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Proc.Nº 71/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1 - M. S. veio intentar e fazer seguir, pela comarca de Santa Maria da Feira, contra A. S. uma acção com processo ordinário para que a autora fosse julgada como filha de M. M., com fundamento em filiação biológica e posse de estado, com as legais consequências.
Após a audiência de julgamento, foi proferida, em 10 de Março de 1995, uma decisão pela qual veio a ser julgada procedente a excepção de caducidade absolvendo a ré do pedido.
A autora, inconformada com esta decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 15 de Janeiro de
1996, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Ainda inconformada, a autora interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ) que, por acórdão de 10 de Dezembro de 1996, decidiu negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação da conformidade à lei fundamental dos artigos 1871º, nº1 e 1873º ambos do Código Civil, designadamente para apreciar se a interpretação feita na decisão viola os artigos 26º, 18º,nºs 2 e 3 e 207º da Constituição.
2. - A acção improcedeu na 1ª instância por a autora não ter logrado provar que propusera a acção no ano seguinte àquele em que cessara o tratamento como filha, pois nem sequer provara o próprio tratamento. Na Relação, confirmou-se a decisão recorrida, ainda que por razões que não coincidiam inteiramente com as invocadas na 1ª instância.
Nas suas alegações para o STJ, a autora considera que 'o acórdão recorrido, ao imputar a improcedência da excepção de caducidade prevista nos artºs 1817º, nº1 e 1873º, em consequência de a Autora não ter provado a filiação biológica e o tratamento e a reputação pelo investigado e de, assim, ter absolvido do pedido, aplicou uma lei que limita o direito de estatuto pessoal, inalienável, indisponível, estabelecido no artigo 26º da Constituição'; acrescenta ainda que 'a limitação no tempo estabelecida pelo legislador através da limitação da propositura da acção referida nas conclusões anteriores, através da caducidade do artigo 1817º, nº1 e 1873º, é uma limitação inconstitucional praticada pelo legislador (...)', e, em conclusão, afirma que 'a decisão recorrida, ao não ter criado e aplicado a essa situação a pretendida '5ª presunção' teria violado o artº 10º da Código Civil e os artºs 26º, 18º e 207º da Constituição'.
Esta posição da autora e recorrente foi inteiramente afastada pelo STJ, desde logo por se considerar que a enumeração legal das presunções de filiação é taxativa, não podendo aí haver aplicação analógica de normas e, depois, por se entender que as normas que estabelecem limites temporais para o accionamento de direitos não constituem normas restritivas desses direitos, mas apenas normas condicionadoras do seu exercício, sendo certo que, no caso, tal condicionamento nem sequer é excessivo ou desproporcionado, não faltando também à norma em questão os requisitos de abstracção e generalidade, pelo que foi negada a revista e se confirmou o acórdão recorrido.
Desta decisão interpôs a Autora o presente recurso de constitucionalidade, para apreciar a conformidade à Lei Básica das normas do nº1 do artigo 1871º e do artigo 1873º, ambas do Código Civil (adiante, CC), por restringirem o direito à identidade pessoal da recorrente, violando os artigos
26º e 18º, nºs 2 e 3 e 207º da Constituição. O recurso, segundo a recorrente, deve também abranger a interpretação do nº1 do artigo 1871º, segundo a qual se violariam os artigos 26º, nº1 e 18º, nºs 2 e 3 da Constituição, ao não se criar uma nova presunção com vista a poder abranger e abarcar toda a prova apurada nos autos a favor da filiação da autora, deixando assim de se integrar uma lacuna segundo o artigo 10º do CC, sendo certo que tal interpretação da lei restringe o
«processo devido substantivo» do direito de (a recorrente) procurar a sua identificação, não sendo assim o processo em causa um processo justo, isto é, informado pelos princípios de justiça.
3. - Neste Tribunal, quer a Autora e recorrente quer a ré apresentaram alegações, tendo a recorrente formulado as seguintes conclusões:
'1) Ficou provado que os pais do investigado M. sempre receberam e alimentaram a recorrente em casa deles durante os primeiros anos de vida (cf.resposta ao quesito 11º; alínea e) de fl.6 do acórdão recorrido; e 2.3 desta Alegação);
2) Este comportamento dos pais do M. - de receberem e alimentarem a recorrente em casa deles nos primeiros anos de vida - foi uma actuação racional e familiar manifestada até no próprio julgamento, e um estatuto de posse para a recorrente, já que as respostas aos quesitos estão expressamente fundamentadas em testemunhas de idade avançada que são familiares (primos) do investigado M.: Mn. M. e Mr. M. (cf.fls.);
3) Por ter sido uma actuação familiar dos pais do investigado M., por ter sido uma actuação não momentânea mas prolongada durante anos e por ter sido racional e familiarmente praticada nos primeiros anos de vida da recorrente, é fora de toda a dúvida tratar-se de uma actuação com peso e medida suficiente para se poder cumular com o facto provado de a população de S. João de Ver, quando a recorrente ter atribuido a paternidade da autora ao finado M..
