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Proc. nº 369/97
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional I
1. - T...,Companhia de Seguros,S.A., com sede em Lisboa, intentou na comarca do Porto, acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra I...,Lda., com sede no concelho de Valongo, pedindo a condenação desta a pagar-lhe determinada quantia, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, invocando, para o efeito, o disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº
289/88, de 24 de Agosto.
Contestou a demandada pedindo que, julgada a acção improcedente e não provada, seja a ré absolvida da totalidade do pedido e, por sua vez, condenada a autora como litigante de má fé.
Os autos prosseguiram termos até que, por sentença de 21 de Junho de 1996, foi a acção julgada provada e procedente e, consequentemente, condenada a ré no pedido - salvo quanto à diferença entre os juros peticionados e os fixados na decisão.
Reagiu a sociedade demandada recorrendo, de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto e, nas respectivas alegações, suscita questão de constitucionalidade pertinente à norma daquele artigo 2º que, em sua tese, ao significar a duplicação do pagamento do imposto alfandegário, viola os nºs. 2 e 3 do artigo 106º da Constituição da República (CR) - hoje correspondentes aos nºs. 2 e 3 do artigo 103º.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 26 de Maio de 1997, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
No tocante à questão de constitucionalidade suscitada, escreveu-se:
'O dec-lei 289/88 não sofre de qualquer inconstitucionalidade, quer formal, quer material.
Este diploma não criou qualquer imposto.
O que nele se regula é tão só um aspecto particular do sistema de cobrança dos impostos aí previstos, que são os direitos aduaneiros e demais imposições devidas pelas declarações à Alfândega, apresentadas pelos despachantes oficiais.
Não há, pois, qualquer violação do disposto no art. 106º, nºs. 2 e
3, da Constituição.
Como já se decidiu no citado Acórdão desta Relação de 30/1/95 (pág.
210), ?esse regime legal não veda ao devedor desses impostos ou taxas defender-se na acção de regresso contra si instaurada pela entidade garante, ao abrigo do citado artº 2º, nº 2. O que não pode é invocar factos (como é o caso de ter posto à disposição do despachante as importâncias destinadas ao pagamento desses impostos ou taxas), que não constituem uma extinção da sua obrigação fiscal perante a Alfândega. Mas isso bem se compreende e nada tem de arbitrário, por se tratar de factos que se configuram, relativamente à entidade garante (tal como em relação à Alfândega), uma res inter alios'.
De resto, não está vedado, juridicamente, que a ré possa reaver do despachante a quantia que lhe entregou e que este não aplicou, como devia, no pagamento dos referidos impostos, de que aquela é responsável.
E também não pode afirmar-se que o mesmo dec-lei nº 289/88 cria um novo sujeito fiscal: a entidade garante (seguradora).
Na verdade, a seguradora é um simples garante voluntário, por via contratual, do pagamento dos impostos previstos no mencionado dec-lei, pelo que não pode ser considerado sujeito passivo dos mesmos impostos.'
2. - Inconformada, recorreu a ré para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas do artigo 2º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, que, em seu entender, violam o disposto nos citados nºs. 2 e 3 do artigo 106º da Constituição da República.
Admitido o recurso, alegaram ambas as partes.
A ré e recorrente concluíu, assim, as respectivas alegações:
'1º - Por determinação legal, como importador de bens do estrangeiro, a Recorrente só podia proceder ao desalfandegamento por via de um Despachante Oficial.
2º - Por determinação legal, a este Despachante, dito ?Oficial?, competia obter o prévio pagamento e liquidação do imposto, no caso o IVA.
3º - De posse da verba respectiva, e sempre investido dessa qualidade, o Despachante apropriou-se dessa verba e não pagou o Imposto, que,
4º - Já tinha sido liquidado a quem de direito, o Despachante Oficial, pela Recorrente, como importadora;
5º - Com base num Contrato de Seguro, a que a Recorrente é totalmente estranha, paga a Seguradora o valor apropriado ao beneficiário, o Estado;
6º - Daí, invocando o direito de regresso, vem agora exigir o pagamento pela Recorrente de novo imposto; e,
7º - Baseando-se no nº 2, do artº 2º, do Decreto-Lei nº 289/88. Só que,
8º - O referido normativo é inconstitucional, por violar os nºs. 2 e
3, do artº 106º, da Constituição da República. Assim, pelo exposto, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, requere-se que, em termos de fiscalização concreta, se dignem considerar inconstitucional a norma do nº 2, do artº 2º, do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, com a consequente absolvição da Ré, ora Recorrente, no Processo em que suscitou a questão.'
