no exercício da função administrativa (Sobre o conceito de regulamento, cf. AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, 'Teoria dos Regulamentos', Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, página 5).
A Postura (de que, no caso, só interessa o artigo 10º., nº.2) citou, como sua lei habilitante, o artigo 39º, nº.2, alínea a), do Decreto-Lei nº.100/84, de
29 de Março (na redacção da Lei nº.18/91, de 12 de Junho). E essa citação surge apenas, como já se disse, no Edital (de 23 de Outubro de 1995) destinado a dar-lhe publicidade.
5. 3. A menção da lei habilitante, feita nestes termos, cumprirá, então, a exigência do nº.7 do artigo 115º. da Constituição ?
Entende o Tribunal que sim.
É certo que, no Edital, se cita apenas a norma legal que define a competência da assembleia municipal para aprovar posturas e regulamentos, sob proposta da câmara (o mencionado artigo 39º., nº.2, alínea a), do Decreto-Lei nº.100/84), e não também a que inclui na competência dos municípios deliberar sobre 'remoção, despejo e tratamento de lixos, detritos e imundícies domésticas'
(artigo 49º., nº.3, do Código Administrativo), nem tão-pouco a que confere à câmara municipal competência para, ela própria, 'fixar tarifas pela prestação de serviços ao público pelos serviços municipais (...), no âmbito da (...) recolha, depósito e tratamento de lixos' (artigo 51º., nº.1, alínea h), do Decreto-Lei nº.100/84).
Simplesmente, para cumprir a exigência do artigo 115º, nº 7, da Constituição, o que importa é que os destinatários dos regulamentos fiquem a saber qual a norma ou normas legais que habilitam o seu autor a editá-los.
Ora, tendo em conta que o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, contém a definição da competência subjectiva e objectiva para a emissão de um regulamento deste tipo, a sua invocação é bastante para que os cidadãos fiquem a saber qual a habilitação legal do regulamento aqui em causa.
Também não obsta à legitimidade constitucional da norma aqui sub iudicio o facto de a citação da lei habilitante se fazer apenas no Edital com que se lhe deu publicidade.
De facto, a Constituição, ao impor à Administração o dever de citar, de forma expressa, nos próprios regulamentos, a lei habilitante, o que pretende é que os destinatários das normas regulamentares saibam em que norma legal se funda o poder com base nas quais elas são editadas, já que isso constitui garantia de segurança e de transparência.
Ora, sendo essa a ratio da exigência constitucional, logo se vê que, para que aquele desiderato seja atingido, basta que a indicação da lei habilitante se faça no acto que dá publicidade ao regulamento (no caso, no edital que o deu a conhecer aos munícipes).
A publicidade dos actos com conteúdo genérico (provenham eles dos órgãos de soberania, das regiões autónomas ou do poder local) destina-se, justamente, a dá-los a conhecer aos seus destinatários, pois que um tal conhecimento é essencial, desde logo, para que as suas prescrições possam ser conhecidas. Por isso ela é condição de eficácia desses actos (cf. artigo 115º., nº.2, da Constituição, que preceitua que 'a falta de publicidade (...) de qualquer acto de conteúdo genérico (...) do poder local implica a sua ineficácia jurídica').
5. 4. Concluindo, pois, este ponto: ao publicar-se a Postura a que pertence o artigo 10º., nº.2, sub iudicio, com menção da norma legal ao abrigo da qual ela foi editada (recte, da norma que atribui competência regulamentar às assembleias municipais), ficou, pois, satisfeita a razão da exigência constitucional, constante do nº.7 do artigo 115º. - exigência que se traduz no dever de os regulamentos fazerem indicação expressa da respectiva lei habilitante.
A norma constante do mencionado artigo 10º., nº.2, não viola, assim, o artigo 115º., nº.7, da Constituição.
6. A questão da inconstitucionalidade orgânica:
Sustenta o juiz recorrido que, 'ao definir a posição de devedor em função da qualidade de munícipe, independentemente da existência de uma contraprestação, o nº.2 do artigo 10º. da postura em causa consagra um imposto local, invadindo a reserva de competência da Assembleia da República sobre a matéria', desse modo violando o artigo 168º., nº.1, alínea i), da Constituição.
Terá razão ?