4) Estes dois factos cumulados, o de actuação racional e familiar dos pais do M. e o da população de S. João de Ver, são elementos que retiram a qualquer julgador toda a dúvida de que a recorrente é filha do finado M.; e, porque assim, são dois factos cumulados capazes de preencherem uma 5ª presunção de paternidade da autora relativamente ao M..
5) A favor desta presunção há ainda outro facto também provado a adicionar à convicção de não haver dúvidas sobre a paternidade em questão: o de que, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da recorrente, o finado M. teve relações sexuais com a mãe da autora (cf. resposta aos quesitos 2º e 5º; e alínea c) de fls.5 verso da decisão recorrida).
6) Ao não criar esta presunção de modo a nela subsumir cumulativamente aqueles dois factos - de actuação racional e familiar dos pais do M. e da atribuição da paternidade da recorrente ao mesmo finado - sempre com o devido respeito, o STJ violou o direito da autora, à sua auto-identificação previsto no art.26º da Constituição como um direito inalienável e indisponível.
7) Ao contrário do decidido pelo STJ, considerar como elementos constitutivos para preencher uma presunção de paternidade os gestos de o investigado a tratar a autora como filha (cumulada com a reputação do público como pai) - e não considerar a actuação racional e familiar dos pais da recorrente (cumulada com o facto de a população de S. João de Ver atribuir a paternidade da recorrente ao M. M.) como elemento de suficiente importância, peso e medida e relevante para se criar por analogia uma nova presunção de paternidade, constitui discriminação
(art. 13º da Constituição e 14º da Convenção europeia) e violação do princípio da proporcionalidade (art. 18º n.2 da Lei Fundamental).
8) Não preencher uma lacuna criando uma nova presunção de paternidade com o simples fundamento de não se poder violar o princípio da tipicidade, como fez o STJ (cf. fl.7 verso e segs. do acórdão recorrido), é violar o direito constitucional expresso no art.26º da Lei Fundamental e colocar esta em grau inferior à lei ordinária que tipificou as presunções de paternidade nas 4 alíneas do art. 1871º n.1 do Cod.Civil.
9) Ao não se criar esta nova presunção por analogia, o actual regime jurídico, numa espécie de insistência inquisitória, não se abre, quer à prova in casu existente para decidir sobre o assunto em questão quer aos mais recentes avanços científicos de, através, por exemplo, de dentaduras e estruturas ósseas, se tomar conclusão sobre o parentesco de pessoas que viveram há centenas e há milénios, o que viola o princípio da adequação e da necessidade (art.18º n.2,
19º n.4 e 272º n.2 da Constituição), já que não se mantém a união viva e espiritual do Entendimento com o seu Objecto (entre regime jurídico e direito à identificação pessoal) sem que este (direito) sofra perda de autonomia.
10) Decidir sem criar esta nova presunção como decidiu o STJ, é reflectir exclusivamente o discurso da letra do legislador ordinário, é abstrair do narrativo (de os pais do M. terem acolhido e alimentado a recorrente), é conceber esta realidade como incógnita absoluta e prescindir dela, é julgar apenas pela sua aparente inteligibilidade, é atingir o extremo de julgar sem sentido (cf. CASTANHEIRA NEVES, RLJ, Ano 121, p.134).
11) Decidir o direito do reconhecimento à filiação da autora como limitado no tempo pelo prazo de um ano de caducidade, sem declarar como inconstitucional o artigo 1817º n.4 e 1873º do Cód. Civil, é decidir ao contrário dos critérios interpretativos da doutrina e da jurisprudência dos mecanismos do sistema de protecção dos direitos do homem do Conselho da Europa, quer dos do Comité de Ministros quer dos da Comissão quer dos do Tribunal Europeu de Estrasburgo, critérios de sentido mais favorável (melior in bonus e não in peius) aos direitos fundamentais reconhecidos na Convenção Europeia, mesmo aos que não são alienáveis e indisponíveis (cf. 3.2.3 desta Alegação) - o que não se coaduna nem se ajusta com a restrição do direito ao reconhecimento da filiação da recorrente pelo STJ violando-se assim o princípio da adequação (arts.18º n.2, 19º n.4 e
272º n.2 da Constituição) e o princípio da uniformidade do direito e da tendência para um ius commune europeo.
12) Esta medida-fim processual e procedimental de caducidade de um ano do artigo
1817º n.4 e 1873º do Cód.Civil restringe, limita e viola a materialidade do direito à auto-identificação da recorrente, o art. 26º da Constituição mais do que o necessário, o art. 18º n.2 da Lei Fundamental, - pois é possível «dispor os condicionamentos» e os «modos de estabelecimento de paternidade» «sem precludir», «sem aniquilar» a materialidade do direito fundamental ao reconhecimento da filiação, sem afectar a «dimensão objectiva», o «núcleo essencial» e as «típicas situações primárias» do direito em causa.'
Pelo seu lado, a recorrida concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
'a) É vedado ao Tribunal Constitucional conhecer de questões que sob o ponto de vista estritamente jurídico o STJ não pôde conhecer;
Sem conceder b) não é possível criar uma presunção de paternidade por analogia e, de qualquer modo c) não existe inconstitucionalidade por não se criar uma presunção; d) As normas dos artºs 1817 nº 4 e 1873 cc não são inconstitucionais pois apenas definem condições temporais para o exercício do direito estabelecendo, dessa forma, um equilíbrio entre o direito ao reconhecimento da paternidade e outros direitos que merecem também tutela jurídica;'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
4. - Importa antes de mais resolver uma questão que se suscita nas alegações da recorrida, no sentido de que o Tribunal 'não pode conhecer de questões' das quais o STJ não pôde conhecer, uma vez que, segundo a recorrida, as questões de constitucionalidade submetidas ao conhecimento do Tribunal só foram suscitadas, pela primeira vez, nas alegações de recurso para o STJ, pelo que este não pode conhecer de questões que não foram apreciadas pelas instâncias, não podendo este Tribunal também delas conhecer.
Desde logo, se é certo que a questão de inconstitucionalidade apenas foi expressamente suscitada nas alegações da recorrente para o STJ, não é menos certo que, por essa razão, o STJ pode conhecer dessa matéria, como de facto conheceu específica e alargadamente.
Com efeito, a matéria da inconstitucionalidade normativa
é de conhecimento oficioso dos Tribunais que, por imposição da própria Constituição, não podem aplicar normas inconstitucionais e, tendo sido tal matéria levantada nas alegações de recurso, o STJ conheceu das questões assim suscitadas, afastando tais imputações de violação da Lei Fundamental.
Vai, portanto, desatendida a questão suscitada pela recorrida.
5. - Isto posto, há ainda que esclarecer qual o objecto do presente recurso nos termos em que o mesmo é identificado pela recorrente. O objecto do presente recurso, nessa perspectiva, é constituído não só pelo artigo
1873º do Código Civil mas também pelo artigo 1871º, nº 1 do mesmo Código. Não está abrangido o artigo 1817º, nº 1, mas sim o artigo 1817º, nº4 do Código Civil, como resulta da síntese final das alegações, onde a recorrente nomeou este preceito em conjunto com o artigo 1873º do mesmo Código.
Aliás, o ponto de vista sustentado quanto ao artigo
1871º, nº 1, melhor se perceberá da leitura do requerimento de interposição, onde a recorrente escreve que não se conforma com o acórdão recorrido por considerar que ele aplicou 'o artigo 1871.º n. 1 do Código Civil também sem o julgar como inconstitucional só por si com as 4 alíneas e sem criar uma 5ª alínea e) para uma nova presunção com vista a poder abarcar e abranger toda a prova apurada nos autos a favor da filiação da autora deixando assim de se integrar uma lacuna segundo o art.º 10.º do Código Civil - prova apurada que, quanto a nós, retira ao julgador toda a dúvida relativamente a tal pretensa filiação'.
6. - Tendo presente tudo o que acontece e foi transcrito, uma outra questão importa, porém, afrontar. É que o presente recurso vem interposto ao abrigo do artigo 280º, nº1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, alterada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Ora, os recursos assim interpostos, de decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, para serem admitidos têm de respeitar pelo menos dois requisitos: a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada 'durante o processo', isto
é, a tempo de o tribunal recorrido poder pronunciar-se sobre tal questão e, por outro lado, a norma questionada tem de ser aplicada na decisão, tem de ser um dos seus fundamentos normativos.
Acresce que o Tribunal vem entendendo que o legislador constitucional elegeu como parâmetro de aferição da constitucionalidade o conceito de norma, pelo que não podem ser objecto do controlo de constitucionalidade outros actos que não sejam normas, designadamente, os actos administrativos e as decisões judiciais enquanto tais.
No caso em apreço, é manifesto que o primeiro dos requisitos se verifica, pois, como a própria recorrida reconhece, a recorrente e Autora suscitou as questões de constitucionalidade a tempo de o tribunal sobre elas se pronunciar, o que na verdade aconteceu.
Porém, a recorrente ao questionar a constitucionalidade do artigo 1871º, nº 1, do CC, enquanto não cria uma nova presunção de filiação com vista a abranger toda a prova apurada nos autos, é manifesto que não está a questionar a inconstitucionalidade da norma mas sim a imputar essa inconstitucionalidade à própria decisão que é inconstitucional por não ter criado a norma que considera constitucionalmente adequada à solução do caso.
Não sendo as decisões judiciais «qua tale» objecto de controlo de constitucionalidade, não pode conhecer-se desta parte do recurso levantada pela recorrente contra a decisão recorrida.
Pela via do recurso para este Tribunal visa a recorrente a modificação da decisão recorrida no sentido do provimento das razões em que fundamenta as suas pretensões, e de acordo com a interpretação que ela própria extrai dos factos provados. Não põe em causa a aplicação de uma norma com a interpretação que lhe terá sido dada, conforme evidenciam os termos em que se exprime.
Com efeito, nas alegações que apresentou neste Tribunal, diz a recorrente, a final, o seguinte:
'Pede-se, espera-se e confia-se que seja dado provimento a este recurso e se julgue inconstitucional o acórdão do STJ por não ter preenchido uma lacuna criando uma nova presunção de paternidade - além das 4 alíneas a), b), c) e d) do art.1871º do Cód.Civil - com a seguinte redacção ou com a que fosse melhor adequada aos factos provados a cumular devidamente, e provados nesta acção:
'Quando os pais do investigado tiverem tomado uma actuação racional e familiar que retire todas as dúvidas sobre a paternidade do pretenso pai'; se crie esta nova presunção com esta redacção ou com a que melhor for adequada aos factos provados que devam ser nela cumulados;'
Vista a sua pretensão também por este ângulo, a conclusão a retirar igualmente terá de ser no sentido do não conhecimento do recurso, porque a questão de inconstitucionalidade pode efectivamente ter por objecto a interpretação de uma norma, em alguma das dimensões que nesta possam caber em termos de aplicação a casos e situações semelhantes; mas o recurso não poderá, com a dimensão que aqui se pretende, intentar a formulação de um preceito inexistente ou a integração de uma lacuna, talhados à medida das pretensões de cada recorrente, e isto independentemente do que se possa entender sobre a admissibilidade das denominadas decisões aditivas.
7. - Assim, restam as normas dos artigos 1871º, nº1, e
1873º, do Código Civil, enquanto restringem o direito da Autora à sua identidade pessoal ao fixarem um prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação de paternidade.
Porém, é manifesto que tais normas não foram aplicadas na decisão recorrida. Com efeito, não se tendo provado nos autos o tratamento e reputação como filha pelo investigado, não tem sentido questionar-se o prazo para propositura da acção de investigação.
É certo que a decisão recorrida se refere à questão da constitucionalidade do referido prazo. Porém, tal referência não pode deixar de considerar-se com 'obiter dictum', face à matéria de facto provada nos autos.
Na verdade, não se tendo provado que a Autora foi tratada e reputada como filha pelo investigado, falham os pressupostos da acção de investigação de paternidade, pelo que não faz sentido discutir-se a questão da constitucionalidade do prazo para propositura de tal acção.
Tem pois de se concluir que as normas em causa não foram
- nem logicamente podiam ter sido aplicadas pela decisão recorrida como seu fundamento normativo.
Falha por isso um dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso (artigo 70º, nº1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional), pelo que também quanto a estas normas, 1871º, nº1, e 1873º, se não pode tomar conhecimento do presente recurso. III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 1998.XI.03 Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida