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Proc. nº 156/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Numa acção executiva comum para pagamento de
quantia certa, na forma ordinária, proposta em 15 de Outubro de 1986 pela A., na
comarca da Lourinhã, contra a B. e mais quatro demandados, três destes na
qualidade de proprietários de prédios hipotecados para garantia de débitos de
primeira executada face à exequente e um quarto na qualidade de fiador daquela,
veio a ser citado editalmente o executado C. para contestar a liquidação das
quantias exequendas feita pela A., exequente, nos termos do art. 806º, nº 1, do
Código de Processo Civil.
Não tendo este executado comparecido em juízo
para os termos da execução e para contestar a liquidação dos pedidos das
quantias de honorários do mandatário judicial e das despesas com a preparação de
propositura de execução, (nos valores de 5.000.000$00 e 150.000$00,
respectivamente) e por não funcionar quanto ao mesmo o efeito cominatório
previsto no nº 2 do art. 806º do Código de Processo Civil (veja-se o art. 808º,
nº 1, do mesmo diploma), veio a ser ordenada a citação do Ministério Público em
29 de Fevereiro de 1988, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º
daquele mesmo Código.
Citado o agente do Ministério Público, não
apresentou o mesmo contestação ao pedido de liquidação.
Por despacho de 15 de Julho de 1988, veio a
Senhora Juíza do processo a julgar materialmente inconstitucional o nº 3 do art.
808º do Código de Processo Civil e, em consequência, a deixar para final o
conhecimento do mérito da liquidação, 'tendo-se por condensada a matéria factual
constante do requerimento de fls. 2 a 7 [requerimento inicial de execução]' (a
fls. 72).
Foram os seguintes os fundamentos do juízo de
inconstitucionalidade:
'A produção do efeito cominatório pleno previsto no Art. 807º nº 1 da lei
adjectiva depara, todavia, com o obstáculo pela falta de citação pessoal do
executado C. - cfr. Art. 808º, que, excluindo em princípio tal efeito (nº 1),
sintonizando-se assim com a filosofia do Código (cfr. Art. 784º nº 2 e 3 e
485º), vem, no seu número 2, abrir ao julgador a possibilidade de, com recurso a
essa qualidade difusa que se convencionou designar por «prudente arbítrio» ...,
«ou aplicar a cominação, ou mandar proceder a arbitragem, conforme lhe parecer
razoável ou exorbitante o pedido do liquidante ...» (J. A. Reis, «Processo de
Execução», 2ª ed., I, 494).
Ora, para além da constatação liminar de que «... a citação para
a liquidação é necessária pelo mesmo motivo por que o é a citação para o
processo declarativo (...) uma vez que o processo do Art. 806º é, no fundo, um
processo de declaração...» (Ibid, 493) afigura-se que a faculdade de «escolha»
aqui conferida ao juiz atenta contra princípios nucleares da ordem jurídica - e,
designadamente, a garantia do direito à defesa consagrado no Art. 20º nº 1 da
Const. Rep. Port..
Importa, com efeito, expurgar dos sistemas processuais modernos
uma leitura que a grelha constitucional lhes não consente - e que tendia a
isolar o processo da trama de direitos substantivos com que interfere,
tornando-se, com um exagero que aqui se pretende meramente ilustrativo, um fim
em si próprio; ou, no discurso algo [...] jocoso de Satta, permitindo dizer que
«verdadeiramente, processo e julgamento são actos sem finalidade, ou únicos
actos de vida que não têm uma finalidade. Paradoxo? Não, não é um paradoxo, é um
mistério, o mistério do processo, o mistério da vida...» (apud Franco Cordero,
«Ritti e Sapienza del Diritto», 1981, 52).
[...]
Não podendo duvidar-se da compreensão do direito de defesa, com
esta amplitude, no esquema constitucional português, temos que o não-exercício
desta sua vertente preliminar, por insucesso do tribunal em encontrar o
defendente, não poderá acarretar a sua [...] preclusão. Por outras palavras, a
citação edital, «fictio juris» da comunicação da existência/natureza/base
factual da acção, tendo por objectivo fazer prosseguir um processo de que de
outro modo ficaria imobilizado até se saber o paradeiro da parte passiva (com a
consequente lesão, ou perigo concreto de lesão do direito que o autor pede seja
reconhecido em juízo), constitui um mero expediente técnico que permanece
estranho ao direito de defesa, no aspecto de «direito à informação inicial» -
cumprindo promover a cabal efectivação deste no curso do «iter» processual. Que
assim é, decorre, aliás, de imediato da disciplina adjectiva em vigor entre nós
(cfr. os já aludidos Arts. 485º e 784º e, ainda, o Art. 15º do Cod. Proc.
Civil), na qual é ainda possível entrever a consideração do postulado geral de
que «... uma medida com conteúdo decisório (ainda que tomada numa fase
preliminar ... de um processo judicial) não pode ser adoptada sem a participação
daqueles para quem a medida terá efeitos relevantes ...» (Trocker, op. cit.,
403-404).
É certo que a garantia de defesa da parte passiva não tem, nem
poderia ter (sob pena de, em casos dados, implicar a recusa de tutela do direito
do autor) carácter absoluto, «maxime» no que especificamente concerne ao
contraditório - que «deve ser coordenado com a finalidade e a especial razão de
ser dos vários tipos de processos. Portanto, o haver-se elevado este princípio à
categoria de direito fundamental não pôs em causa a legitimidade dos interesses
contrários, nem implicou desconhecer a necessidade de harmonizar com tais
interesses o direito da parte a ser ouvida...» (Ibid, 405). [...]
Revertendo, portanto, ao processo concreto em que nos situamos, e
ensaiando sumariamente a análise sugerida por Trocker [na obra Processo Civile e
Costituzione, Milão, 1974] parece evidente que à tramitação da liquidação, como
mecanismo visando tornar exequível uma dada obrigação, presidem essencialmente
fins de natureza técnica (material) envolvidos embora por um princípio último de
economia/celeridade processual - ele também, uma segunda linha, pelo menos,
aspecto não negligenciável da garantia estabelecida pelo Art. 20º nº 1 da Lei
Fundamental.
Podendo a maior duração do processo afectar reflexamente
interesses da exequente (que, ainda assim, e dada a natureza do objecto da lide,
sempre encontrará suficiente protecção no instituto da «mora debitoris»)
afigura-se que, no caso concreto, é plena a prevalência do interesse do
executado [por lapso, escrito 'exequente'] revel em ser ouvido quanto à fixação
do montante que lhe é exigido pagar.
Em todo o caso, e descurando até as particularidades da questão
«sub judice», é manifesto que o direito a ser ouvido sobre a medida concreta da
prestação que lhe é exigida não pode ser coarctado ao defendente em nome de
considerações de eficácia processual - isto é, fazê-lo depender de um juízo de
«razoabilidade» fundado apenas no material trazido aos autos pelo exequente -,
tanto mais que se não descortinam aqui ponderosos interesses deste cuja tutela
exija o «sacrifício» sequer parcial, de um direito que de modo linear se prende
com a realização do direito objectivo (obrigacional) em causa ainda no processo
executivo.' (a fls. 69 vº a 72 dos autos)
Notificado deste despacho, dele veio o agente do
Ministério Público interpor recurso de constitucionalidade nos termos do art.
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, o qual foi admitido por
despacho de fls. 74.
Entretanto, por ter falecido um outro dos
executados, veio a ser suspensa a instância, por despacho de 24 de Outubro de
1989 (a fls. 79).
A instância esteve suspensa - por força do
incidente de habilitação de herdeiros do falecido executado e pela pendência de
um processo judicial de recuperação de empresas relativamente à 5ª executada,
sociedade por quotas de responsabilidade limitada - tendo cessado tal suspensão
em 17 de Maio de 1993.
2. Só em 14 de Março de 1994, subiram os autos ao
Tribunal Constitucional.
Dado o Ministério Público ser a entidade
recorrente, foi pelo relator nomeado advogado oficioso ao recorrido revel.
O Ministério Público sustentou a procedência do
recurso nas suas alegações, nelas tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª
'O nº 3 do artigo 808º do Código de Processo Civil, ao confiar ao prudente
arbítrio do juiz a decisão sobre a procedência da liquidação requerida pelo
exequente, não posterga, em termos excessivos ou desproporcionados, o núcleo
essencial do direito de defesa do executado revel, citado editalmente.
2ª
Na verdade, o equilíbrio entre os interesses do exequente e do
executado e a garantia do contraditório e do direito de defesa deste contra a
liquidação deduzida no requerimento executivo são assegurados, no caso de
revelia do executado ausente, pela atribuição da sua representação ao Ministério
Público e pela não aplicação do efeito cominatório estabelecido, como regra,
para a falta de oposição.
3ª
A realização da liquidação por árbitros por determinação do juiz,
quando considere exorbitante o pedido, configura-se como diligência idónea para
fixar a quantia devida em consonância com a verdade material, já que a
arbitragem surge, neste domínio, como forma última de resolução do litígio
acerca de fixação da obrigação exequenda, mesmo nos casos de insuficiência
probatória (artigo 809º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil).' (a fls.
114-115 dos autos)
O advogado oficioso nomeado ao recorrido aderiu
aos argumentos aduzidos pela entidade recorrente nas suas alegações (a fls. 118
dos autos).
3. Foram corridos os vistos legais.
Por não se encontrarem motivos que a tal obstem,
importa conhecer do objecto do pedido.
II
4. A desaplicação da norma do nº 3 do art. 808º
do Código de Processo Civil (abreviadamente, C.P.C.) determinada pela Senhora
Juíza do tribunal recorrido, deve ser entendida no contexto do processo
executivo comum, de natureza cível, regulado naquele Código.
Recorda-se que, no nosso direito, o processo
executivo nem sempre exige que tenha corrido previamente contra o executado um
processo de natureza declarativa para se obter uma sentença condenatória como
título executivo. Pode instaurar-se - e tal sucede com frequência - uma acção
executiva com base num título executivo extrajudicial. Os títulos executivos, de
natureza judicial ou extrajudicial, incorporam, em regra, obrigações certas e
líquidas, havendo, quando muito, que proceder a uma liquidação por simples
cálculo numérico nas obrigações acessórias de juros, por estes se contarem em
função de determinados períodos de tempo. Em certos casos, porém, as sentenças
condenatórias judiciais ou arbitrais, ou os títulos notariais podem incorporar
obrigações não certas (ilíquidas, alternativas, etc.), conforme resulta do
disposto nos arts. 50º, nº 1, 378º, nº 1, e 661º, nº 2, C.P.C.. No caso sub
judicio e quanto ao executado ora recorrido, a escritura notarial por ele
outorgada através da qual constituiu hipoteca sobre vários prédios para
segurança dos créditos da instituição exequente sobre a primeira executada
(créditos estes constituídos por escritura pública, integrada por documentos
particulares nos termos do art. 50º, nº 2, do mesmo Código), assegurava
créditos ilíquidos, a saber, os de pagamento de honorários forenses e de
despesas de cobrança judicial.
Ora, quando se trata de títulos executivos
extrajudiciais, pode dizer-se que há nesses documentos ainda um momento
preliminar de declaração do direito de crédito do exequente, cabendo, porém, ao
executado a possibilidade de impugnar com grande amplitude a existência e a
validade do título executivo, bem como a subsistência da própria obrigação
exequenda (art. 815º C.P.C., com remissão para o art. 813º do mesmo diploma).
5. No processo executivo comum para pagamento de
quantia certa, regulado a partir do art. 811º do C.P.C. - é, precisamente, esta
a finalidade da acção executiva em que surgiu o despacho recorrido - existe,
como, aliás, noutros tipos de processo executivo de finalidade diversa, uma fase
preliminar ou liminar destinada à verificação pelo juiz dos requisitos da
obrigação exequenda: de facto, segundo o art. 802º do mesmo Código, não pode
promover-se a execução 'enquanto a obrigação se não torne certa e exigível, caso
o não seja em face do título'. Ora, o legislador, ao referir-se à certeza do
crédito exequendo, pretende que ele seja determinado. Na noção de determinação
entra a noção de liquidez, podendo dizer-se que uma obrigação de quantidade é
ilíquida quando o seu montante não está determinado.
No caso sub judicio, a obrigação exequenda de
pagamento dos capitais mutuados era certa e exigível, a obrigação de pagar os
juros moratórios foi liquidada pelo credor exequente por cálculo aritmético
(art. 805º, nº 1), e a obrigação de pagar os honorários do advogado e as
despesas com a execução era ilíquida, tendo a A. exequente especificado no
requerimento inicial os valores que considerava compreendidos na prestação
devida (art. 806º, nº 1).
Ora, a lei do processo civil não pretende que se
realizem as actuações coercivas características da acção executiva sem que
esteja fixado o montante da obrigação exequenda, uma vez que tal montante
determina o direito do exequente e condiciona a extensão da própria penhora, já
que esta só deve ser feita na medida do necessário à satisfação do direito
exequendo (art. 837º e 836º, nº 2, alíneas a) e b), C.P.C.).
Quando a liquidação da obrigação não depende de
simples cálculo aritmético, podendo, por isso, dar origem a um litígio, o Código
de Processo Civil organiza uma actividade processual liminar de natureza
declarativa, cujos trâmites processuais mais importantes são os seguintes:
- O exequente especifica no requerimento inicial da própria execução, na parte
tradicionalmente designada como artigos de liquidação, 'os valores que considera
compreendidos na prestação devida', concluindo por um pedido líquido (art. 806º,
nº 1);
- O executado é citado para contestar a liquidação, dentro do mesmo prazo para a
dedução de embargos, com a explícita advertência da cominação relativa à falta
de contestação, a saber, considerar-se fixada a obrigação nos termos requeridos
pelo exequente (arts. 806º, nº 2, e 807º, nº 1);
- Se o executado contestar, seguir-se-ão, após este articulado (devendo notar-se
que a contestação da liquidação pode ser cumulada com a oposição por embargos -
art. 807º, nº 3), os termos do processo sumário de declaração (art 807º, nº 2);
- Se o executado não tiver sido citado na sua própria pessoa, nem como tal deva
ser considerado, ou quando se verifique qualquer dos casos previstos nas alíneas
a) e b) do art. 485º do Código de Processo Civil (pluralidade de executados em
que algum deles contesta a liquidação, relativamente aos factos que o
contestante impugnar; quando o executado ou um dos executados for uma pessoa
colectiva, ou for um incapaz e a causa estiver no âmbito de incapacidade), a
obrigação não se tem necessariamente por liquidada. Em tais casos, importa
distinguir situações. Se houver vários executados e alguns deles contestarem a
liquidação, a contestação aproveita a todos. Nos outros casos, o juiz pode ou
julgar liquidada a obrigação nos termos propostos pelo exequente ou mandar
proceder à arbitragem, 'conforme parecer razoável ou exorbitante o pedido' (art.
808º, nº 3);
- A liquidação é feita por árbitros não só quando, nos casos previstos no art.
808º, o juiz considerar exorbitante a liquidação, mas também nos casos em que a
lei especialmente o determine ou as partes o convencionem. Além disso, o recurso
à arbitragem pode ser determinado quando a prova produzida pelos litigantes seja
insuficiente para fixar a quantia devida e não seja possível completá-la
mediante indagação oficiosa (art. 809º, nº 1; a solução já se achava consagrada
no Código de 1939, bem como no Código de Processo Civil de 1876, art. 911º -
cfr. Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª ed., Coimbra, 1964,
pág. 236).
6. Descrito sumariamente o regime legal da
liquidação como actividade liminar de um processo executivo, importa ver se
procedem as razões que levaram ao julgamento de inconstitucionalidade perfilhado
no despacho recorrido.
A Senhora Juíza recorrida considerou que a
solução constante do art. 808º, nº 3, do C.P.C. não acautelava devidamente os
direitos do executado revel, nomeadamente o direito à defesa deste. Em seu
entender, o executado revel ficava à mercê do critério sobre o carácter
exorbitante do pedido adoptado pelo juiz, já que a lei confere a este um poder
discricionário ('segundo o seu prudente arbítrio') para ter por liquidada a
obrigação nos termos da pretensão formulada pelo exequente ou para submeter a
liquidação a arbitragem, consoante lhe parecer razoável ou exorbitante o pedido.
Tal solução violaria, em sua opinião, o disposto
no art. 20º, nº 1, da Constituição.
Deverá este juízo ser confirmado pelo Tribunal
Constitucional?
É o que passa a ver-se.
7. Preliminarmente, deve notar-se que a analogia
entre a tramitação de liquidação no processo executivo e o processo declarativo
é inegável. É certo que, para instaurar a execução, o exequente há-de dispor de
um título executivo, de carácter judicial ou extrajudicial, pelo qual se
determinam o fim e os limites da acção executiva (art. 45º, nº 1, do C.P.C.).
Por outro lado, na acção declarativa, o autor não dispõe, em regra , de um
documento de reconhecimento da existência de um crédito com certas
características, razão por que a chamada do réu ao processo se afigura como
exigência de grau superior, àquela que se prevê no processo executivo.
Simplesmente, sendo necessário liquidar a obrigação exequenda, já no âmbito do
processo executivo, há-de dar-se a oportunidade ao executado de se pronunciar
sobre a pretensão de liquidação, pois não é seguramente indiferente dever 100 ou
100.000... Nessa medida há analogia clara com a situação da acção declarativa.
Importa referir que, como se exprimia José
Alberto dos Reis em relação ao Código de 1939, a liquidação deve ser feita, em
regra, no processo declarativo, sendo um acto pertinente a este processo (cfr.,
hoje, art. 471º, nº 1, do C.P.C.):
'Na verdade, o que se tem em vista apurar, por meio da liquidação, é o montante,
o quantitativo ou a espécie da obrigação, numa palavra quanto deve o réu. Ora
determinar quanto deve o sujeito passivo da obrigação é averiguação
característica do processo declarativo.
De sorte que deixar a liquidação para o processo executivo é
deslocá-la do seu ambiente adequado para a ir inserir num meio hostil e
impróprio: enxerta-se no processo de execução uma indagação própria do processo
declarativo.' (Processo de Execução, vol. 1º, 2ª ed., Coimbra, 1957, pág. 470)
Por estas razões, o Código de Processo Civil de
1939 afastou-se da orientação do Código de 1876, que permitia deduzir com muita
amplitude pedidos genéricos em processo declarativo, o que implicava uma
verdadeira duplicação de processos declarativos (o processo declarativo
propriamente dito e o processo liminar de liquidação em processo executivo).
Todavia, quer em casos especiais em que o título executivo é judicial, quer
sobretudo em casos de títulos extrajudiciais baseados em escritura pública (art.
50º, nº 1), o Código de 1939 (tal como o vigente) teve de regular a tramitação
liminar da liquidação no processo executivo, como atrás se referiu, pois admite
a dedução de pedidos ilíquidos na execução.
Tratando-se de um processo contraditório,
compreende-se que o autor do projecto do Código de 1939 afirmasse que a citação
para a liquidação era necessária 'pelo mesmo motivo por que o é a citação para o
processo declarativo [...], uma vez que o processo do artigo 806º é, no fundo,
um processo de declaração' (Processo de Execução, I, pág. 493). Mas esta frase,
que é posta em destaque pela Senhora Juíza recorrida, não pode fazer olvidar que
também no processo executivo se começa em regra pela citação do executado,
quando o título executivo for extrajudicial (cfr. arts. 811º, 928º e 933º do
C.P.C.), sendo certo que já há aí um título executivo que permite a instauração
imediata do processo de execução e que dá, por isso, suficientes garantias sobre
a existência da obrigação exequenda.
7. O direito de defesa do demandado é
indiscutivelmente um direito de natureza processual que está ínsito no direito
de acesso aos tribunais, nos termos do nº 1 do art. 20º da Constituição. Quando
este preceito estatui que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, é manifesto que
tanto abrange os demandantes que recorrem aos tribunais para fazer valer as suas
pretensões, como os demandados que ficam sujeitos à jurisdição do tribunal da
causa e que têm o direito de se opor a tais pretensões. Como estabelece o nº 1
do art. 103º da Grundgesetz alemã, 'todos têm o direito a ser ouvidos em juízo'
(veja-se também o art. 24º da Constituição italiana).
Em todas as tramitações de natureza declarativa
que conduzem à emissão de um julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem
de existir um debate ou discussão entre as partes contrapostas, demandante e
demandado, havendo o processo jurídico adequado (a due process of law clause, da
tradição anglo-americana) de garantir que cada um dessas partes deva ser chamada
a dizer de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a
todas as outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo
nos processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria
execução ou à penhora.
Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação
'dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses
dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões [...] para o
esclarecimento da verdade. É tal a sua vantagem - seu rendimento - que as leis a
consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo [...].
Espera-se que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que
as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse
ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o
juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente
seria capaz de descobrir por si [...]' (Noções Elementares de Processo Civil,
com a colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves,
Coimbra, 1979, pág. 379).
Simplesmente, há situações em que o demandado não
pode ser localizado, não obstante diligências levadas a cabo pelo tribunal,
nomeadamente a requerimento do demandante (desconhecimento do domicílio;
ausência do domicílio sem deixar indicação do paradeiro, por exemplo). Ora, nos
processos cíveis - normalmente quando estão essencialmente em causa pretensões
de natureza patrimonial e as partes são, para a lei, perfeitamente iguais - o
legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique parado
indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao
processo. Tratando-se de processos de diferente natureza, por exemplo em
processos de natureza penal, as preocupações de evitar que o processo fique
parado à espera de localização do arguido levam à consagração de outros
mecanismos, sendo perfeitamente compreensível que o grau de exigência quanto a
tais mecanismos seja superior, dados os interesses em causa, nomeadamente a
regra constitucional de que o processo penal assegura todas as garantias de
defesa (veja-se o instituto da contumácia em processo penal).
Relativamente ao processo civil em especial,
Trocker, autor italiano citado várias vezes no despacho recorrido, chama a
atenção para que o fenómeno da comunicação de actos processuais às partes ou a
terceiros está sempre dependente de uma concordância prática entre princípios
tendencialmente opostos, entre o chamado princípio da 'objectividade do direito'
e o princípio subjectivo do conhecimento pelo destinatário. Cada ordenamento
jurídico pode ou privilegiar a necessidade subjectiva do conhecimento desses
actos pelo destinatário, com correlativo sacrifício da exigência de certeza
objectiva do direito, ou optar antes pela tutela da mera cognoscibilidade desses
actos de comunicação através de uma publicitação suficiente (por exemplo,
citação ou notificação editais com eventual ampliação dos prazos para reacção
dos destinatários), sacrificando o efectivo conhecimento subjectivo.
Normalmente, cada ordem jurídica acaba por consagrar soluções balanceadas ou de
compromisso entre as lógicas extremas destes dois princípios (ob. cit., págs.
468 e seguintes).
8. No direito processual civil português, os
actos de comunicação de actos processuais são detalhadamente regulados, com
consagração de importantes garantias, mas o Código respectivo não exige em todos
os casos uma comunicação pessoal ao visado feita através de oficial de justiça.
O primeiro acto de chamamento ao processo do demandado ou de certos
intervenientes que ocupam a posição de partes acessórias é a citação, a qual
deve ser pessoal, feita através de oficial de justiça ou pelo correio (esta
última deve ser efectuada na própria pessoa do citando' - art. 228º-A, nº 2, do
C.P.C.). A citação edital (através de éditos publicados em certos lugares é em
jornais) só é admissível quando o citando se encontre em parte incerta, ou
quando sejam incertas as pessoas a citar (art. 228º - A, nº 3, do mesmo
diploma). Em certos casos, a lei transige e admite formas de citação
'quase-pessoais', feitas na pessoa de terceiros (arts. 228º -A, nº 2, 228º-B,
234º, nºs 3 e 4, 235º, 236º e 243º). As citações pelo correio são feitas por
carta registada com aviso de recepção (art. 238º-A).
Quando o citando se haja ausentado para parte
incerta e o oficial de justiça venha a ser informado de tal no local da última
residência conhecida daquele, esse oficial deverá lavrar certidão da
ocorrência, que será assinada pela pessoa de quem tenha recebido a informação.
Ao demandante é dado, em regra, conhecimento dessa ocorrência, para requerer o
que tiver por conveniente. Se for requerida a citação edital, o juiz só a
determinará depois de a secretaria assegurar previamente que não é conhecida a
residência do citando, podendo, para tal, colher informações, designadamente das
autoridades policiais e administrativas (art. 239º do C.P.C.). A citação edital
é rodeada de formalidades para garantir a cognoscibilidade da notícia da acção
pelo demandado (arts. 248º e 249º do C.P.C.).
O Código tutela nos arts. 194º a 198º, com
cuidado, a nulidade processual decorrente da falta de citação ou da citação
inválida por preterição de formalidades não essenciais (a preterição de
formalidades essenciais é equiparada à falta de citação - art. 195º, nº 1,
alíneas c) e d), e nº 2, do C.P.C.). Em processo declarativo, a falta ou a
nulidade da citação permitem mesmo impugnar a sentença, já transitada em
julgado, durante vários anos, através do recurso extraordinário de revisão (art.
771º, alínea f), do C.P.C.). Em processo executivo, a falta de citação (mesmo no
processo declarativo que a precedeu) constitui fundamento de oposição à
execução, independentemente da natureza do título executivo (arts. 813º, alínea
e), e 815º do C.P.C.) e pode levar à anulação da própria execução (art. 921º
C.P.C.).
9. Nos casos em que o demandado foi citado
editalmente, por se desconhecer o seu paradeiro (o citando encontra-se em parte
incerta), e não compareceu em juízo para se defender (deduzindo oposição ou,
pelo menos, juntando aos autos procuração a favor de advogado), ocorre uma
situação de revelia absoluta.
A nossa lei processual civil não regula sempre as
situações de revelia absoluta ou agravada do mesmo modo. Pode dizer-se que, em
processo declarativo, a revelia absoluta, em caso de citação edital, tem
consequências menos gravosas do que em processo executivo, precisamente porque
neste último a instauração da execução se fez com base num título executivo. E,
no processo declarativo, as consequências ainda variam consoante a situação de
revelia, em função do tipo de processo (comum ou especial, ordinário, sumário e
sumaríssimo).
Em processo declarativo comum ordinário, a
revelia de réu citado editalmente não tem efeitos cominatórios (arts. 483º e
484º, nº 1, do C.P.C.), devendo o Ministério Público ser citado em lugar do
revel (art. 15º). Como os factos não se têm por confessados, tem de haver
julgamento, precedido de produção de prova. Este regime é também aplicável em
processo declarativo sumário (art. 784º, nº 2) e em processo sumaríssimo (art.
796º, nº 4).
Em processo executivo, a revelia absoluta do
executado citado editalmente deverá dar lugar à citação do Ministério Público,
em substituição daquele (quanto aos incapazes pelo menos, o art. 15º do C.P.C.
será aplicável por força do art. 801º do mesmo diploma - neste sentido, Castro
Mendes, Acção Executiva, 1980, AAFDL, pág. 54; J. M. Gonçalves Sampaio, A Acção
Executiva e a Problemática das Execuções Impostos, Lisboa, 1992, pág. 139),
implicando, depois, a devolução do direito de nomeação de bens à penhora ao
exequente (art. 836º, nº 1, alínea a), do C.P.C.). Mas deve contar-se com os
mecanismos de tutela já atrás referidas (arts. 909º, nº 1, als. a) e b), e 921º
da lei do processo)
10. Neste quadro geral, é possível agora apreciar
ex professo o disposto no art. 808º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Esse regime acolhe uma solução intermédia entre o
tratamento legal da revelia do demandado citado editalmente em processo
declativo e o regime acolhido em processo executivo, em que não tenha de
liquidar-se a obrigação exequenda, não obstante a inegável semelhança entre o
processo declarativo e este preliminar também de natureza declarativa.
No despacho recorrido, julgou-se que esse 'meio
caminho' era constitucionalmente ilegítimo, razão por que se desaplicou a norma
e foi aplicado o disposto no art. 784º, nº 2, do C.P.C. (por força de remissão
do artigo 807º, nº 2, do mesmo diploma). Em termos práticos, não se considerou
liquidado o pedido até que viesse a proceder-se a julgamento.
Não parece, porém, que tal juízo deva manter-se,
atenta a integração do procedimento liminar de execução no processo executivo e
a existência das salvaguardas próprias deste, nomeadamente as acima descritas
nos arts. 909º, nº 1, als. a) e b), e 921º do C.P.C..
A este propósito, pode ler-se nas alegações do
Exmo. Procurador-Geral Adjunto:
'A efectivação da citação edital do ausente em parte incerta não colide, a nosso
ver, com o direito de defesa - desde que o tribunal haja efectivamente esgotado
as possibilidades práticas razoáveis para localizar o demandado e realizar a
respectiva citação pessoal. Outra solução - que passasse pela aplicação no
processo civil de um regime análogo à 'contumácia', actualmente vigente no
processo penal - revelar-se-ia, esse sim, manifestamente desproporcionado, por
lesar, em termos inadmissíveis, o direito do autor, a quem não poderá
imputar-se normalmente qualquer «culpa» pela circunstância de o seu devedor
relapso se haver ausentado para parte incerta...
Por outro lado, o princípio do contraditó-rio é nesta hipótese
acautelado, em primeira linha, pela intervenção principal do Ministério Público
em representação do ausente em parte incerta, nos termos previstos no artigo 15º
do Código de Processo Civil - norma que, como vimos, foi aplicada no caso dos
autos.
Incumbe, na verdade, ao Ministério Público, no exercício de tal
representação, um especial dever de deduzir a oposição com base nos fundamentos
que forem perceptíveis, acautelando, consequentemente, os princípios do
contraditório e da igualdade de armas entre autor e réu, originariamente
desequilibrados pela circunstância de não haver garantias minimamente seguras de
que o demandado haja tido possibilidade de conhecer a propositura da acção.
Finalmente, a garantia do contraditório passa ainda, nos casos de
ausência em parte incerta e de efectivação da citação edital, pela não aplicação
dos efeitos cominatórios, pleno e semi-pleno, normalmente previstos, como regra,
na lei de processo para os casos de revelia operante.
Efectivamente, a norma desaplicada na decisão recorrida não
estabelece qualquer efeito cominatório directamente decorrente da falta de
contestação: limita-se a conferir ao juiz o poder-dever de, valorados os
elementos constantes dos autos, julgar, sem mais, procedentes os artigos de
liquidação deduzidos pelo exequente, ou ordenar a realização de arbitragem,
quando tenha dúvidas sobre a procedência das razões aduzidas pelo exequente.
Ora, supomos que esta diligência acautela, em termos
satisfatórios e constitucionalmente bastantes, o contraditório: na verdade,
importará ter presente que, no âmbito da liquidação enxertada na fase preliminar
da acção executiva, a arbitragem surge como ultima «ratio» que permite alcançar
a verdade material, mesmo nos casos em que a prova produzida a requerimento das
partes ou por determinação oficiosa do juiz - no caso, designadamente, de ter
havido oposição à liquidação - se revelar insuficiente para formular juízo
seguro sobre a fixação da quantia devida (artigo 809º, nº 1, alínea a) do Código
de Processo Civil).
Não nos parece efectivamente que, nos casos de revelia, a
continuação do processo, nos termos do artigo 807º, nº 1, do Código de Processo
Civil, assegure resultado sensivelmente superior - na perspectiva da tutela dos
interesses do executado ausente revel - ao que a eventual realização da
arbitragem por determinação do juiz garante.
Na verdade, o prosseguimento do processo, na fase subsequente aos
articulados, não assegura obviamente que ao ausente em parte incerta seja
comunicada a pendência da causa e da liquidação contra si requerida. E sendo
certo que a instrução do processo esgotar-se-á normalmente na produção das
provas requeridas pelo exequente - já que, se o Ministério Público não deduziu
oportuna oposição à liquidação, certamente não disporá de provas a apresentar
autonomamente na audição de julgamento...'. (fls. 111 a 113 dos autos)
III
11. Nestes termos e pelas razões expostas, decide
o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando o despacho
recorrido, o qual deverá ser substituído por outro em conformidade com o juízo
sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa,22 de Junho de 1995
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Luís Nunes de Almeida