6. 1. O artigo 168º., nº1., alínea i), da Constituição prescreve: Artigo 168º.(Reserva relativa de competência legislativa)
1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: i). Criação de impostos e sistema fiscal
Compete, pois, à Assembleia da República - que pode delegar tal competência no Governo - criar impostos (cf., no entanto, o artigo 229º., nº.1, alínea i), da Constituição, segundo o qual as regiões autónomas gozam de poder tributário próprio nos termos da lei).
Nesta competência de criação de impostos, inclui-se, não apenas a criação de impostos propriamente dita, como também a determinação da incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes (cf. o artigo 106º., nº.2, da Constituição).
Se, pois, a tarifa, que os munícipes de Paredes estão obrigados a pagar pelo serviço de recolha, tratamento e destino do lixo, de que se encarregam os Serviços de Limpeza da Câmara, tiver a natureza de imposto ou for uma figura tributária que, embora conceitualmente diferenciada do imposto, deva ficar sujeita ao regime constitucional deste (cf., sobre uma figura deste tipo, o acórdão nº.236/94, publicado do Diário da República, I série-A, de 7 de Maio de
1994), o mencionado artigo 10º., nº.2, da Postura é inconstitucional, já que apenas a Assembleia da República (ou o Governo por ela autorizado) a podia criar. Já não assim, se se estiver em presença de uma taxa, pois que estas podem ser criadas, não apenas pelo Governo, como pelas próprias autarquias locais.
Dispõe, na verdade, o artigo 240º., nº.3, da Constituição que 'as receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente (...) as cobradas pela utilização dos seus serviços' - o que, nos dizeres de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (ob. cit., página 891), inclui o 'produto das taxas de utilização e de tarifas e preços de serviços'.
Este Tribunal já teve, de resto, ocasião de considerar a criação de taxas como uma 'manifestação típica da autonomia local' (cf. acórdão nº.76/88, publicado no Diário da República, I série, de 21 de Abril de 1988). Escreveu-se nesse aresto, entre o mais, o seguinte:
(...) a CRP não proíbe que as autarquias criem, elas mesmas, sob a forma de regulamento local, as taxas devidas pela utilização dos seus serviços, taxas que, segundo o nº.3, in fine, do artigo 240º., fazem parte do grupo de receitas obrigatórias dessas pessoas colectivas públicas territoriais.
Essa foi também a interpretação que a Assembleia da República fez do texto constitucional.
Na verdade, no uso da competência de legislar sobre 'o regime das finanças locais' (cf. artigo 168º., nº.1, alínea s), da Constituição), aquele órgão de soberania aprovou a já citada Lei nº.1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), de cujo artigo 4º., nº.1, alínea h), consta - como já se viu - que constituem receitas dos municípios 'o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços pelo município' (cf. também o já citado artigo 51º., nº.1, alínea h), do Decreto-Lei nº.100/84, de 29 de Março, na redacção da Lei nº.18/91, de 12 de Junho).
6. 2. Interessa, então, averiguar se a tarifa prevista na norma sub iudicio é um imposto (ou uma figura tributária que como tal deva ser tratada) ou se, ao invés, é uma taxa.
Este Tribunal, para distinguir o imposto da taxa, tem sempre insistido no carácter unilateral daquele e na natureza bilateral ou sinalagmática desta (cf, além do citado acórdão nº.76/88, o acórdão nº.348/86, publicado no Diário da República, I série, de 9 de Janeiro de 1987).
