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Proc.Nº 164/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - O DR. A. M. requereu no Tribunal Tributário de Braga a execução do julgado pelo Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de
5 de Julho de 1995, alegando encontrar-se ainda em falta o pagamento de juros indemnizatórios que lhe seriam devidos desde 8 de Janeiro de 1994 a 17 de Janeiro de 1996.
Após contestação da Fazenda Nacional, foi proferida decisão no sentido de conceder integral satisfação ao pedido do requerente. Porém, na decisão, para chegar a tal resultado, recusou-se a aplicação das normas dos nºs 4 e 5 do artigo 24º do Código de Processo Tributário, por se considerar que as mesmas violavam os princípios do Estado de Direito e da igualdade (artigos 13º e 2º, da Constituição).
Fundamentou-se esta decisão da forma seguinte:
'O art. 19.d) do CPT consagra como garantia dos contribuintes o direito a juros indemnizatórios. O art. 24 do mesmo diploma estabelece as condições em que esse direito pode ser reconhecido: no n.1 faz depender esse direito da determinação, em reclamação graciosa ou processo judicial, de erro imputável aos serviços: nos ns.4 e 5 insiste na necessidade da decisão que reconheça esse direito. Daqui decorre, numa primeira análise, que esse direito não opera automaticamente ou de modo implícito, como pretende o requerente, sendo mister expressamente suscitar a questão e ver esta decidida. Ocorre, todavia, que este direito aparece como contrapartida do Fisco a juros compensatórios, como claramente revela o n.3 daquele art.24. Ora, para concretização deste seu direito não tem o Fisco - no que se refere a IRS - o dever de em processo judicial convencer o contribuinte de que o atraso na liquidação lhe é imputável, podendo desde logo proceder à liquidação desses juros compensatórios - cfr. art.83 do CIRS. Parece-nos evidente a desigualdade que deste modo se consagra. Cremos ser razoável que o Fisco não seja obrigado - cada vez que entende serem-lhe devidos juros compensatórios - a intentar uma acção no sentido do reconhecimento desse direito. Mas sendo assim, haverá que daí extrair consequências em termos do que é lícito exigir dos contribuintes em situação paralela. Uma outra solução parece ser a de deixar ao critério destes - anulada certa liquidação - a exigência ou não de juros indemnizatórios, em face do que o Fisco os pagará ou não. Não pagando, socorrer-se-ia o contribuinte da execução de julgado onde se dirimiria a questão de saber se eles eram ou não devidos. Note-se persistir aqui a desigualdade - esta porventura tolerável - de o impulso processual continuar a ser ónus do contribuinte, não tendo o Fisco encargo correspondente relativamente aos juros compensatórios, que serão cobrados, salvo
(mais uma vez) reacção do contribuinte, sem necessidade de decisão judicial prévia. Em síntese, diremos que, pelo facto de o Fisco não ter o ónus de ver reconhecido judicialmente o seu direito a juros indemnizatórios, não é constitucionalmente adequado exigir que os contribuintes o convençam, em reclamação graciosa ou processo judicial, do seu direito a juros indemnizatórios. No caso dos autos, haverá que concluir-se existir erro imputável aos serviços e, mais do que isso, que tal foi determinado em processo judicial, como impõe o n.1 do citado art.24. De facto, embora não expressamente suscitada, a questão do erro perpassa toda a petição da impugnação e a decisão do STA, na medida em que se alegou e decidiu não ter o Fisco interpretado correctamente as normas legais aplicáveis. Recusamos, pois, a aplicação das normas dos ns.4 e 5 do dito art.24, nos segmentos donde decorre o referido encargo para os contribuintes, por as considerarmos violadoras dos princípios do Estado de direito e de igualdade dos arts. 2 e 13.2 da Constituição da República.'
2. - Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório de constitucionalidade.
Neste Tribunal, nas alegações apresentadas, formularam-se as seguintes conclusões:
'1º A norma constante dos nºs 4 e 5 do artigo 24º do Código de Processo Tributário, na parte em que condiciona o direitos a juros indemnizatórios dos particulares - titulares no confronto da Administração, do direito à restituição de quantias indevidamente cobradas, sem adequada e suficiente base ou 'causa' legal - à prévia verificação, administrativa ou judicial, da ocorrência de erro imputável aos serviços naquele cobrança e retenção indevidas, não viola o princípio constitucional da igualdade.
2º Na verdade, a circunstância de se vencerem automaticamente juros compensatórios a favor da Administração fiscal, quando o contribuinte não pagar pontualmente o débito fiscal que o vincula, na prazo legalmente fixado, radica na estrutura e natureza deste débito, aparecendo perfeitamente justificada com base em princípios gerais vigentes no direito das obrigações e não constituindo consequentemente qualquer 'privilégio' da Administração fiscal.
3º Termos em que deverá proceder o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de constitucionalidade das normas que constituem o respectivo objecto.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - É o seguinte o teor da norma do Código de Processo Tributário cuja conformidade constitucional vem questionada:
'Artigo 24º Direitos a juros indemnizatórios
1.Haverá direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte quando, em reclamação graciosa ou processo judicial, se determine que houve erro imputável aos serviços.
2 Haverá também direito aos juros indemnizatórios quando, por motivo imputável aos serviços, não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos impostos.
3 O montante dos juros referidos no número anterior será calculado, para cada imposto, nos termos dos juros compensatórios devidos a favor do Estado, de acordo com as leis tributárias.
4 Os juros indemnizatórios serão liquidados e pagos no prazo de 90 dias contados a partir da decisão que reconheceu o respectivo direito ou do dia seguinte ao do termo referido no nº2.
5 Se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo referido no número anterior conta-se a partir da data da extinção do processo.
6 Os juros serão contados desde a data do pagamento do imposto devido até à da data da emissão da respectiva nota de crédito.'
Foram efectivamente desaplicados, os nºs 4 e 5 em conjugação com o nº 1 - quanto a este por se ter concluído na decisão recorrida e nos termos já transcritos 'existir erro imputável aos serviços e, mais do que isso, que tal foi determinado em processo judicial, como impõe o nº 1 do citado art. 24'. Está assim circunscrito o objecto do presente recurso, não cabendo nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre questões relacionadas com a determinação do direito aplicável, designadamente em função das regras sobre aplicação da lei no tempo.
O que a decisão recorrida retira dos preceitos indicados e que no seu entender viola a Constituição, é que não é imposta ao Fisco a necessidade de 'dever convencer o contribuinte de que o atraso na liquidação lhe
é imputável, podendo desde logo proceder à liquidação desses juros compensatórios' (artigo 83º do CIRS).
Gera-se, assim, uma situação de desigualdade em desfavor do contribuinte, uma vez que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor do contribuinte depende de se ter estabelecido em reclamação graciosa ou em processo judicial que houve erro imputável aos serviços ou do facto de os serviços não terem cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos impostos.
Acresce que, estando assente que a cobrança indevida do imposto é imputável aos serviços, ainda assim, a lei fixa um prazo de 90 dias para pagamento dos juros: esse prazo começa a contar-se a partir da decisão ou do dia seguinte ao prazo legal da restituição do imposto não cumprida; porém, se a decisão que reconheceu a dívida de juros foi judicial, o prazo de 90 dias só começa a contar-se a partir do momento da extinção do processo.
Poderá admitir-se a ideia de que o direito do contribuinte a juros indemnizatórios tem como contrapartida o direito do Fisco a haver juros compensatórios. Todavia, aquilo que pode admitir-se como mero princípio de argumentação não poderá alargar-se até ao ponto de estabelecer relações de paralelismo e simetria entre situações que, em primeiro lugar, ocorrem no âmbito de relações jurídico-fiscais, em segundo lugar, são substancialmente diferentes entre si no plano dos respectivos pressupostos de facto.
Quanto ao primeiro ponto, desde já se diga que o perfil próprio da relação jurídica fiscal, de há muito trabalhado pela doutrina, recebeu acolhimento, pelo menos nas suas linhas básicas, na Lei Fundamental, que se lhe refere no nº 3 do artigo 214º (actual nº 3 do artigo 212º). Sem procupações de caracterização dogmática aprofundada, basta referir que a relação jurídica fiscal, apesar das suas semelhanças com a relação obrigacional de direito privado, é inquestionavelmente uma relação de direito público (o que não pode deixar de se entender pressuposto pela Constituição). É por essa razão que o credor da obrigação fiscal goza de uma especial supremacia, 'que se nos não depara nas obrigações civis, e que constitui assim, simultaneamente, o índice do carácter público de tal obrigação e um saliente traço distintivo a interpor-se entre ela e as comuns relações jurídicas de crédito' - nas palavras de José Manuel M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, pag.
262. Sinal certo dessa supremacia é com certeza a declaração unilateral de vontade do Estado credor, que, para fazer nascer o seu direito, por exemplo o direito a juros compensatórios, não necessita de obter o acordo da contraparte ou a sentença dum tribunal.
Se em tese geral é assim, acresce que, quanto aos juros compensatórios devidos ao Fisco, nos encontramos em sede de deveres acessórios da obrigação fiscal que impendem sobre o contribuinte, em concreto o dever de não contribuir para o atraso na liquidação. Com efeito, segundo o nº 1 do artigo
83º do Código de Processo Tributário (CPT), 'em caso de atraso na liquidação por motivo imputável ao contribuinte, são devidos juros compensatórios'. A violação do dever acima indicado transporta-nos para a esfera do que poderemos designar por direito sancionatório fiscal em sentido lato, o que mais se torna patente quando se atenta na destrinça entre juros compensatórios e juros de mora, também estes devidos à Fazenda Pública, e que são resultantes do não pagamento do imposto já liquidado no prazo fixado na lei ou pela administração fiscal. Tendo em conta que a figura dos juros de mora não vem questionada no presente processo, logo por aqui se antevê que, em sede de juros compensatórios, se justifica que a Fazenda não tenha que previamente convencer o contribuinte em processo judicial.
Quanto aos juros indemnizatórios, esses devidos pela Administração fiscal, trata-se aí de fazer funcionar uma genérica garantia do contribuinte, colocada na sua disponibilidade, imposta pelo princípio da legalidade a que está submetida a actividade administrativa fiscal, pois importa que o exercício dos poderes fiscais decorra de acordo com as normas jurídicas que o disciplinam, e isto independendentemente da qualificação dogmática que venha a caber à figura - sanção indemnizatória emergente de responsabilidade civil extracontratual ou sanção fiscal compensatória (v. Nuno Sá Gomes, Direito Penal Fiscal, Lisboa, 1973, pags. 75-76, e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Junho de 1997, publicado no BMJ, nº 468, pag. 269 e segs.). Os juros indemnizatórios emergem em um contexto diferente, numa relação jurídica complexa de natureza tributária e consequentemente de direito público.
É o contribuinte que terá de fazer valer um seu direito, por meios que aliás nem sequer terão de passar por prévia decisão judicial se entretanto tiver obtido
êxito a reclamação graciosa, tal como resulta do nº 1 do artigo 24º do CPT. Será com certeza desajustado falar-se aqui de um direito da Administração a reter importâncias não devidas. O direito é aqui do contribuinte e compreende-se que tenha de ser invocado pelo seu titular.
Como se vê, diferentes são os pressupostos de facto, como diferente é a posição dos sujeitos intervenientes em uma e outra solução. E, por isso, não será cabido invocar, neste plano, uma eventual violação do princípio da igualdade, que, entre outras coisas, postula que se trate diferentemente aquilo que se mostre diferente.
A análise conduzida pelo Tribunal até aqui situou-se no plano em que se desenvolveu o raciocínio argumentativo da decisão recorrida, levando a concluir, nesse mesmo plano, pela não inconstitucionalidade do complexo normativo desaplicado. Mas não será despiciendo acrescentar que não será de afastar um grau de significativa homologia entre as duas situações não no início mas sim no fim do mesmo discurso, o que é dizer, na fase final da concreta relação tributária. Nesse nível, que será o da exaustão dos meios de garantia colocados à disposição do contribuinte para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, terá sempre de se lhe reconhecer o direito à impugnação jurisdicional da decisão da administração fiscal que negue ao contribuinte, ou o direito a receber dela juros indemnizatórios, ou dele exija juros compensatórios. Mas não foi esse o plano em que se situou a decisão recorrida, e, por sua vez, nesse plano terminal, o que ressaltará, como é óbvio, não é uma disparidade de tratamento jurídico mas sim uma clara similitude. III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, determinar a reformulação da decisão recorrida de acordo com o julgamento de não inconstitucionalidade acabado de fazer.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida