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Processo: n.º 803/93.
2ª. Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 — Em autos de expropriação por utilidade pública que correram seus termos pelo
Tribunal de comarca de Vila do Conde e em que figuravam, como expropriante, a
Câmara Municipal de Vila do Conde e, como expropriados, A., B., C., D. e E.,
proferiu o Tribunal da Relação do Porto, em 22 de Novembro de 1984, acórdão por
intermédio do qual foi revogada a sentença proferida em 4 de Janeiro do mesmo
ano naquele Tribunal de comarca.
Nesse acórdão foi entendido que, ao valor real da parcela expropriada, incluída
no conceito de aglomerado urbano, deveria ser deduzido o valor correspondente à
mais-valia que para tal parcela foi carreado pelas infra-estruturas resultantes
da execução, pela expropriante e há menos de dez anos, de uma avenida, dedução
imposta pelo n.º 1 do artigo 29.º do Código das Expropriações aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro.
2 — Por entender que aquele acórdão estava em oposição com outros, já
transitados em julgado, prolatados pelo mesmo Tribunal da Relação, entre eles o
lavrado em 8 de Junho de 1982, proferido «no domínio da mesma legislação» e
«sobre a mesma questão fundamental de direito, qual seja o conceito de mais
valia a que se reporta o artigo 29.º do Código das Expropriações (…) e a sua
aplicação a terrenos considerados como localizados em aglomerado urbano», veio a
expropriante, em 18 de Fevereiro de 1985, «ao abrigo do disposto no artigo 764.º
do Código de Processo Civil interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
funcionando em Pleno».
3 — Seguindo os autos seus trâmites no Supremo Tribunal de Justiça, produziram
expropriante e expropriados alegações ex vi do n.º 2 do artigo 767.º do Código
de Processo Civil, defendendo cada um a formulação de «assento» em moldes que
preconizaram, o mesmo fazendo o Representante do Ministério Público junto
daquele Alto Tribunal, no parecer que emitiu ao abrigo da mesma disposição
legal.
4 — O Supremo Tribunal de Justiça, porém, por acórdão proferido pelo Pleno em 28
de Outubro de 1993, negou provimento ao recurso, o que fez por considerar que,
sendo a primeira parte do n.º 1 do artigo 29.º do Código das Expropriações
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76 inconstitucional — visto «ofender o
conceito de justa indemnização, no sentido do valor real e corrente dos bens
expropriados, bem como por ofender o princípio de igualdade de tratamento dos
cidadãos em idênticas circunstâncias» — não seria «viável a prolação de Assento»
sobre uma norma tida por desconforme à Lei Fundamental.
5 — Do assim decidido recorreu para o Tribunal Constitucional a expropriante.
O Conselheiro relator do STJ veio a admitir o recurso, embora com muitas dúvidas
(e, fundamentalmente, porque, podendo entender-se de modo diferente, não
desejava «impedir um recurso ou … criar maior impasse»), já que — disse — na sua
óptica, o acórdão impugnado «não desaplicou qualquer parte do artigo 29.º do
Código das Expropriações de 1976 à causa, até porque não a julgou», uma vez que
o julgamento ocorreu, sim, mas pela Relação do Porto, que foi quem «aplicou tal
dispositivo legal, ainda que com certo entendimento», sendo certo, porém, que
«nos pressupostos conducentes à não prolação de Assento» se considerou «a
primeira parte do n.º 1 do artigo 29.º do Código referido como inconstitucional
para efeitos de cálculo de justa indemnização».
6 — Determinada a feitura de alegações, efectuou a recorrente na por si
produzida o seguinte quadro conclusivo:
A) A justa indemnização garantida como contrapartida da expropriação
corresponde ao valor de mercado normal, mas não a um valor de mercado
influenciado por factores anómalos ou especulativos.
B) São factores anómalos, ou extraordinários, de modificação dos preços de
mercado as mais-valias directamente resultantes de obras, melhoramentos e
infra-estruturas realizadas pelo poder público, se tomadas em conta para efeitos
de cálculo de justa indemnização.
C) A norma sub censura não ofende, portanto, o disposto no artigo 62.º, n.º 2,
da CRP.
D) Em ordem a apurar se o preceito legal em exame viola, ou não, o princípio
da igualdade, a comparação da situação dos expropriados que ela abrange teria de
ser feita com a dos expropriados por ela não afectados, e nunca com a de
não-expropriados.
E) O comando que se discute (excluindo, quando muito, determinado segmento,
irrelevante para o caso sub iudice) não cria diferença de tratamento
significativa entre o grupo de expropriados que abarca e os demais.
F) Não se verifica, pelo exposto, postergação do princípio da igualdade
(artigo 13.º da CRP).
G) Ao entender o contrário, o acórdão recorrido fez errada interpretação e
aplicação das disposições legais e do princípio de Direito citados.
Por seu turno, os recorridos concluíram do seguinte modo:
1 — Não tendo o Venerando Supremo Tribunal de Justiça (STJ), julgando em
Tribunal Pleno em autos vindos, nos termos do disposto no artigo 764.º do Código
de Processo Civil, da Emérita Relação do Porto, desaplicado o comando contido na
1.ª parte do n.º 1 do artigo 29.º do Código das Expropriações (CE) aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro (por o momento de aplicação daquele
inciso ter ocorrido no Acórdão proferido nos autos em 22 de Novembro de 1984
pelo Tribunal daquela Relação), não se mostra o douto Acórdão aqui impugnado
ferido por vício que imponha a admissibilidade do presente recurso ao abrigo do
preceito levado à alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição (CR) e,
ainda, à alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(com a redacção da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro).
2 — Em tal decorrência apresenta-se o recurso ilegalmente admitido por ter o
aliás muito douto despacho do venerando Conselheiro Relator que em tanto
consentiu sido proferido sob errónea interpretação e aplicação daqueles
preceitos legais e constitucionais, e devendo agora esse Alto Tribunal
pronunciar-se pelo não conhecimento do recurso, em homenagem ao imposto nas
disposições contidas nos artigos 76.º, n.º 3, e 78.º-A daquela LTC (na já
apontada redacção da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro).
3 — Entendendo-se, porém, mais autorizadamente, que sempre ao Emérito Tribunal
Constitucional caberá em definitivo a qualificação do vício motivador de
desaplicação normativa, deverá decidir-se a final que, tudo ponderado, não
ocorreu in casu implícita desaplicação (de norma não inconstitucional) daquele
n.º 1 do artigo 29.º do CE (1976), por seguro se mostrar então que o preceito
não aplicado é inconstitucional, já que, articulando-se estreitamente com a
regra do artigo 30.º, n.º 1, daquele mesmo Código das Expropriações, de que
aliás constituía objectiva limitação, desrespeitar os princípios fundamentais da
igualdade e da justa indemnização em processo expropriativo por utilidade
pública, estruturantes do Estado de Direito, expressamente acolhidos nos artigos
13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição, tendo o venerando STJ agido, ao abrigo de
qualquer censura, no integral acatamento da definição levada ao artigo 207.º da
CR, negando-se a tirar Assento por não haver, nos termos do artigo 2.º do Código
Civil (CC), que interpretar norma irrelevante para efeitos da definição dos
critérios de fixação da adequada indemnização em expropriação por utilidade
pública. E nessa conformidade deverá esse Alto Tribunal, exercendo jurisdição
própria, declarar a inconstitucionalidade do sindicado preceito, confirmando
nessa parte o aliás muito douto Acórdão recorrido.
4 — Se, no entanto e como quando menos em tese sempre haverá de admitir-se, esse
Alto Tribunal ad quem resolver que ocorreu no Acórdão do Venerando Supremo
Tribunal de Justiça ora posto em crise efectiva desaplicação de norma não
inconstitucional, ferindo-se o aresto em apreço de vício de violação da lei por
errada interpretação, haverá então de ter-se por certo que tanto se verificou em
vista da aplicação, que aquele Tribunal a quo efectiva e correctamente operou,
das normas legais constantes das disposições vertidas nos artigos 27.º, n.º 1,
do CE (1976) e 1310.º do CC, aliás acolhidas no comando do artigo 62.º, n.º 2,
da CR, merecendo então o esclarecido Acórdão recorrido salvar-se para a ordem
jurídica, em homenagem aos princípios fundamentais da legalidade e da certeza e
segurança jurídicas, recusando esse Emérito Tribunal Constitucional o provimento
do recurso e confirmando integralmente a decisão impugnada, na observância da
injunção contida no artigo 3.º, n.º 3, da CR e, se tanto se afigurar
imprescindível, por apelo mesmo ao poder conferido a essa Alta Instância pela
norma contida no n.º 4 do artigo 282.º da mesma Lei Fundamental».
Ouvida a recorrente sobre a questão suscitada pelos recorridos e consistente em
se não dever tomar conhecimento do presente recurso, veio a mesma expender que
essa questão deveria ser considerada improcedente, uma vez que «o Supremo
Tribunal de Justiça só não tirou assento, sobre a norma discutida, por ter
considerado que ele é, ou era, inconstitucional».
II
1 — Impõe-se iniciar a análise da questão colocada a este Tribunal pelo
enfrentamento da questão prévia que foi recortada pelos recorridos.
Como se viu, entendem os mesmos que o aresto impugnado não fez desaplicação da
norma ínsita na primeira parte do n.º 1 do artigo 29.º do Código das
Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 845/76, de 11 de Dezembro (norma
cuja aplicação, segundo os recorrentes, ocorreu, isso sim, no acórdão prolatado
nestes autos pelo Tribunal da Relação do Porto), motivo pelo qual se não
verificará, no caso, o pressuposto do recurso consignado na alínea a) do n.º 1
do artigo 280.º da Constituição e na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro.
É este, aliás, um posicionamento que, ao menos eventualmente, foi admitido
conceber-se em algumas das considerações efectuadas no despacho proferido pelo
Juiz Relator do Supremo Tribunal de Justiça e por intermédio do qual foi
admitido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Diga-se desde já que é entendimento deste órgão de administração de justiça que
não deve proceder a questão prévia.
2 — Na realidade, para alcançar a decisão aí tomada — ou seja, negar provimento
ao recurso atendendo à circunstância de não ser viável a prolação de um Assento
sobre uma norma tida por inconstitucional —, o acórdão tirado pelo Pleno do STJ
em 28 de Outubro de 1993, como é óbvio, teve de suportar-se na prévia formulação
de um juízo de desconformidade constitucional relativamente à norma levada à
primeira parte do n.º 1 do aludido artigo 29.º do Código das Expropriações de
1976. Isto significa, pois, que, se não fora aquele juízo, nada obstaria à
prolação do Assento, atento até que fora reconhecida a oposição entre os
acórdãos recorrido e fundamento.
Sendo isto assim, então é-se levado a concluir que a questão de
inconstitucionalidade tratada pelo acórdão recorrido, ainda que, expressa ou
directamente, não tivesse conduzido a uma recusa de aplicação normativa,
manifestamente influenciou ou, se se quiser, foi razão de ser da decisão ali
tomada, ou seja, houve uma recusa implícita e indirecta de aplicação da norma em
causa.
Dito por outras palavras: — foi a consideração segundo a qual, no seu
entendimento, é inconstitucional a norma em apreço, que fez com que o Supremo
não viesse a lavrar o Assento que se lhe pedia que produzisse, sendo certo que,
se não tivesse perfilhado aquele entendimento, iria, em face do reconhecimento
da oposição de acórdãos da Relação tirados sobre a mesma questão fundamental de
direito e no domínio da mesma legislação, produzir um aresto que, em face do
normativo constante do artigo 2.º do Código Civil, seria perspectivável como
constituindo doutrina dotada de força obrigatória geral tocantemente à
interpretação da mencionada norma.
Nesta postura, haverá forçosamente que reconhecer estarem reunidos os
pressupostos condicionadores do recurso aludido na alínea a) do n.º 1 do artigo
280.º da Constituição e na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
pelo que é improcedente a suscitada questão prévia.
III
1 — Disse-se acima que o acórdão sob censura entendeu por bem efectuar um juízo
de desconformidade constitucional tout court sobre esse preceito, sendo de
anotar que, como do seu discurso argumentativo se extrai, admitiu que haveria
mais de uma forma interpretativa da dita estatuição, uma delas, precisamente, a
adoptada pelo acórdão tirado na Relação do Porto e então impugnado e que, nas
suas palavras, «é, entre as que vêm equacionadas, a que se aproxima mais de uma
leitura constitucional da matéria, por isso que é, de entre as ponderadas, a que
mais tem que ver com o valor corrente e real».
1.1 — Apresenta a aludida norma o seguinte teor:
Artigo 29.º
1 — Para a determinação do valor dos bens, não pode tomar-se em consideração a
mais-valia resultante de obras, melhoramentos públicos ou infra-estruturas
realizadas nos últimos dez anos, da própria declaração de utilidade pública da
expropriação ou, ainda, de quaisquer circunstâncias ulteriores a essa
declaração, dependentes da vontade do expropriado ou de terceiro.
Perante um tal normativo, o Tribunal da Relação do Porto, convém recordá-lo, no
acórdão que se pretendeu censurar por intermédio do recurso para o STJ a que se
refere o artigo 764.º do Código de Processo Civil, perfilhou uma interpretação
de molde a que a «determinação do valor» do bem expropriado (na presente
hipótese um terreno) haveria de ser efectuada de harmonia com os normativos
extraíveis do artigo 33.º do Código das Expropriações de 1976 (que, por seu
turno, apela para os artigos 27.º e 28.º do mesmo corpo de leis) — o que o mesmo
é dizer que haveriam de ter-se em consideração as características do terreno
tais como se apresentavam à data da declaração de utilidade pública da
expropriação —, subtraindo-se ao valor assim alcançado aqueloutro consistente na
mais-valia carreada ao mesmo terreno pelas obras e infra-estruturas urbanísticas
decorrentes da abertura, levada a efeito pela expropriante, de uma avenida em
Vila do Conde.
Pois bem: — precisamente porque recorrido era, então, aquele acórdão da Relação
do Porto de 22 de Novembro de 1994, o STJ, no aresto ora sob censura, haveria,
também, de equacionar a interpretação no primeiro formulada, motivo pelo qual se
será conduzido a concluir que, verdadeiramente, o que se pedia ao Supremo era
que, lavrando «assento», se pronunciasse sobre esse recorte interpretativo
levado a efeito pelo mencionado acórdão da Relação do Porto, tendo em
consideração, como foi reconhecido, que outro acórdão, produzido, aliás, pela
mesma Relação, tinha interpretado a dita norma num sentido segundo o qual, se
foi por via da efectivação das obras, melhoramentos públicos e infra-estruturas
realizadas nos últimos dez anos que o terreno expropriado veio a adquirir as
características que detinha aquando da declaração de utilidade pública da
expropriação, a determinação do valor do mesmo terreno não haveria de tomar em
conta essas características.
Perante o que se deixa dito, poder-se-á, afoitamente, dizer que o pronunciamento
que se pede agora a este Tribunal é que aquilate da solvência ou insolvência
constitucional da norma da primeira parte do n.º 1 do citado artigo 29.º na
interpretação acima delineada (isto é, recorda-se, na interpretação segundo a
qual a determinação do valor do bem expropriado haverá de ser efectuada de
harmonia com as características que esse bem possuía à data da declaração de
utilidade pública da expropriação, retirando-se ao valor desse modo aquilatado o
valor correspondente à mais-valia advinda pelas obras, melhoramentos públicos e
infra-estruturas urbanísticas efectuados nos últimos dez anos), pelo que é esta
questão a que constituirá o âmbito do presente recurso.
2 — É já vasta a jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional em torno
do conceito de «justa indemnização» utilizado no n.º 2 do artigo 62.º do Diploma
Básico, jurisprudência essa da qual deflui que tal conceito não tem,
necessariamente, que corresponder ao preço que os bens expropriados teriam num
mercado dito «real e concreto», devendo, antes, atender-se, para o alcance do
«justo valor», ao preço que o bem deterá num «mercado normal», onde não entrem
em consideração factores especulativos ou anómalos que, as mais das vezes, se
encontram no primeiro.
É que, conforme o posicionamento seguido pelo Tribunal e que agora se reitera,
só assim é, por um lado, possível que a «justa indemnização» corresponda àquele
«valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda que a transferência
do bem que lhe pertencia para outra esfera dominial lhe acarreta, devendo-se ter
em atenção a necessidade de respeitar o princípio da equivalência de valores»;
e, por outro, também só assim se atingirá uma indemnização que não atenda «a
quaisquer valores especulativos ou ficcionados, por forma a distorcer (positiva
ou negativamente) a necessária proporção que deve existir entre as consequências
da expropriação e a sua reparação» (palavras do Acórdão n.º 52/90, no Diário da
República, I Série, de 30 de Março de 1990).
A indemnização há-de, assim, como «concretização do Estado de direito
democrático, nos termos do qual se torna obrigatório indemnizar os actos lesivos
de direitos ou causadores de danos» (idem), de ter «como medida o prejuízo que
para o expropriado resulta da expropriação» (idem), traduzindo, pois, «uma
adequada restauração da lesão patrimonial sofrida» (do Acórdão n.º 381/89, na II
Série do jornal oficial, de 8 de Setembro de 1989) por aquele ou «uma
compensação plena da perda patrimonial suportada» (do Acórdão n.º 210/93, no
Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1993; cfr., igualmente sobre o
ponto, verbi gratia, os Acórdãos n.os 442/87, idem, idem, de 17 de Fevereiro de
1988 e 420/89, idem, idem, de 15 de Setembro de 1989).
2.1 — Seguindo Fernando Alves Correia (O Plano Urbanístico e o Princípio da
Igualdade, pp. 532 a 563), defende-se que o conceito constitucional de «justa
indemnização» «pode ser determinado com base num processo de aproximações
sucessivas» em face de «três parâmetros fundamentais» a saber: — «proibição de
uma indemnização meramente nominal, irrisória ou simbólica»; respeito pelo
«princípio da igualdade de encargos», visto nas vertentes das relações interna e
externa da expropriação, e a consideração do «interesse público» desta.
Relativamente àqueles dois primeiros parâmetros, torna-se claro (aqui se
remetendo para a corte de fundamentação aduzida no autor e obra citados, que a
economia do presente Acórdão dispensará de repetir) que a indemnização a
arbitrar em consequência de um processo expropriativo há-de conduzir à adopção
de um critério que se configure como o mais adequado ou apto a alcançar a já
referida compensação plena do sacrifício que resultou para o expropriado da
perda do bem, critério esse que não pode deixar de ser o do «valor comum» desse
bem, entendido na perspectiva do valor que o mesmo tem num «mercado normal».
Ora, porque este «mercado normal», como acima se viu e pelas razões aventadas,
não tem de ser o «mercado real e corrente», seguir-se-á a conclusão de que o
reportado «valor comum» há-de ser tomado numa acepção não estrita ou corrente,
mas sim numa acepção normativa.
E é por isso que, neste particular, Alves Correia opina por que a expressão
«valor de mercado normativamente entendido» deva corresponder a um valor de
mercado «normal» ou «habitual», em que não entrem em linha de conta factores
especulativos ou anómalos, o que faz com que, algumas vezes, o pretium dos bens
que poderia ser obtido num mercado onde jogam livremente as regras da oferta e
da procura, seja, acentuada ou substancialmente, diferente daquele que se
obteria por recurso ao conceito normativo delineado.
2.2 — Neste contexto, é-se chegado à conclusão de que, num caso como o dos
autos, atento um mercado «normal» ou «habitual», um expropriado na posição dos
ora recorridos, ao transaccionar o terreno em questão, perceberia pelo mesmo um
valor do qual, primo conspectu, nunca seriam arredadas as características de que
estava possuído aquando da declaração de utilidade pública da expropriação,
características essas que lhe conferem a qualificação de terreno englobado em
aglomerado urbano.
Se, para a determinação do valor desse terreno, se tomassem em conta as
características que detinha antes da realização das obras, melhoramentos
públicos e infra-estruturas, isso iria, patentemente, reflectir-se no preço
desse bem e, em consequência, num prisma de comparação com os proprietários de
outros terrenos em situação semelhante, criaria, numa análise em que se
ponderasse a relação externa da expropriação, uma manifesta desigualdade.
Efectivamente, os donos de terrenos em situação análoga à do expropriado (ou
seja, os terrenos que adquiriram as características de terrenos incluídos em
aglomerado urbano mercê da realização das aludidas obras, melhoramentos públicos
ou infra-estruturas e que se valorizaram, por isso, pelo progresso ligado ao
desenvolvimento urbanístico e económico local) poderão sempre transaccioná-los
num mercado «normal» ou «habitual» (logo sem que aí se fizessem sentir factores
especulativos ou anómalos) atendendo a essas mesmas características, enquanto
que o expropriado, porque sofreu a ablação do seu direito sobre o terreno por
via de um acto de autoridade, não iria desfrutar de uma total ou integral
compensação que normalmente desfrutaria se colocasse no mencionado mercado,
transmitindo-o a outrem, esse mesmo terreno.
Configurar-se-ia, se se seguisse um tal posicionamento, uma violação do
«princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos», como
dimensão da «justa indemnização» consagrada no n.º 2 do artigo 62.º da
Constituição.
3 — Todavia, a interpretação conferida à norma ínsita na primeira parte do n.º 1
do artigo 29.º do Código das Expropriações de 1976, tal como acima (cfr. parte
final do ponto 2 de II) ficou sumulada (e que não tem eco em nenhuma norma do
vigente Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de
Novembro), não conduz a um tal resultado, antes pelo contrário.
Na verdade, de acordo com essa interpretação, o valor do bem expropriado há-de,
num primeiro momento, resultar da operatividade dos critérios que se extraiam do
artigo 33.º daquele Código das Expropriações de 1976, o que levará a que, por
aplicação dos artigos 27.º e 28.º (maxime o n.º 2 daquele e o n.º 1 deste), se
atenda ao seu «valor real», ressarcindo o expropriado do prejuízo que para si
adveio do acto ablativo.
Claro que a operatividade dos falados critérios poderá, por vezes, conduzir a
que se utilizem determinados arcos ou segmentos normativos do referido artigo
33.º e de cuja compatibilidade constitucional bem se poderá duvidar (cfr., a
título de exemplo, o juízo de inconstitucionalidade formulado no citado Acórdão
n.º 210/93).
Simplesmente, não é isso que agora está aqui em questão. O que, como se viu,
está em causa é a determinação do valor do bem expropriado atingida na
interpretação, agora em apreço, da norma da primeira parte do n.º 1 do artigo
29.º
E esta, por si só, não é constitucionalmente censurável, por isso que, por seu
intermédio, se alcança uma justa valoração do bem objecto de expropriação; se
atinge, enfim, um «valor venal» ou «comum» que também seria possível atingir se
esse bem fosse alvo de transacção num mercado «normal» ou «habitual».
4 — Dir-se-á, porém, que, em verdade, o vício de inconstitucionalidade detectado
no acórdão sub iudicio, e para além da questão acima analisada, se prende — até
primacialmente — com a limitação que, objectivamente, decorre da norma em juízo.
Essa limitação, está bem de ver, prende-se com a seguinte questão: — será
constitucionalmente insolvente que, no cálculo do valor do bem expropriado se
não possa tomar em conta a mais-valia que para ele resulte de obras,
melhoramentos públicos e infra-estruturas realizadas nos últimos dez anos?
Na equação deste problema, o acórdão recorrido não ancorou o juízo de
inconstitucionalidade que formulou na questão do prazo mencionado na norma em
crise, em termos de saber se, numa perspectiva analítica da sua razoabilidade
ou irrazoabilidade, o respectivo estabelecimento era conflituante com o Diploma
Básico.
Daí que, porque nos situamos num recurso de fiscalização concreta, não se deva
enfrentar uma tal questão.
4.1 — Retomando o Autor acima citado e incidindo agora a atenção sobre o
terceiro parâmetro iluminador do processo de aproximação sucessiva com base no
qual se haverá de determinar o conceito de «justa indemnização» (ob. cit., pp.
552 e segs.), expender-se-á que a indemnização «deve ser igualmente justa na
perspectiva do interesse público que a expropriação visa prosseguir».
De facto (e acompanhando aqui de perto a aludida obra), ponderando que a
expropriação tem por fim a realização de fins públicos dos quais beneficia
globalmente a comunidade e que a justiça que deve ser inerente àquela forma de
ablação de bens tanto se dirigirá «à satisfação do interesse do particular
expropriado» como à «realização do interesse público», isso conduz a que se
tenha por constitucionalmente justificada, tendo em conta o conceito de «justa
indemnização», a introdução, na lei ordinária, das denominadas «cláusulas de
redução» (Alves Correia cita, em nota, o exemplo de sete cláusulas de redução —
Reduktionsklauseln — no n.º 2 do § 95.º do Baugesetzbuch, para além da
disposição limitadora da indemnização derivada da execução de medidas de
renovação urbana — n.º 1 do § 153.º daquele BauGB) em face da adopção de um
critério de valor de mercado como ponto de partida para o estabelecimento do
quantum indemnizatório.
Aquelas «cláusulas» servirão, desta arte ou, se se quiser, terão por fim,
«eliminar da indemnização os elementos de valorização puramente especulativos e
subtrair ao montante da indemnização certas mais-valias ou aumentos de valor
ocorridos no bem expropriado, em especial nos terrenos, que tiveram a sua origem
em gastos ou em despesas feitas pela colectividade» (mesma obra, p. 553).
Ora, a norma em apreciação, na óptica de Alves Correia, e que é também a
perfilhada por este Tribunal, «dá corpo ao princípio constitucional da justa
indemnização na vertente do interesse público da expropriação», pois que, ao
permitir a inclusão no valor indemnizatório das mais-valias que se podem
considerar «normais», «isto é, as valorizações dos imóveis decorrentes de
factores próprios do jogo da oferta e da procura, com exclusão dos elementos de
natureza especulativa», e ao excluir as resultantes de obra realizada pela
Administração Pública, consegue atingir uma adequada depuração do montante a
pagar ao particular expropriado sem que este se veja colocado numa situação
manifestamente desigual perante os donos de imóveis não objecto de expropriação
e que apresentam características semelhantes ao expropriado, conseguindo também
a realização do imperativo de justiça na realização do interesse público, não
acarretando o desfrute de mais-valias ou incrementos de valor que, fundados em
gastos feitos pela comunidade, não derivaram de esforços ou sacrifícios daquele
particular e que, se o contrário sucedesse, iriam, ao fim e ao resto, ser ainda
pagos a ele pela própria comunidade.
Não se deixará, todavia, de realçar, tal como Alves Correia (mesma obra, pp. 562
e segs.) o faz, que — atenta a natureza aporética do conceito constitucional de
«justa indemnização», que, em si, encerra «exigências contraditórias» —
considerando a conclusão a que acima se chegou sobre qual o critério de
indemnização mais consentâneo com o princípio da igualdade de encargos dos
cidadãos em face dos encargos públicos (e cuja correcta ponderação postula que
ao valor do bem sejam retirados aqueloutros valores que aumentam o primeiro e
são advenientes da actividade da colectividade), nem por isso se deixará de
descortinar uma certa desigualdade de tratamento entre o expropriado e o não
expropriado, se a indemnização a pagar ao primeiro «não englobar as mais-valias
provenientes de obras, melhoramentos públicos ou infra-estruturas urbanísticas
custeadas com dinheiros públicos», no caso de o segundo «conservar ou encaixar
no seu património os aumentos de valor ocasionados pelos referidos investimentos
públicos».
Todavia, como defende o aludido Autor — tese que este Tribunal sufraga —, a
desigualdade assim descortinada encontrará solução se as regras regentes da
indemnização por expropriação for complementada «com medidas flanqueadoras de
recuperação pela sociedade dos aumentos de valor ocorridos nos imóveis não
expropriados».
Como se diz a páginas 564 da obra que se segue de perto, «[n]a verdade, se a
justiça impõe a não consideração na indemnização por expropriação das
mais-valias provenientes de obras, melhoramentos públicos ou infra-estruturas
custeadas por dinheiros públicos, exige também, por uma questão de tratamento
igual entre expropriados e não expropriados, que a estes últimos sejam retiradas
as mais-valias de natureza idêntica».
Claro que se poderá obtemperar no sentido de inexistirem eficazes medidas de
recuperação das mais-valias decorrentes dos assinalados factos da comunidade
relativamente aos imóveis não sujeitos ao processo ablativo de expropriação.
Simplesmente, e sem que aqui se deva tomar posição sobre a maior ou menor
eficácia dessas medidas (cfr. a legislação reguladora dos encargos de
mais-valia, verbi gratia, o n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho
de 1948, e as taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas — artigo
11.º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro) no sentido de as mesmas não garantirem
uma adequada igualdade de tratamento no ponto de que ora curamos, o que é certo
é que, então, o que se depararia seria, neste particular, uma omissão
legislativa que não tem, directamente, a ver com norma analisada.
Não se afigura, em suma, que a norma constante da primeira parte do n.º 1 do
artigo 29.º do Código das Expropriações de 1976, na interpretação a que se fez
referência, se poste como colidente, seja com o princípio da igualdade, seja com
o da «justa indemnização», princípios esses que se destilam no n.º 2 do artigo
13.º e no n.º 2 do artigo 62.º, um e outro da Constituição.
5 — Uma última nota cumpre efectuar.
Prende-se ela com aquilo que os recorridos solicitam na parte final da conclusão
4.ª da alegação por si apresentada.
Como é por demais evidente, a fixação com um alcance mais restrito dos efeitos
da inconstitucionalidade ou da ilegalidade declarada por este Tribunal só poderá
relevar nos casos em que o mesmo aprecia e declara, com força obrigatória geral,
um daqueles vícios relativamente a quaisquer normas e mediante o processo a que
se reportam os artigos 51.º a 56.º e 62.º a 66.º da Lei n.º 28/82, processo esse
que, como é límpido, não é o aqui cabido.
Termos em que (e pondo de remissa a conclusão acima atingida no que tange à
questão de constitucionalidade) é manifesta a sem razão do pedido formulado
pelos recorridos e tocante a este particular.
IV
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, determinando-se que o
acórdão impugnado seja reformado em consonância com o juízo ora efectuado sobre
a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Junho de 1995. — Bravo Serra — Fernando Alves Correia — Messias
Bento — Guilherme da Fonseca — Luís Nunes de Almeida (vencido, quanto à questão
de fundo, nos termos da declaração de voto junta) — José Manuel Cardoso da Costa
(votei o acórdão, mas não sem dúvidas, seja quanto à solução dada à questão
prévia, seja quanto ao fundo — dúvidas que não tenho porém, possibilidade de
explicitar neste momento).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, muito embora concorde inteiramente com o acórdão que obteve
vencimento na parte em que, seguindo o ensinamento de Fernando Alves Correia,
que abundantemente cita, entende não existir, in casu, violação do princípio da
justa indemnização, consagrado no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição da
República Portuguesa.
É que, em contrapartida, não posso deixar de considerar que a norma em apreço é
flagrantemente atentatória do princípio da igualdade, designadamente perante os
encargos públicos, criando uma discriminação em prejuízo dos proprietários
expropriados, nomeadamente quando postos em face dos proprietários que hajam
beneficiado das mais-valias resultantes de obras públicas ao alienarem os
respectivos prédios a terceiros.
E não se diga, em contrário, como se faz no acórdão que obteve vencimento, que a
eventual inconstitucionalidade resultante do tratamento desigual residirá na
omissão legislativa de medidas flanqueadoras, e não na norma ora em apreço.
Com efeito, não sendo esta uma exigência constitucional, é a sua introdução na
ordem jurídica que vem criar a situação inconstitucional (de desigualdade), já
que não haveria violação da Constituição se ela não existisse — tal como não
haveria violação da Constituição se ela existisse complementada por medidas
flanqueadoras. O legislador poderia, pois, eliminar a situação de
inconstitucionalidade, quer eliminando a norma questionada, quer aprovando
medidas legislativas que fizessem desaparecer a desigualdade; ao órgão de
fiscalização da constitucionalidade só está aberto o primeiro caminho, não
podendo a sua utilização ser inviabilizada pela impossibilidade de usar o
segundo — Luís Nunes de Almeida.
1- Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Outubro de 1995.