Segundo JOSÉ JOAQUIM TEIXEIRA RIBEIRO (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, páginas 262 e 267), o imposto é uma 'prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos'. A taxa - diz o mesmo autor ('Noção Jurídica de Taxa', in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º., páginas 289 e segts.) - é 'a quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semipúblicos' (ou seja, de bens que 'satisfazem, além de necessidades colectivas, necessidades individuais, isto é, necessidades de satisfação activa, necessidades cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor') 'ou como o preço autoritariamente fixado de tal utilização'. 'Precisamente porque os bens semipúblicos satisfazem necessidades individuais - acentua TEIXEIRA RIBEIRO
- o Estado já pode conhecer quem é que particularmente pretende utilizá-los, e pode, por conseguinte, tornar essa utilização dependente de, ou relacioná-la com, o pagamento de certa quantia. Se o fizer, tal quantia ou é paga voluntariamente, e temos uma receita patrimonial, ou o é coactivamente, e temos uma taxa'. E o mesmo autor sublinha que 'o Estado pode fornecer os bens semipúblicos gratuitamente'; 'pode fornecê-los mediante o pagamento de receitas patrimoniais, de preços compatíveis com a negociação'; e 'pode fornecê-los mediante o pagamento de taxas, de quantias incompatíveis com a negociação'. 'As taxas são sempre receitas coactivas, pois não é negocialmente assumida a obrigação de as pagar; mas as utilizações dos bens por que se pagam as taxas, essas podem ser voluntárias ou obrigatórias. E as utilizações obrigatórias, por seu turno, ainda podem ser ou não solicitadas'. E mais: 'normalmente sucede às taxas serem inferiores, como as propinas, ao custo dos bens. Só normalmente, pois há taxas iguais ao custo e, até, superiores, mas que nem por isso se transmudam em receitas patrimoniais, visto continuarem coactivas, nem constituem impostos na parte excedente ao custo, visto manterem o seu carácter bilateral'
(cf. Revista citada).
Referindo-se especificamente às tarifas, ALBERTO XAVIER (Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, página 59) diz que 'a prestação de serviços públicos pode efectuar-se em contrapartida de preços ou taxas. Num ou noutro caso as normas regulamentares que fixam a referida contraprestação e regem a sua aplicação denominam-se tarifas - expressão que muitas vezes se utiliza para designar os próprios preços ou taxas que são objecto do aludido regulamento'. E acentua que 'ao conceito de sinalagma não importa a equivalência económica, mas a equivalência jurídica', por isso que, 'do ponto de vista económico, só casualmente se verificará uma equivalência precisa entre prestação e contraprestação, entre o quantitativo da taxa e o custo da actividade pública ou benefício auferido pelo particular'.
Nas palavras de JOSÉ CASALTA NABAIS (Contratos Fiscais, Coimbra, 1994, página 236/7), os impostos são 'prestações pecuniárias (ou patrimoniais), coactivas, unilaterais e definitivas, sem carácter de sanção, exigidas a detentores de capacidade contributiva por entes que exerçam funções públicas, com vista à realização destas'. Nas taxas - diz o mesmo autor -, 'à prestação do particular corresponde uma contraprestação específica, uma actividade do Estado ou de outros entes públicos especialmente dirigida ao respectivo obrigado, actividade esta que se há-de concretizar na prestação de um serviço público, no acesso à utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares'. E o mesmo autor adverte que os tributos cobrados em hipóteses deste último tipo, designados correntemente por licenças,
'apenas serão taxas quando o limite (ou o obstáculo) jurídico a remover constitua um obstáculo real levantado por razões de interesse público geral, e já não quando um tal obstáculo é (artificialmente) levantado para, ao removê-lo, a Administração cobrar uma receita, pois, nesta hipótese (referida pelos autores com a designação de licença fiscal), estamos perante verdadeiros impostos, já que se não vislumbra aí qualquer prestação real, constituindo o levantamento e a posterior remoção do obstáculo em causa uma verdadeira actividade (e os serviços correspondentes um verdadeiro serviço) de lançamento e cobrança do respectivo imposto' (Sobre estes conceitos, cf. ainda JOSÉ MANUEL M. CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, Coimbra, 1970, páginas 10 e 11; e JOSÉ CASALTA NABAIS,
'Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal', separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1993, páginas 387 e segts.).
Pois bem: recorda-se que, na área do concelho de Paredes, a recolha e destino definitivo do lixo estão a cargo dos Serviços de Limpeza da respectiva Câmara Municipal (cf. artigo 1º., nº.2, da Postura) e que o pagamento das tarifas devidas por essa recolha e destino é obrigatório para todos os munícipes, tanto pessoas singulares, como colectivas (cf. artigo 10º, nº.2, aqui sub iudicio). E acrescenta-se que o montante dessas tarifas, quando estiverem em causa indústrias, hospitais, centros de saúde ou supermercados, é determinado em função da área de cada estabelecimento (cf. artigo 18º., alínea D), na redacção de 13 de Outubro de 1995).
A tarifa é, pois, uma quantia coactivamente paga pela utilização de um serviço - o serviço de recolha e destino do lixo -, que é um bem semipúblico, que a Câmara Municipal de Paredes, através do respectivo Serviço de Limpeza, põe
à disposição dos munícipes que o pretendam utilizar.
Trata-se, assim, de uma taxa.
Tal tarifa não perde a natureza de taxa pelo facto de ser paga por todos os munícipes (pessoas singulares ou colectivas), sendo o seu pagamento
'independente da quantidade de lixo produzido e/ou depositado'.
É que - como se sublinhou no citado acórdão nº.76/88, a propósito de uma tarifa cobrada pela Câmara Municipal de Lisboa pela prestação, por parte do município, do serviço 'de recolha, depósito e tratamento de lixos' (designada tarifa de saneamento) -, de um lado, 'pela própria natureza do serviço em questão, é verdadeiramente impossível uma determinação rigorosa do universo dos utentes'; de outro, 'o esquema de identificação previsto (na) deliberação não se configura como ilógico ou irrealista', pois 'o índice de identificação escolhido para esse efeito envolve uma presunção muito forte de que os sujeitos tributados realmente utilizam o serviço de recolha, depósito e tratamento de lixos', já que todos os munícipes são produtores de lixo.
A inconstitucionalidade do artigo 10º., nº2, da Postura também não poderia fazer-se decorrer da circunstância de o montante da tarifa ser, acaso, superior ao custo do serviço prestado pela Câmara.
É que - e desde logo -, o montante da tarifa não se acha fixado nesse artigo 10º., nº.2, sim no artigo 18º., que não constitui objecto do recurso. Depois, os montantes constantes deste artigo 18º. - que, quanto aos lixos industriais e especiais, varia em função da área do estabelecimento - não se revelam excessivos. Finalmente, o próprio facto de o montante da tarifa exceder, eventualmente, o custo do serviço de recolha e destino do lixo não é, de per si, suficiente para que tal tributo deva ficar submetido ao regime dos impostos.
De facto, como se sublinhou no acórdão nº.640/95 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Janeiro de 1996), a propósito das portagens, a pagar pela utilização da Ponte sobre o Tejo, cujos montantes foram fixados pela Portaria nº.351/94, de 3 de Junho, as opções feitas pelo legislador (ou pela Administração) na fixação do montante das taxas são, em princípio, insindicáveis por este Tribunal, que, quando muito, poderá cassar as decisões legislativas (ou regulamentares), se, entre o montante do tributo e o custo do bem ou serviço prestado, houver uma desproporção intolerável - se a taxa for de montante manifestamente excessivo.
Neste aresto, com efeito, depois de se afirmar que 'pode, assim, dizer-se que o Tribunal rejeita - seguindo a doutrina fiscalista portuguesa, que se exprime sem discrepâncias - o entendimento de que uma taxa cujo montante exceda o custo dos bens e serviços prestados ao utente se deve qualificar como imposto ou de que deve ter o tratamento constitucional de imposto', escreveu-se:
Pode, assim, formular-se a dúvida sobre se, num caso de uma taxa de valor manifestamente desproporcionado, completamente alheio ao custo do serviço prestado, não deverá entender-se que tal taxa há-de ser tratada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, como um verdadeiro imposto, de tal forma que tenha de ser o órgão parlamentar a decidir sobre o seu quantum.
Esta dúvida não teve o mencionado acórdão que resolvê-la, por nele se haver concluído que 'não ocorr(ia) na situação sub iudicio uma violação do princípio da proporcionalidade'. E também seria ocioso ir dilucidá-la agora, já que se não vê que, no caso, ocorra violação de um tal princípio.
6. 3. Concluindo este ponto: a tarifa (prevista no artigo 18º. da Postura), cujo pagamento o seu artigo 10º., nº.2, impõe a todos os munícipes de Paredes, é, pois, uma taxa, cuja criação cabe - como se viu - nas competências da respectiva assembleia municipal, sob proposta da Câmara Municipal, a quem, aliás, compete fixar o montante.
O artigo 10º., nº.2, da Postura não viola, por isso, o artigo 168º., nº.1, alínea i), da Constituição.
III. Decisão:
Pelos fundamentos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade dela constante, a fim de ser reformada em conformidade com o aqui decidido sobre tal questão.
Lisboa, 6 de Novembro de 1996 Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Bravo Serra Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa
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