Por sua vez, a autora e recorrida contra-alegou no sentido do improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II
1.1. - O Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto, consoante se retira da respectiva nota preambular, teve por confessado objectivo acelerar o processo de desalfandegação de mercadorias, mediante a simplificação do sistema de prestação de garantias e de pagamento dos direitos aduaneiros e demais imposições legais, assim se reduzindo substancialmente os prazos de entrega das mercadorias.
Deste modo, criou-se, pelo nº 1 do artigo 1º, a caução global para o desalfandegamento, destinada a garantir os direitos e demais imposições devidos pela totalidade das declarações apresentadas pelos despachantes oficiais às alfândegas, a prestar sob a forma de fiança bancária ou de seguro-caução, nos termos do artigo 3º, compreendendo os direitos e demais imposições os direitos aduaneiros e outras imposições de efeito equivalente, bem como quaisquer outros impostos ou taxas cuja cobrança esteja a cargo das alfândegas, de acordo com o nº 2 do artigo 1º.
Neste enquadramento, preceitua o artigo 2º, ora em causa:
'1.- No âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis.
2.- O despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhadas de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas.'
1.2. - O Decreto-Lei nº 289/88 responsabiliza solidariamente os interessados no processo de desalfandegamento - dono (ou consignatário) das mercadorias e despachante - pelo pagamento dos direitos e imposições alfandegárias, permitindo à seguradora, como entidade garante por força do contrato de seguro-caução, exercer direito de regresso contra qualquer deles pelo que pagou à entidade alfandegária. O legislador afastou-se, deste modo, da disciplina civilística do mandato sem representação, tal como a regem os artigos
1180º e seguintes do Código Civil, com o confessado objectivo de facilitar e melhor garantir a cobrança das importâncias respeitantes aos direitos e demais imposições aduaneiras devidas por todos os interessados no processo de desalfandegamento, alargando o leque de responsabilização mediante o esquema mais simples e directo que encontrou. Medida esta certamente discutível, sem embargo de a jurisprudência nacional mais representativa, não obstante alguma considerar a opção do legislador como ?mau direito?, não lhe vir a reconhecer vício de inconstitucionalidade (assim, v.g., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Junho de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência ? Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo II, págs. 151 e segs., e do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Maio de 1994, 6 de Outubro de 1994 e 30 de Janeiro de 1995, publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, tomo III, págs. 191 e segs., e tomo V, págs. 197 e segs., e ano XX, tomo I, págs. 207 e segs., respectivamente).
1.3. - No caso vertente, a seguradora, ora recorrida, perante o incumprimento do despachante oficial, com o qual celebrara contrato de seguro-caução, interpelada pela Alfândega do Porto, pagou a esta o devido por uma operação de desalfandegamento de mercadorias pertencentes à recorrente, considerando-se, em consequência, subrogada nos seus direitos nos termos do disposto no nº 2 do citado artigo 2º, vindo, assim, a exigir desta o reembolso do que pagou. O que se põe em causa, alegando-se violação do princípio constitucional da legalidade fiscal, na medida em que a mecânica prevista na norma impugnada - e a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida - representaria uma duplicação do pagamento do imposto já liquidado: o nº 2 do artigo 2º, garantindo o direito de regresso da entidade garante, implica que se exija o pagamento de novo imposto.
Será assim?
2.1. - A decisão recorrida entendeu que não, como decorre da passagem transcrita do seu acórdão. No entendimento aí professado, o que o diploma onde se insere a norma questionada regula é só um ?aspecto particular do sistema de cobrança dos impostos aí previstos, que são os direitos aduaneiros e demais imposições devidas à Alfândega?, fase às declarações apresentadas pelos despachantes oficiais, perfilando-se a seguradora com um mero garante voluntário, por via contratual, do pagamento dos impostos em causa, nada impedindo que a ré possa reaver do despachante a quantia que lhe entregou e que este não aplicou, como devia, no pagamento dos mesmos, de que aquela é responsável.
Este é, também, em suma, o entendimento que o Tribunal Constitucional tem sustentado perante a norma em questão e o problema levantado.
Atente-se no que a este respeito se ponderou no acórdão nº 504/98, ainda inédito.
'Após afastar uma então alegada violação da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, no tocante à matéria de criação de impostos e sistema fiscal [alínea i) do nº 1 do artigo 168º da CR, na redacção da Segunda revisão constitucional) - questão que, no caso vertente, não se aborda por inútil, pois nem foi equacionada nem o Tribunal a julgou procedente - o acórdão afrontou a eventualidade de violação do artigo 13º da CR, nomeadamente por se defender contra a norma do nº 2 do artigo 2º um privilégio concedido à seguradora tido por desrazoável e desproporcionado, mesmo admitindo a possibilidade de onerar o dono das mercadorias com um duplo pagamento. Ao invés do que sucede no contrato de seguro, impõe-se a este a assunção do risco da prestação da garantia em causa, vindo a ter de pagar os direitos e imposições alfandegárias à entidade garante, não obstante, eventualmente, o pudesse ter já feito relativamente ao despachante oficial. Ora, a este propósito, ponderou-se no citado acórdão nº 504/98, em termos que ora se reiteram:
?[...]a medida legislativa que o artigo 2º exponencia não foi [...] arbitrariamente decretada, pois que justificada por uma lógica de celeridade e simplificação que, sempre e em última instância, aproveita essencialmente aos agentes económicos - donos das mercadorias ou seus consignatários, importadores ou exportadores - que retirarão as vantagens inerentes a um desalfandegamento mais expedito e eficiente, sem prejuízo de, em qualquer circunstância, poderem lançar mão dos direitos que lhes assistem e respectivos meios processuais próprios a fim de se ressarcirem de eventuais prejuízos sofridos pelo incumprimento, ou cumprimento defeituoso, dos despachantes oficiais, por eles, de resto, livremente escolhidos para desembaraçarem as suas mercadorias, como técnicos especialistas em matéria aduaneira (como sublinha Antunes Varela na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125, pág. 56). Se o despachante embolsou em seu proveito a importância que lhe foi entregue, não lhe dando o devido destino, não deixará de incorrer em responsabilidade civil, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que terá causado, além da inerente responsabilidade criminal.' Considerou-se, assim, não ocorrer violação do princípio da igualdade, como, afinal, no caso dos autos, o entendeu a 1ª instância, tomando esse princípio como sedimentado se encontra no acervo jurisprudencial deste Tribunal. E observou-se, ainda, com pertinência para o presente caso:
'Não é correcto, nomeadamente, afirmar que o Estado deixa de ter o direito de reclamar directamente ao importador o valor dos direitos e imposições aduaneiras devidos se este demonstrar que entregou ao despachante oficial a quantia devida: a sua obrigação perante a Alfândega não se extinguiu pelo facto de ter posto à disposição do despachante as importâncias destinadas ao pagamento das importâncias devidas, o que, aliás, constitui res inter alios no tocante à Alfândega e à seguradora.'
2.2. - O entendimento sustentado no acórdão parcialmente transcrito - e reiterado no acórdão nº 622/98, igualmente ainda inédito - é de manter no caso sub judicio, pese embora o diferente enquadramento jurídico-constitucional em que a matéria é perspectivada (cfr., igualmente o acórdão nº 570/98, inédito).
Na verdade, situando-se a norma impugnada no âmbito da regulação interna das relações creditícias enter os sujeitos de uma operação de desalfandegação, é bom de ver que a iniciativa legislativa - concorde-se ou não com a sua razão de ser - nada tem a ver com a criação de impostos, com o princípio da legalidade tributária ou, de qualquer modo, com o disposto nos nºs.
2 e 3 do artigo 103º da CR.
Não assiste, assim, razão à recorrente.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 3 de Novembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida